quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO VIII
“Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!”
(Castro Alves)



Durante o restante do ano não tive mais contato com Aliel. Todas as vezes que telefonei para sua casa ela não estava ou quem atendia ao telefone fora devidamente orientado para dizer que ela não se encontrava. Por outro lado ela não me ligou em momento algum. E eu ficava pensando que aquela menina com jeito brejeiro estava pilheriando comigo. Mais uma vez me veio a idéia do tempo e refleti: Não é bastante que queiramos algo, é necessário que aquilo que desejamos esteja preparado para acontecer. Não podemos, portanto, nos afligirmos ou forçar os momentos, quando chegar a hora tudo se resolverá. E assim me preparei para receber o Ano bom.
Urgia que organizasse meus horários de estudo, pois precisava distribuir esse tempo entre as atividades da escola e o estudo pára o vestibular de Medicina. Por isso durante todo o ano não tive tempo para nada. Estudava pela manhã, ao chegar a casa, tomava banho, almoçava, e livro. À tardinha ia para uma lagoa que ficava próximo à minha casa, fazia Cooper, voltava para casa, tomava banho, lanchava, e livro. À noite, enquanto dormia, para descansar, os livro me apareciam, e vinham as fórmulas matemáticas e físicas a que se misturavam átomos de carbono, e tudo isso junto formava um texto sobre os motivos das Cruzadas. Algumas vezes acordava mais cansado do que quando tinha ido dormir.
Entretanto quando o cansaço acumulava, eu não voltava para casa. Ia almoçar no centro da cidade. Aproveitava esses momentos para buscar rostos conhecidos de outras vidas. Era uma brincadeira para mim. Entrava sempre no mesmo restaurante, daqueles cujo público alvo são comerciários e bancários ou simplesmente pessoas que estão fazendo compras quando a barriga ronca. Eu entrava, sentava-me numa posição privilegiada para observar o público e de lá buscava rostos conhecido de outras vidas. E os encontrava. Fechava então os olhos e ficava tentando lembrar de que vida nos conhecíamos, eram meros figurantes de momentos que eu não conseguia vislumbrar com exatidão.
Certa vez aconteceu que eu estava num estabelecimento desses, quando adentrou nele uma moça puxando uma criança pelo braço. Era um menininho negro, de sorriso desenxabido e olhos grandes. A moça o conduzia para uma mesa próxima à que eu me encontrava. Subitamente, ele empacou como uma mula e me olhou, seus olhos me queriam cumprimentar, um leve sorriso bailou em seus lábios. Eu senti um formigamento iniciando na nuca e correndo espinha a baixo.
De repente eu estou numa cena totalmente diferente. O ambiente é um salão imenso, aristocrático, em que há várias mesas cobertas com toalhas vermelhas acetinadas. Nelas, homens conversam e bebem champanha, com grossos charutos entre os dedos. Eu estou numa mesa bem afastada do centro, trajo um terno amarelo e uso um chapéu de massa de cor marrom. Estou apreensivo devido à demora de alguém. Sinto um enorme alívio quando ela entra no recinto. É bela, tem os olhos grandes, usa um chapéu amarrado ao queixo, traz um leque na mão esquerda e um guarda-chuva na outra. Traja um vestido branco cheio de arabescos de renda azul-clara, apertado na cintura e rodado abaixo com um decote discreto acima. Ela mais parece uma imagem saída de um quadro de Monet. Antes que ela chegue, eu me levanto para saldá-la. Já devidamente acomodada, eu lhe pergunto o motivo da demora, ao que ela responde que foi a mãe que a atrasou, ela passara em sua casa para pegar umas encomendas... Suas palavras são um tanto vazias, mas eu deixo para lá. Ela então começa a tossir. Quando eu lhe pergunto se ela pegou sereno, ela diz que não foi nada. Entretanto a tosse se intensifica a ponto de as pessoas em volta se incomodarem. Mando chamar o carro e a levo para casa. Já devidamente acomodada, dou-lhe um chá. Debalde! A tosse é tanta que ela estremece toda. Já estou desesperado quando o médico chega, coloca o estetoscópio, manda-a falar trinta e três e lhe recomenda repouso absoluto. Contrato no mesmo dia uma enfermeira, que lhe administra os medicamentos receitados. Debalde! A tosse só se intensifica, e o meu desespero aumenta, eu não saio do quarto durante toda a noite e, a todo instante, eu olho para ver se ocorreu um milagre. O médico vem novamente várias vezes no dia seguinte, e cada vez minha angústia só e maior ao ver a cara do médico mais compungida. Eu insto com ele para que me diga algo, ao que ele responde “tenha calma, meu jovem, tenha calma”. Mas eu não tenho e o sacolejo agarrado ao seu jaleco branco. Pego-me com todos os santos e choro ao ver a pele da minha amada descorada e seu corpo exânime sobre o leito. Na manhã do terceiro dia, o médico apenas balança a cabeça, como a justificar seus esforços. E eu perco o sentido das coisas. Vem o padre e resmunga mecanicamente algumas palavras de extrema unção. Depois vem o pessoal da funerária, tiram-lhe medidas, vestem-na numa mortalha de cor marrom, mas eu exijo que lhe coloquem outra de cor branca, que melhor simbolizaria sua pureza. Depois de realizado esse desejo, jogam-na numa sepultura, sob os olhos espantados dos que a amavam, entre eles eu, que não aceito aquela separação repentina. Meu coração estremece ao lembrar o pouco tempo que permanecemos juntos, apenas um ano. Entretanto eu deveria me conformar, pois naquele pouco tempo vivemos um amor nunca vivido antes por criatura alguma. Nossos dias e noites eram festa, amávamos com tanto fervor que a Cidade das Luzes tornava-se mais iluminada, não havia cansaço, não havia brigas, eu conhecia todos os seus poros, todos os seus cheiros, e ela retribuía tal carinho na mesma moeda, com o mesmo empenho, com o mesmo amor. Talvez por isso eu não me conformasse com sua partida. Ao fim, todos se vão e eu fico diante da lápide onde há um epitáfio que diz: “Aqui jaz Judite Proudon, em vida amou a ponto de dar sua vida pelos seus, na morte continua no seio dos que a amaram.” Um amigo chega toca no meu ombro, mas eu me recuso a sair, recuso-me a deixá-la exposta à voracidade dos vermes. Em minha cabeça há uma idéia fixa, passar mais uma noite ao seu lado. E lá na cidade dos mortos me deixo ficar, sento-me à sombra de um cipreste e brinco com suas sementes vermelho-claras. Sem me dar conta, adormeço. Quando desperto, já é noite fechada e a única luminosidade vem da lua, que me observa austera, como uma mãe a ralhar com o filho, sem dizer palavra. Tiro o relógio do bolso e tento ver as horas, em vão. Mas neste momento o sineiro toca o seu instrumento doze vezes. De repente, um calafrio me sobe a espinha, e eu não sei se tenho frio ou medo. Apesar de cético, por ter sido criado no seio de uma família ligada à ciência, vêm à tona todas as superstições que me contam histórias de almas penadas e criaturas da noite. É com grande esforço que não me desespero e não saio a correr. Em meus ouvidos soam barulhos, como os de pés esmagando gravetos, em seguida ouço o pio de uma coruja, tão perto que me enregela o sangue. Olho mais uma vez para sua sepultura, beijo-a e saio a passos largos sem me voltar, pois os sons se multiplicam, como se naquele momento os mortos levantassem de seus leitos derradeiros e iniciassem um seminário. Fora dos muros da pequena cidade, dirijo-me a uma taberna que se encontra aberta. O ambiente me causa repugnância, sobe-me à boca uma náusea, meu estômago revira e por pouco não vomito ali. Sento-me diante do balcão, recoberto por um acolchoado vermelho-sangue. Olho em volta para sondar o recinto, quase vazio àquela hora. Apenas algumas mulheres dançam para alguns velhos babões, numa lareira produzida pela disposição das mesas. Peço um conhaque. A loira aquilina que me atende comenta:
─ Nossa, que estado, que decadência! Parece que fugiu do cemitério! Você deveria tomar era um leite quente.
Eu insisto, e ela me traz o conhaque. Naquela noite não vou para casa, não agüentaria passar aquela primeira noite sem Judite. Entro no primeiro hotel, subo para o quarto e me jogo na cama. Por muito tempo me reviro numa insônia sem fim até que adormeço, sem fechar as janelas. No dia seguinte e nos dias que se seguem ardo em febre e tenho fortes alucinações, nelas Judite está ao meu lado e me pede desculpas por me trair, diz que me amava, mas sua índole leve como uma pluma a impedia de ser só de alguém. A princípio eu queria morrer, mas depois desisto. Não quero mais encontrá-la, estou certo de que as alucinações me foram uma revelação. No hotel, onde os médicos se desdobram em cuidados, há uma jovem que não sai do meu lado. É ela que me enxuga o suor do rosto e me administra as ampolas deixadas pelas figuras hipocráticas. Finalmente saio daquele torpor e aos poucos torno à vida. Volto para casa e por muito tempo lembram-me as alucinações tidas durante a enfermidade. Tenho medo, mas me iludo fingindo ser pejo, de mexer nas gavetas de Judite. Às vezes desperto durante a noite, abro nosso guarda roupa e ilumino as gavetas que lhe pertenciam, mas não as abro e volto a revirar na cama até o dia clarear. Por gratidão, visito as pessoas do hotel onde passei os dias de enfermo. Lá encontro sempre solícita a moça que me acompanhou naqueles dias, após dia. Seu nome é Juliete e me é muito familiar. Para retribuir sua dedicação, levo-a a passear, sentamos-nos num quiosque, tomamos suco, depois vamos até às margens do Sena, ficamos conversando e admirando a serenidade de suas águas. Um dia tomo coragem e lhe pergunto o motivo de sua dedicação para com um estranho, principalmente doente. Ao que ela me responde com grande naturalidade:
─ Gratidão. Quando o vi pela primeira vez, na rua, há algum tempo, eu sabia que nós éramos ligados um ao outro, até que o tempo o trouxe até mim. Certa noite, enquanto dormia, tive um sonho revelador. Há muito tempo, nós vivíamos numa tribo e você era meu pai. Numa madrugada fomos atacados por uma tribo inimiga. Eles eram canibais, e você morreu para me salvar.
Ao ouvir aquele pequeno relato, eu devo achar que aquela moça é louca, mas ela fala com tanta convicção e seus olhares são dotados de tanta gratidão, que me comovem. Um ano depois nos casamos. Sua primeira atitude a qual não posso impedir é revirar todas as gavetas que pertenciam à minha ex-mulher. Desfaz-se de tudo que lá há, com exceção de um pacote de cartas amarradas por uma fita vermelha. Ela mo entrega e nunca pergunta sobre o conteúdo das missivas. Eu as leio, sem derramar uma lágrima, depois as incinero, seus conteúdo agora não me importa mais. Vivo tranqüilo ao lado de Juliete. Não a amo, mas nutro por ela um carinho especial. Ela também não me ama, o que sente é gratidão, e assim nós vivemos o resto daquela vida.

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...