terça-feira, 31 de março de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS CAPÍTULOS XIV E XV

CAPÍTULO XIV

“A mulher sábia edifica a sua casa,
mas a insensata,
com as próprias mãos a derriba.”
(Provérbios: 14 – 1)

Depois desse dia ela me telefonava sempre e passamos a nos encontrar. Eu ansiava por beijá-la, abraçá-la, mas ela sempre se esgueirava e me mostrava a aliança em sua mão. Brincava, ria. Depois me tratava como quem trata um irmão para depois dizer que me amava. Eu jamais forcei nenhuma barra por saber que ela estava muito confusa. Era como se ela estivesse vivendo várias vidas ao mesmo tempo. A aliel que me amava era Ranjicniami, a minha irmã era Miciane, e deveria haver muitas outras que se misturavam numa só. E ela sofria por tudo isso. Eu sempre evitava falar na mãe por notar certa indiferença dela com relação aos pais. Possivelmente ela deva ter se tornado arredia depois de quase ter sido obrigada a casar. Entretanto o respeito e o carinho que nutria pelo marido eram algo muito próximo do amor. Às vezes ficava embevecido com seus encantos e perdia a noção do tempo. Quando dava por mim já era hora de voltar para a faculdade e para os órgãos embebidos no formol. Beijava-a na testa ou no rosto e saía correndo ansiando por vê-la novamente.
Um dia quem me ligou foi o marido, convidando-me para almoçar no domingo em sua casa. Ansiei barbaridade para que esse dia chegasse. No domingo, então lá estava eu, sentado à beira da piscina ao lado de Aliel e de seu marido, conversando sobre Medicina, pacientes e hospitais, e ele me dizia:
─ Meu rapaz, você terá uma vida um tanto corrida. Tenho muitos amigos e amigas médicas. E aqueles mais comprometidos passam semanas sem ver suas esposas, ou seus maridos, ou seus companheiros, não importa. Quando não estamos nos consultórios, estamos nos plantões, quando não estamos nem em um nem em outro, estamos em algum congresso. É complicado, é complicado. – Falava enquanto sorvia o uísque do copo.
Essas reuniões se repetiram algumas vezes, e quando não falávamos da profissão ou da faculdade, jogávamos e brincávamos algo inventado por Aliel. Numa tarde ele me chamou a um canto para me confidenciar:
─ Meu caro, Daniel, estou um pouco preocupado com sua amiga. Aos poucos vou percebendo que Aliel está ficando mais confusa sobre quem é. Eu falei com alguns colegas sobre o caso dela, mas parece-me que suas experiências são de outrem, ou seja, eles não fizeram nenhuma regressão em ninguém. Entretanto, meu jovem, eu entrei em contato com um colega norte-americano e ele me disse que estará visitando o Brasil em fevereiro, quer dizer, daqui a três meses. Ele falou que virá ao Ceará e, se eu quiser, ele fará um exercício de regressão em Aliel. Esperemos, pois, até lá. – arrematou com sua voz pausada
Sempre que estava ao seu lado, principalmente perto de aliel, eu ficava meio que intimidado, afinal ele era médico famoso, era mais velho, rico. Naquele dia, no entanto, eu lhe falei:
─ Oh, Dr. Ernani...
─ Que é isso, meu caro, chame a mim de Ernani, aliás, você é de casa e em breve será meu colega.
─ Obrigado. – agradeci – Ernani, enquanto isso nós poderíamos levar Aliel à casa onde ela morava quando encarnada em Miciane... – e lhe expus a experiência tida na antiga mansão.
Ele mostrou-se deveras interessado, e combinamos que dali a oito dias iríamos até ao casarão abandonado. Nesse momento fomos surpreendidos por Aliel que chegou por trás e com seu jeito brejeiro:
─ Quem cochicha o rabo espicha! Eu já tô ficando com ciúmes!
E assim a tarde declinou.








CAPÍTULO XV
“Mas, ai! cedo fugiste! Da soidade
Hoje te imploro, desse amor tão fundo,
Uma idéia, uma queixa, uma saudade.”
(Fagundes Varela)


O carro parou em frente ao casarão. Como não havia ali lugar para estacionar, demos a volta no quarteirão, até que numa rua transversal paramos. Enquanto Ernani fazia a manobra no carro eu, sentado no banco de trás observava a reação de Aliel. Era explícita sua admiração ao ver a mansão, onde morara em outra vida. Quando descemos do automóvel ela meio apreensiva indagou:
─ Ernani, aonde vamos de fato?
Em poucas palavras ele contou-lhe sobre o que eu lhe havia contado sobre a casa e de nossa decisão de irmos até lá e finalizou:
─ Não se preocupe, minha deusa, – era assim que ele a tratava – se você não se sentir bem e quiser sair é só falar.
Não foi difícil transpor o portão. Ernani havia providenciado um chaveiro competente, outrossim, um moleque havia feito um caminho para evitarmos os carrapichos, coisa de gente prevenida, que pensa em tudo. Já no interior da casa, procurei vestígios do homem que antes dormia ali. Não havia nada que identificasse presença humana. Com certeza César devia ter alugado a tal quitinete. Minha atenção então se voltou para Aliel, que até então não havia dado uma única palavra. Seus olhos percorriam a extensão das paredes descascadas, das janelas despedaçadas. Detinham-se em um ponto para em seguida virar-se para outro. Ernani e eu apenas a seguíamos. Ela então mudou de expressão e, firme, dirigiu-se a um dos aposentos como se lá esperasse encontrar alguém ou algo. Adentrou um dos quartos, parou, sentou-se, colocou a cabeça entre as pernas, fechou os olhos e entoou uma melodia. Dr. Ernani aproximou-se dela, pediu para eu ligar o gravador e com a intuição gerada pela experiência da profissão perguntou-lhe:
─ O que você vê, quem você é?
A voz de Aliel era sumidinha, igual a que eu ouvi durante meu transe quando estivera ali:
─ Eu tô brincando com meus primos, mas eu num gosto deles. Eles me assustam com histórias de monstros. Eu tenho cinco anos. É meu aniversário. Todos estão presentes menos Daniel, que é meu irmão. Ele foi viajar e eu estou muito triste pela falta dele. – De repente esboçou um meio sorriso e continuou – Eu estou brincando na praia, meu irmão está cuidando de mim, mas eu caio num buraco e quase me afogo, felizmente Daniel me socorre, me tira nos braços e faz respiração boca a boca. Ele além de meu irmão é meu amigo, meu anjo da guarda. Minha mãe está morta, deitada no meio da sala dentro de um caixão, eu estou chorando muito e Daniel me conforta. O cemitério é grande, há muitas árvores e para onde se olha se vêem túmulos, túmulos, túmulos. Nós não temos pai, ele morreu numa tentativa de assalto. Agora também não temos mãe. Chove muito e eu tenho medo, me escondo na cozinha, os trovões parece sacudirem a casa e os relâmpagos clareiam a casa de instante a instante. Daniel vem e me abraça e eu pergunto por mamãe, agora ele é quem chora. Nós perdemos a casa. Vieram os homens, tivemos que deixá-la. Nós vamos morar na casa da titia. Meus primos não me deixam em paz, arengam a toda hora. Agora eu sou uma menininha grande e lavo roupa na casa de minha tia, sinto muita angústia. Enquanto esfrego a roupa minhas lágrimas caem sobre a espuma do sabão, sinto saudades de Daniel. Ele não existe mais, foi colhido pelo trem. Eu lembro do alvoroço quando um dos meus primos chegou correndo e dando a notícia, corremos todos para lá, eu no caminho rezava para que fosse tudo um engano, não era Daniel, não podia ser meu irmãozinho, porque logo com ele, mas era, apesar do estrago feito pela locomotiva, eu pude reconhecê-lo. Eu estou na igreja. A meu lado o noivo. Mas eu não tô feliz. Alguma coisa me entristece muito, acho que não posso casar com ele, ele é mau, ele bate em mim. Não... Eu tenho uma idéia sinistra. Eu estou no banheiro de uma casa imensa. Agora eu lembro que minha tia, para se ver livre de mim resolveu me casar com esse homem. Ela é minha mãe... Eu tenho nas mãos um copo nele há veneno e eu o sorvo de uma vez só, minha cabeça começa a rodar e minha barriga dói muito, como se tivesse uma batedeira em meu interior... eu tô morrendo, a respiração está faltando... uma luz...
Olhei apreensivo para Ernani, aliel estava morrendo. Ele a sacolejou enquanto chamava:
─ Aliel, acorde, por favor, minha deusa.
Ela despertou do transe e, após recuperar a respiração, fitou nós dois, como se não soubesse o que houve, nem o que viu, na verdade não o sabia. Quando chegamos a casa do casal, voltamos a fita e os três ouvimos a gravação. Enquanto a fita girava aliel se abraçava a mim. Ao final ela estava com um semblante sereno, calmo, como quem finalmente acorda de um terrível pesadelo. Ela então falou com uma voz chorosa:
─ Então nós fomos irmãos em outra vida, né seu Daniel!
Eu sorri, não sabia o que pensar. Por que eu nunca me lembrei do episódio do trem? Agora estava explicado o pavor que eu tenho dessas máquinas, elas me enregelam a espinha. E eu ouvi a voz de Aliel ainda agarrada a mim:
─ E quando foi isso? – Ao que Dr. Ernani respondeu:
─ Aquela casa foi construída no começo do século XIX. Depois foi adquirida, já no final desse século, por uma família recém chegada de São Paulo, uma família de brasão italiano que negociava com café. – olhando para mim e para Aliel – sua família, como Miciane e Daniel. Depois da morte do patriarca, em 1917, a mãe suicidou-se e a casa foi transferida para o banco onde estava penhorada. Hoje é propriedade da caixa Econômica e, se tudo der certo, em breve será nossa.
Aliel o abraçou, e eu me despedi.
Nos dias que se seguiram, estive envolvido com os estudos e não pude atender aos apelos de Aliel, minha amada, a mulher que me estava destinada, e de seu marido, agora meu amigo. Como essa vida é complicada! Como diria Ernani. Pensei. Antes minha cabeça girava em torno de um mistério imenso o qual me traria o destino romântico digno de um folhetim barato. Até que conheci Wellington, um indivíduo cuja mãe me disse ser um espírito evoluído, e ele o era. Ele me falara de alguém que precisava de mim, Aliel, de alguém que me queria fazer sofrer, Ângela. E tudo isso se descortinou com tanta urgência que não vejo nenhum mistério. Foi o tempo mais uma vez dando mostras de que ele é inexorável, de que tudo se dissolve com ele, basta-nos espera e agir no momento ideal. Em um dos telefonemas que Ernani me deu, falou-me que Aliel estava bem melhor, visitou os pais e estava bem mais serena, até pedira a ele para voltar a estudar, pois precisava ter uma profissão para ser útil a alguém. Ela também me telefonava e numa de nossas conversa falou-me que estava preparada para a próxima regressão, que ocorreria em fevereiro, quando o especialista americano viesse. Ernani tinha medo de que algo desse errado. Eu prometia que assim que me livrasse das avaliações finais retornaria a encontrá-los.
Assim que cumpri minhas últimas atividades anuais na faculdade, fui visitar Aliel. A saudade era imensa, apesar do curto tempo. Mas quando se ama, quer-se estar perto da mulher amada a toda hora, e alguns dias sem vê-la parecem uma eternidade, por isso qualquer minuto perto é bom demais, o amor só aumenta. Chegando à sua casa, pedi para a moça que me atendeu para que não me anunciasse, pois queria fazer uma surpresa. Entretanto surpreso fiquei eu ao vê-la rodeada de livros. Por alguns instantes fiquei embebido admirando aquela cena: os livros dispostos sobre a mesa, sem nenhuma arrumação ou algo que indicasse critério de colocação, ela com os dois punhos cerrados debaixo do queixo numa atitude de jogador de xadrez que imagina uma estratégia para dar xeque mate no adversário. Em outro plano, quero dizer, quem visse a cena por um ângulo mais ampliado, que me enquadrasse, com certeza acharia patético a minha atitude diante da cena simples protagonizada pela moça. E foi isso que deve ter pensado Ernani ao tocar meu ombro para em seguida falar baixinho:
─ Você deve amar muito essa moça, não?
Eu fiquei atônito, envergonhado. A vontade que eu tive foi de ir embora correndo e nunca mais tornar àquela casa. Mas nesse instante aliel se voltou para mim, deu-me um sorriso tão belo que esse desejo volatizou-se e sumiu da minha mente. Ela ergueu os braços para mim, que fui em sua direção, beijei-lhe a testa e sentei-me perto dela.
─ Vem cá, Daniel, me ajudar com esses livros, que o Ernani não tem paciência comigo.
Nisso o marido se aproximou de nós dois, beijou-a nos lábios, bateu de leve no meu ombro e saiu. Ainda da porta falou:
─ Toma conta de tua irmã, Daniel.
Aquelas palavras me doeram como látego, pois era isso que eu para Aliel, apenas o seu irmão. E isso me incomodava. Eu queria ser seu amado, seu homem, seu amante. Entretanto ela era pura demais, não trairia seu marido. Se antes o fizera, era porque ainda não eram casados e talvez ela nem acreditasse que viriam a sê-lo. O marido por sua vez mesmo sabendo do amor que eu tinha por ela sabia que ela o amava e conhecia que tipo de relação ela internalizara com relação a mim, principalmente depois dos últimos acontecimentos. Com certeza ele na dissera aquelas palavras para me nocautear, possivelmente o tenha feito para justificar para si mesmo a confiança que depositava em mim. E eu me lembrei do tempo, senhor tão bonito, compositor de destinos, que sana todos os males e que destrói os homens maus. Não houve um na história da humanidade que não tenha sucumbido a ele, não houve nem haverá império por mais poderoso que seja que não caia sob o olhar de sarcasmo desse imperador do universo. Por outro lado não houve nem haverá amor que ele tenha conseguido demolir. Como dois amigos que se rivalizam numa luta surda em que não há vencedor, Amor e Tempo se medem. Um está sempre rindo um do outro a cada vitória parcial, e os anos, as décadas e os séculos se vão passando, se acumulando enquanto, exaustos da peleja, os dois contemplam a humanidade e sentem pena dos homens, para, logo recuperado o fôlego, voltarem à pugna que os entretém. Lembrei-me de uma história contada por um professor de Língua Portuguesa que é mais ou menos assim:
Certa vez, numa ilha habitavam todos os sentimentos: a Saudade, a Tristeza, a Alegria, a Ganância, a Solidariedade, o Ciúme, a Inveja, o Amor, o Ódio, a Usura. Enfim ali habitavam todos aqueles que norteiam o destino da humanidade. Apesar de paradoxais, eles conviviam bem, cada um respeitando as diferenças alheias, pois é nos corações humanos que se dá o combate entre eles.
Certo dia Surgiu das profundezas do oceano um Tritão e informou que seu pai, Netuno, iria inundar toda a ilha. Que era para os sentimentos evacuarem o local e buscarem outro quartel general. Todos imediatamente ocuparam seus barcos para deixarem aquele lugar que tanto os acolhera. O amor, sempre fitando o distante horizonte, só soube do que ocorreria quando a maioria já havia abandonado a ilha. E ele, que nunca desesperou, andou calmamente até a praia. Lá chegando viu o barco da Felicidade e perguntou:
─ Tem uma vaguinha para mim aí?
─ Desculpe-me, amigo, mas é que estou tão feliz que prefiro ficar sozinha para que ninguém atrapalhe minha alegria.
O barco do Ciúme também não pôde levá-lo porque tinha medo de que seu veículo se apaixonasse por outro. O barco da Riqueza estava repleto de ouro e prata e não cabia mais nada. A Inveja e o Ódio, que iam no mesmo barco, sabiam que com o fim do amor eles poderiam reinar absolutos sobre o coração humano, e, por isso, nem sequer ouviram seus apelos.
E assim foram um a um passando, enquanto o Amor, paciente, sabia que chegaria sua vez de se salvar. A ilha já começara a ser inundada quando veio um barco e o acolheu. De tão grato o Amor se esqueceu de perguntar ao barqueiro o seu nome. Mais tarde, já em completa segurança, enquanto ajeitava seu novo posto, Amor se lembrou de perguntar a outrem o nome de seu benfeitor:
─ Foi O Tempo. Não o reconheceste? – respondeu o indagado.
O amor então refletiu: “Ah, só podia ser ele, pois só o Tempo é capaz de transportar o Amor”.
E mais uma vez deixei às expensas do Tempo o meu dilema de ter Aliel nos meus braços para sempre. Estava perdido nessas reflexões quando ela brincou:
─ Atenção, planeta Terra chamando Daniel, queira, por favor, aterrissar.
Dei um sorriso, como que pedindo desculpas e fui tratar do que ela queria. Durante todo o dia ficamos juntos. Falamos de seus planos de estudar. Ela queria voltar a cursar a 8ª série para no final do ano tentar as provas da Escola Técnica. Pretendia cursar turismo. E assim o dia declinou, ela falando e eu ouvindo, bebendo cada fonema, cada palavra e cada gota de saliva. Meu Deus – Pensava às vezes – deve ser pecado desejar tanto assim uma pessoa e se contentar apenas com vê-la. Por outro lado pensava ser pecado o incesto. E refletia como são complicadas as leis dos homens mascaradas de leis de Deus. Por que um irmão não pode amar uma irmã, se seus corpos se atraem, se se querem, por que Estácio não pôde ter Helena, por que eu não posso ter Aliel. E de repente balançava a cabeça desnorteado para me dizer: “Aliel não é minha irmã, foi-o em outra vida”. Até que ela me chamava à realidade novamente e eu voltava a fitá-la, e a refletir, e a me perder. Até que...

terça-feira, 17 de março de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS CAPÍTULOS XII E XIII

CAPÍTULO XII
“O mar tem armas secretas
Que guardam a carne dos peixes
E a solidão do poeta.”
(Fagner/Abel Silva)


As atribulações pertinentes a períodos de provas me tomaram todo o restante do semestre. Em julho não tive descanso porque vieram os créditos de férias, uma forma de antecipar o término do curso, cujo tempo total chegava próximo dos nove anos, e como eu já o havia iniciado fora do tempo, urgia que buscasse recuperar o atraso. Assim o que deveria ser um tempo de lazer, tornou-se um esquadrinhar a anatomia humana sem fim. O pouco tempo livre que tinha, passava-o à beira mar admirando o infinito do oceano e imaginando os segredos ocultos nos labirintos submarinos. Enquanto andava enchia os pulmões de ar para espirá-lo todo de uma vez, em seguida aspirava mais ar. Esse exercício além de me renovar as energias fazia-me viajar no tempo, o vento soprando, a areia açoitando minhas pernas e a maresia penetrando meu ser era o veículo que me transportava a épocas imemoriais. Entretanto, apesar de toda essa afinidade com o mar, e seus mistérios eu não entrava na água. Dava-me imenso prazer ver e senti-lo, mas a idéia de me ver desafiando aquele monstro de água e espuma, rugindo como um dragão colossal me enregelava os nervos. Certa vez, fechara os olhos para ser inundado pela áurea oceânica quando de súbito me vi numa cena que remontava a milhares ou milhões de anos. Nela eu tenho uma barba rala como os soldados de Átila, o huno; tenho na mão esquerda uma lança tosca, primitiva; uma pele de animal e um gorro também de pele me protegem do frio, estou à margem de um oceano, era noite, eu estou ferido e, apesar da roupa, tirito de frio. Agarro-me à lança como se fosse uma tábua de salvação, como se estivesse me agarrando à própria vida, a dor me trespassa a clavícula, enquanto os dentes batem, formando um som monocórdio. Fora isso, o silêncio é ensurdecedor. Aos poucos vou fenecendo e vejo, já fora de mim, o corpo de um caçador, vermelho do sangue que emana de uma ferida imensa, inerte sob o céu de uma primitiva madrugada. Aos poucos vem surgindo uma luz que me conduz ao infinito. Quando abri os olhos vi novamente o impassível oceano me fitando e me desafiando com sua língua de espumas. Refleti sobre a visão que acabara de ter. Seria a visão de uma existência primitiva? Quantas vezes eu vivi? Ou será tudo isso, que me sugere a lembrança de encarnações anteriores, somente fruto da minha imaginação? A resposta para essa pergunta ninguém jamais me daria e eu deveria aprender a conviver com essa dúvida sem me molestar.
Outras vezes eu ia ao shopping. Entrava numa loja de discos, mexia, remexia, depois abandonava o lugar. Ia até a praça de alimentação, comia um sanduíche e voltava para os livros. Foi numa dessas incursões pelo shopping que revi Aliel. O sopapo que senti internamente daria para mover a terra se fosse numa alavanca postada no seu centro. As mãos começaram a suar e eu precisei respirar fundo para reaver parte da calma que me era necessária. Ela estava olhando uma vitrina em que havia uma porção de ursos de pelúcia, parecia escolher um. Ao seu lado, silencioso, um homem que mais parecia um guarda-costas, impassível, fitando-a embevecido, como eu fazia outrora. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos, enquanto o conjunto formado pelos cabelos fortemente grisalhos e os óculos de aros grossos davam-lhe um ar doutoral, como aqueles psicólogos saídos do século XIX, só lhe faltavam o cachimbo na mão esquerda e a direita escorando o queixo. Ou era o fato de prever que ali estava o noivo de Aliel que me fazia dele a imagem de um discípulo de Freud? Aproximei-me do casal, procurando fazê-lo o mais natural possível. Mas outro estremecimento me abalou os nervos, foi quando vi na mão esquerda de ambos o símbolo universal do matrimônio. Hesitei e parei a alguns passos daquela que deveria estar ao meu lado. Ela virou-se para o marido, fez um muxoxo e indicou um dos bonecos na prateleira. Ele assentiu com a cabeça e ela pulou em seu pescoço, rindo de felicidade e beijando-o por todo o rosto. Em seguida os dois entraram na loja, enquanto eu não sabia o que pensar ou o que fazer. Resolvi-me esgueirar pelos corredores e aguardar a saída dos dois. Não demorou muito e eles reapareceram. Com um urso enorme nas mãos, Aliel parecia um bebê de tão feliz. Os dois seguiram pelo imenso corredor na direção da praça de alimentação, seguidos de longe por mim. Foi ela quem indicou uma mesa no meio da praça, a mesma na qual ficávamos antes. Depois de acomodados ela virou-se algumas vezes, como se esperasse a chegada de alguém, talvez sentisse a minha presença. Enquanto isso, sentei-me a uma mesa onde não pudesse ser visto, por várias vezes tive vontade de ir ter com os dois. Aproveitei, então, o momento em que ele se levantou para ir, possivelmente, ao lavabo e me dirigi até Aliel. Para meu espanto, ela não se mostrou surpresa. Sorrindo ela me falou:
─ É difícil ver você, não?
Eu não sabia o que falar estava feliz por ela existir e se transformar na minha razão de viver, estava deslumbrado por ela ser assim tão franca, tão espontânea. Estático assim só pude perguntar:
─ Você casou com ele?
─ Foi. Ele não é tão garotinho como eu falei, é que tive vergonha... – e pela primeira vez eu senti certa falta de confiança em sua voz. Eu então indaguei:
─ Você é feliz?
─ E o que é a felicidade? Eu tenho dezesseis anos e nunca vi ou entendi o que significa isso. Ele me faz bem, é meu amigo e meu pai ao mesmo tempo. Faz e diz coisas tão carinhosas que às vezes acho impossível alguém fazer ou dizer o mesmo. Minha mãe vivia dizendo que sou louca que vivo inventando coisas. Ele me ouve e rir do que eu digo. Se eu o amo? Você pode me perguntar, e eu vou dizer que não sei. Assim como também não sei o que sinto por você. Você é meu irmão. Todas as vezes que sonho com você, você é meu irmão e eu tenho saudades de quando brincávamos na casa de nossa tia. Você não lembra? – perguntou com a mesma voz sumidinha de Miciane.
─ Lembro – afirmei – mas não foi nessa vida – continuei – foi numa outra. Um dia desses, eu tive a visão da nossa casa, chovia muito e você estava muito assustada... – Ela como que iluminada arregalou os olhos e disse:
─ Agora eu lembro – e seus olhos adquiriram uma expressão triste – nossa mãe havia morrido. Foi muito triste e nós sozinhos tínhamos voltado para casa, quando começou a chover. Eu me escondi na cozinha enquanto você me procurava.
Enquanto ela terminava essa narração o marido se aproximou. Ela apontando para mim disse, retomando o ar serelepe:
─ Ernani, esse é meu irmão que eu falei.
Ele olhou para mim sem demonstrar surpresa, seu ar era mais analítico, possivelmente hábito da profissão, do que de cisma. Eu balancei a cabeça afirmativamente, e ele perguntou com a voz pausada:
─ O que isso tem de verdadeiro?
Em poucas palavras eu lhe expus o que sabia até ali sobre mim e Aliel, inclusive a vida em que fomos irmãos.
─ Ninguém como eu deseja mais desvendar esse mistério do que eu. – Finalizei procurando ver no semblante o que pensava aquele homem, enquanto isso Aliel nos fitava séria como um paciente esperando um diagnóstico médico.
─ Olhe, Daniel... é esse seu nome, não é? – Perguntou-me, e diante da afirmativa, continuou – Eu sou psicólogo, portanto um homem de ciências. Sendo assim eu não estou credenciado a crer em nada que se não possa explicar à luz da razão e da experiência. Isso que você me contou me parece totalmente absurdo. Entretanto alguns colegas já me falaram algo semelhante à regressão a vidas passadas. Eu nunca lhes dei atenção, é claro. Mas por outro lado, há anos observo Aliel, e ela não apresenta nenhum sintoma que indique distúrbio mental. Ela sempre falava no irmão que não tinha, ou relatava fatos desconexos, e isso, certamente, causou muito receio a seus pais a ponto de eles praticamente ma entregarem. – ao dizer isso sua voz tornou-se mais pausada ainda, como se não quisesse que Aliel ouvisse. – Sendo assim, garoto, eu estou disposto, se ela quiser, é claro, a tentar sessões de regressão. Vou falar com alguns colegas que já têm experiências nessa área para providenciarmos as reuniões. Mas há um detalhe: eu quero que você esteja presente.
Dizendo essas últimas palavras ele me deu seu cartão de visitas e anotou o número da residência atrás. Apertou-me a mão e se despediu. Aliel abraçou-se a mim, e os dois saíram.
Eu não me sentia triste nem feliz. Sentia-me como alguém que está realizando uma tarefa e não pode esboçar nenhuma reação enquanto ela não estiver concluída, como um jogador na marca do pênalti, ou como uma dançarina no Teatro Municipal. Alegrava-me ter visto Aliel, apesar de ela estar casada. Talvez porque me confortasse a idéia de que o marido era alguém tão preocupado com sua segurança e saúde. Nada nele me parecia ser algum usurpador de inocências ou um velho libidinoso, como eu pensara outrora. Além disso, ele me demonstrara confiança ao me dar o número do telefone de sua casa. Isso, aliado a idéia das sessões de regressão, me colocava numa posição privilegiada quanto ao destino de Aliel e me fazia ver que eu continuava ligado a ele. Desde já eu ansiava pela seqüência dos fatos.


CAPÍTULO XIII
“Sic vos non vobis melificatis, apes.”
(Vieira)

Os dias que se sucederam àqueles acontecimentos me foram tomados pela faculdade. Cada dia a grade curricular me apertava mais, e as provas em cima de provas me deixavam às vezes sem noção do dia e da noite. Abria Atlas anatômicos, fechava-os; entrava em laboratórios, saía deles e o cheiro forte do formol me entontecia. De repente me pegava com a barba por fazer, entrava no banheiro, olhava o relógio, passava a mão no rosto e deixava a barba já crescida pra lá. Os cabelos acompanhavam o mesmo ritmo. Meu pai, talvez cansado de me ver pra lá e pra cá, fez um esforço, pediu emprestado um dinheiro e me presenteou com uma moto, uma CG125. E eu saí pelo meio do mundo de moto, corta carro aqui, entra em corredor estreito ali, avança um sinal acolá. Certa vez eu percorria um corredor formado por duas filas de carro quando apareceu bem na minha frente um homem puxando um garotinho pelo braço, mal deu tempo de desviar, quase bato no carro a minha direita. O homem me olhou bravo e vociferou:
─ Você não sabe que é proibido andar em corredor, seu merda!?
O sangue subiu-me a cabeça e eu retruquei com palavras ásperas das quais não me lembro agora, mas não foram de agradecimento. Mais tarde enquanto almoçava, fiquei pensando no ocorrido, e me veio o remorso por ter sido rude com o cidadão, que na realidade era quem tinha razão. Além do mais ele vinha com o filho e se eu não atropelei os dois foi porque ele teve cuidado ao atravessar o tal corredor. Entretanto o que mais me doía era a minha incoerência, uma vez que eu sempre achei os motoqueiros um bando de irresponsáveis, dizia para todo mundo que não entendia por que eles não andavam nas pistas, como todo veículo deve andar. No entanto uma coisa é você reclamar dos outros, outra é alguém reclamar de você. E eu pensei “meu Deus, como nós somos incoerentes, como somos hipócritas, como só pensamos em nós! Se alguém faz algo ilegal, está errado; se somos nós que o fazemos, estamos certos e ninguém pode reclamar.” Naquele momento lembrei-me de um vizinho que vociferava contra o adultério. Para ele mulher-adúltera boa era mulher-adúltera morta. Alardeava sempre que algum caso chegava a seus ouvidos “comigo é na bala”. Até que a sua esposa, a quem ele não permitia trabalhar para não “se perder” o traiu. O quarteirão todo ficou sabendo das puladas de cerca dela, menos ele. Ninguém lhe dizia o que estava acontecendo porque ninguém queria ser responsável por um crime passional. Até que deu-se o desmastreio, e ele a flagrou em péssima hora. Nada fez. Alguns dias depois saía de mudança para outro bairro, pois, segundo ele, “as pessoas dali eram muito fuxiqueiras, e nem ele nem a esposa tinham nomes para andar em bocas de matildes.” Seria irônico se não fosse trágico. Eu refletia naquela situação e novamente me perguntava como é interessante o pensamento e lembrei-me da letra da música: “O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Para minha surpresa, vi o homem e o filho, os quais eu quase atropelava, entrarem no restaurante. Ele não me reconheceu, é óbvio, devido ao fato de eu estar de capacete. Então pensei que ali estava uma boa oportunidade para eu me retratar, pedir desculpas, afinal eu reconhecera para mim o erro, mas isso só não bastava, precisava reconhecê-lo também para os outros, pois só assim poderia ficar em paz com a minha consciência. Dirigi-me então até ele e fiz o que devia. O homem ficou deveras agradecido e também se desculpou. Meu ser ganhou uma leveza excepcional, diria que fiquei feliz. Naquela noite eu não iria dormir com um peso sobre os ombros. Lembrei-me então do Wellington e sobre o que havia me falado sobre pedir desculpas a alguém a quem magoamos. Abri a janela e olhei as estrelas. Vênus brilhava intensamente e eu pensei que se os espíritos evoluídos realmente se tornam estrelas ao morrer, aquele rapaz com certeza está brilhando nessa imensidão espacial. Lembrei-me de súbito de fazer a barba e já me dirigia ao banheiro quando o telefone tocou. Era Aliel, para minha alegria. O marido havia viajado para um congresso e ela estava se sentindo sozinha. Conversamos por quase uma hora e percebi que ela alternava momentos de alegria e de tristeza. Quando ela desligou, eu pensei que talvez a regressão resolvesse alguns de seus dilemas e ela se tornasse uma moça normal para decidir seu futuro com mais clareza, e eu esperava fazer parte dele, é claro, enquanto uma voz interior me dizia “você já faz parte da vida dessa moça, aliás, você sempre fez”.

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO XII
“O mar tem armas secretas
Que guardam a carne dos peixes
E a solidão do poeta.”
(Fagner/Abel Silva)


As atribulações pertinentes a períodos de provas me tomaram todo o restante do semestre. Em julho não tive descanso porque vieram os créditos de férias, uma forma de antecipar o término do curso, cujo tempo total chegava próximo dos nove anos, e como eu já o havia iniciado fora do tempo, urgia que buscasse recuperar o atraso. Assim o que deveria ser um tempo de lazer, tornou-se um esquadrinhar a anatomia humana sem fim. O pouco tempo livre que tinha, passava-o à beira mar admirando o infinito do oceano e imaginando os segredos ocultos nos labirintos submarinos. Enquanto andava enchia os pulmões de ar para espirá-lo todo de uma vez, em seguida aspirava mais ar. Esse exercício além de me renovar as energias fazia-me viajar no tempo, o vento soprando, a areia açoitando minhas pernas e a maresia penetrando meu ser era o veículo que me transportava a épocas imemoriais. Entretanto, apesar de toda essa afinidade com o mar, e seus mistérios eu não entrava na água. Dava-me imenso prazer ver e senti-lo, mas a idéia de me ver desafiando aquele monstro de água e espuma, rugindo como um dragão colossal me enregelava os nervos. Certa vez, fechara os olhos para ser inundado pela áurea oceânica quando de súbito me vi numa cena que remontava a milhares ou milhões de anos. Nela eu tenho uma barba rala como os soldados de Átila, o huno; tenho na mão esquerda uma lança tosca, primitiva; uma pele de animal e um gorro também de pele me protegem do frio, estou à margem de um oceano, era noite, eu estou ferido e, apesar da roupa, tirito de frio. Agarro-me à lança como se fosse uma tábua de salvação, como se estivesse me agarrando à própria vida, a dor me trespassa a clavícula, enquanto os dentes batem, formando um som monocórdio. Fora isso, o silêncio é ensurdecedor. Aos poucos vou fenecendo e vejo, já fora de mim, o corpo de um caçador, vermelho do sangue que emana de uma ferida imensa, inerte sob o céu de uma primitiva madrugada. Aos poucos vem surgindo uma luz que me conduz ao infinito. Quando abri os olhos vi novamente o impassível oceano me fitando e me desafiando com sua língua de espumas. Refleti sobre a visão que acabara de ter. Seria a visão de uma existência primitiva? Quantas vezes eu vivi? Ou será tudo isso, que me sugere a lembrança de encarnações anteriores, somente fruto da minha imaginação? A resposta para essa pergunta ninguém jamais me daria e eu deveria aprender a conviver com essa dúvida sem me molestar.
Outras vezes eu ia ao shopping. Entrava numa loja de discos, mexia, remexia, depois abandonava o lugar. Ia até a praça de alimentação, comia um sanduíche e voltava para os livros. Foi numa dessas incursões pelo shopping que revi Aliel. O sopapo que senti internamente daria para mover a terra se fosse numa alavanca postada no seu centro. As mãos começaram a suar e eu precisei respirar fundo para reaver parte da calma que me era necessária. Ela estava olhando uma vitrina em que havia uma porção de ursos de pelúcia, parecia escolher um. Ao seu lado, silencioso, um homem que mais parecia um guarda-costas, impassível, fitando-a embevecido, como eu fazia outrora. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos, enquanto o conjunto formado pelos cabelos fortemente grisalhos e os óculos de aros grossos davam-lhe um ar doutoral, como aqueles psicólogos saídos do século XIX, só lhe faltavam o cachimbo na mão esquerda e a direita escorando o queixo. Ou era o fato de prever que ali estava o noivo de Aliel que me fazia dele a imagem de um discípulo de Freud? Aproximei-me do casal, procurando fazê-lo o mais natural possível. Mas outro estremecimento me abalou os nervos, foi quando vi na mão esquerda de ambos o símbolo universal do matrimônio. Hesitei e parei a alguns passos daquela que deveria estar ao meu lado. Ela virou-se para o marido, fez um muxoxo e indicou um dos bonecos na prateleira. Ele assentiu com a cabeça e ela pulou em seu pescoço, rindo de felicidade e beijando-o por todo o rosto. Em seguida os dois entraram na loja, enquanto eu não sabia o que pensar ou o que fazer. Resolvi-me esgueirar pelos corredores e aguardar a saída dos dois. Não demorou muito e eles reapareceram. Com um urso enorme nas mãos, Aliel parecia um bebê de tão feliz. Os dois seguiram pelo imenso corredor na direção da praça de alimentação, seguidos de longe por mim. Foi ela quem indicou uma mesa no meio da praça, a mesma na qual ficávamos antes. Depois de acomodados ela virou-se algumas vezes, como se esperasse a chegada de alguém, talvez sentisse a minha presença. Enquanto isso, sentei-me a uma mesa onde não pudesse ser visto, por várias vezes tive vontade de ir ter com os dois. Aproveitei, então, o momento em que ele se levantou para ir, possivelmente, ao lavabo e me dirigi até Aliel. Para meu espanto, ela não se mostrou surpresa. Sorrindo ela me falou:
─ É difícil ver você, não?
Eu não sabia o que falar estava feliz por ela existir e se transformar na minha razão de viver, estava deslumbrado por ela ser assim tão franca, tão espontânea. Estático assim só pude perguntar:
─ Você casou com ele?
─ Foi. Ele não é tão garotinho como eu falei, é que tive vergonha... – e pela primeira vez eu senti certa falta de confiança em sua voz. Eu então indaguei:
─ Você é feliz?
─ E o que é a felicidade? Eu tenho dezesseis anos e nunca vi ou entendi o que significa isso. Ele me faz bem, é meu amigo e meu pai ao mesmo tempo. Faz e diz coisas tão carinhosas que às vezes acho impossível alguém fazer ou dizer o mesmo. Minha mãe vivia dizendo que sou louca que vivo inventando coisas. Ele me ouve e rir do que eu digo. Se eu o amo? Você pode me perguntar, e eu vou dizer que não sei. Assim como também não sei o que sinto por você. Você é meu irmão. Todas as vezes que sonho com você, você é meu irmão e eu tenho saudades de quando brincávamos na casa de nossa tia. Você não lembra? – perguntou com a mesma voz sumidinha de Miciane.
─ Lembro – afirmei – mas não foi nessa vida – continuei – foi numa outra. Um dia desses, eu tive a visão da nossa casa, chovia muito e você estava muito assustada... – Ela como que iluminada arregalou os olhos e disse:
─ Agora eu lembro – e seus olhos adquiriram uma expressão triste – nossa mãe havia morrido. Foi muito triste e nós sozinhos tínhamos voltado para casa, quando começou a chover. Eu me escondi na cozinha enquanto você me procurava.
Enquanto ela terminava essa narração o marido se aproximou. Ela apontando para mim disse, retomando o ar serelepe:
─ Ernani, esse é meu irmão que eu falei.
Ele olhou para mim sem demonstrar surpresa, seu ar era mais analítico, possivelmente hábito da profissão, do que de cisma. Eu balancei a cabeça afirmativamente, e ele perguntou com a voz pausada:
─ O que isso tem de verdadeiro?
Em poucas palavras eu lhe expus o que sabia até ali sobre mim e Aliel, inclusive a vida em que fomos irmãos.
─ Ninguém como eu deseja mais desvendar esse mistério do que eu. – Finalizei procurando ver no semblante o que pensava aquele homem, enquanto isso Aliel nos fitava séria como um paciente esperando um diagnóstico médico.
─ Olhe, Daniel... é esse seu nome, não é? – Perguntou-me, e diante da afirmativa, continuou – Eu sou psicólogo, portanto um homem de ciências. Sendo assim eu não estou credenciado a crer em nada que se não possa explicar à luz da razão e da experiência. Isso que você me contou me parece totalmente absurdo. Entretanto alguns colegas já me falaram algo semelhante à regressão a vidas passadas. Eu nunca lhes dei atenção, é claro. Mas por outro lado, há anos observo Aliel, e ela não apresenta nenhum sintoma que indique distúrbio mental. Ela sempre falava no irmão que não tinha, ou relatava fatos desconexos, e isso, certamente, causou muito receio a seus pais a ponto de eles praticamente ma entregarem. – ao dizer isso sua voz tornou-se mais pausada ainda, como se não quisesse que Aliel ouvisse. – Sendo assim, garoto, eu estou disposto, se ela quiser, é claro, a tentar sessões de regressão. Vou falar com alguns colegas que já têm experiências nessa área para providenciarmos as reuniões. Mas há um detalhe: eu quero que você esteja presente.
Dizendo essas últimas palavras ele me deu seu cartão de visitas e anotou o número da residência atrás. Apertou-me a mão e se despediu. Aliel abraçou-se a mim, e os dois saíram.
Eu não me sentia triste nem feliz. Sentia-me como alguém que está realizando uma tarefa e não pode esboçar nenhuma reação enquanto ela não estiver concluída, como um jogador na marca do pênalti, ou como uma dançarina no Teatro Municipal. Alegrava-me ter visto Aliel, apesar de ela estar casada. Talvez porque me confortasse a idéia de que o marido era alguém tão preocupado com sua segurança e saúde. Nada nele me parecia ser algum usurpador de inocências ou um velho libidinoso, como eu pensara outrora. Além disso, ele me demonstrara confiança ao me dar o número do telefone de sua casa. Isso, aliado a idéia das sessões de regressão, me colocava numa posição privilegiada quanto ao destino de Aliel e me fazia ver que eu continuava ligado a ele. Desde já eu ansiava pela seqüência dos fatos.


CAPÍTULO XIII
“Sic vos non vobis melificatis, apes.”
(Vieira)

Os dias que se sucederam àqueles acontecimentos me foram tomados pela faculdade. Cada dia a grade curricular me apertava mais, e as provas em cima de provas me deixavam às vezes sem noção do dia e da noite. Abria Atlas anatômicos, fechava-os; entrava em laboratórios, saía deles e o cheiro forte do formol me entontecia. De repente me pegava com a barba por fazer, entrava no banheiro, olhava o relógio, passava a mão no rosto e deixava a barba já crescida pra lá. Os cabelos acompanhavam o mesmo ritmo. Meu pai, talvez cansado de me ver pra lá e pra cá, fez um esforço, pediu emprestado um dinheiro e me presenteou com uma moto, uma CG125. E eu saí pelo meio do mundo de moto, corta carro aqui, entra em corredor estreito ali, avança um sinal acolá. Certa vez eu percorria um corredor formado por duas filas de carro quando apareceu bem na minha frente um homem puxando um garotinho pelo braço, mal deu tempo de desviar, quase bato no carro a minha direita. O homem me olhou bravo e vociferou:
─ Você não sabe que é proibido andar em corredor, seu merda!?
O sangue subiu-me a cabeça e eu retruquei com palavras ásperas das quais não me lembro agora, mas não foram de agradecimento. Mais tarde enquanto almoçava, fiquei pensando no ocorrido, e me veio o remorso por ter sido rude com o cidadão, que na realidade era quem tinha razão. Além do mais ele vinha com o filho e se eu não atropelei os dois foi porque ele teve cuidado ao atravessar o tal corredor. Entretanto o que mais me doía era a minha incoerência, uma vez que eu sempre achei os motoqueiros um bando de irresponsáveis, dizia para todo mundo que não entendia por que eles não andavam nas pistas, como todo veículo deve andar. No entanto uma coisa é você reclamar dos outros, outra é alguém reclamar de você. E eu pensei “meu Deus, como nós somos incoerentes, como somos hipócritas, como só pensamos em nós! Se alguém faz algo ilegal, está errado; se somos nós que o fazemos, estamos certos e ninguém pode reclamar.” Naquele momento lembrei-me de um vizinho que vociferava contra o adultério. Para ele mulher-adúltera boa era mulher-adúltera morta. Alardeava sempre que algum caso chegava a seus ouvidos “comigo é na bala”. Até que a sua esposa, a quem ele não permitia trabalhar para não “se perder” o traiu. O quarteirão todo ficou sabendo das puladas de cerca dela, menos ele. Ninguém lhe dizia o que estava acontecendo porque ninguém queria ser responsável por um crime passional. Até que deu-se o desmastreio, e ele a flagrou em péssima hora. Nada fez. Alguns dias depois saía de mudança para outro bairro, pois, segundo ele, “as pessoas dali eram muito fuxiqueiras, e nem ele nem a esposa tinham nomes para andar em bocas de matildes.” Seria irônico se não fosse trágico. Eu refletia naquela situação e novamente me perguntava como é interessante o pensamento e lembrei-me da letra da música: “O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Para minha surpresa, vi o homem e o filho, os quais eu quase atropelava, entrarem no restaurante. Ele não me reconheceu, é óbvio, devido ao fato de eu estar de capacete. Então pensei que ali estava uma boa oportunidade para eu me retratar, pedir desculpas, afinal eu reconhecera para mim o erro, mas isso só não bastava, precisava reconhecê-lo também para os outros, pois só assim poderia ficar em paz com a minha consciência. Dirigi-me então até ele e fiz o que devia. O homem ficou deveras agradecido e também se desculpou. Meu ser ganhou uma leveza excepcional, diria que fiquei feliz. Naquela noite eu não iria dormir com um peso sobre os ombros. Lembrei-me então do Wellington e sobre o que havia me falado sobre pedir desculpas a alguém a quem magoamos. Abri a janela e olhei as estrelas. Vênus brilhava intensamente e eu pensei que se os espíritos evoluídos realmente se tornam estrelas ao morrer, aquele rapaz com certeza está brilhando nessa imensidão espacial. Lembrei-me de súbito de fazer a barba e já me dirigia ao banheiro quando o telefone tocou. Era Aliel, para minha alegria. O marido havia viajado para um congresso e ela estava se sentindo sozinha. Conversamos por quase uma hora e percebi que ela alternava momentos de alegria e de tristeza. Quando ela desligou, eu pensei que talvez a regressão resolvesse alguns de seus dilemas e ela se tornasse uma moça normal para decidir seu futuro com mais clareza, e eu esperava fazer parte dele, é claro, enquanto uma voz interior me dizia “você já faz parte da vida dessa moça, aliás, você sempre fez”.

quarta-feira, 4 de março de 2009

CAPÍTULO X
“A minha felicidade está sonhando
Nos olhos de minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada”
(Vinícius de Morais)

Era começo de ano novo e recebi muitos telefonemas de parabéns, agradecia meio constrangido, pois não achava que passar num vestibular não era motivo para tanta celeuma. Uma noite, já estava quase dormindo quando telefone tocou mais uma vez, já estava meio aborrecido, atendi com uma voz um tanto sem graça, quando reconheci a voz. Era Aliel. Nossa que coisa boa me estava acontecendo. O mais estranho era que sua voz no telefone me levava no tempo há quase mil anos, era a voz de Ranjicniami . despertei para entender o que ela falava:
─ Oi, cê tá me ouvindo?
─ Estou, claro, tudo bem? – Falei enquanto me recompunha do susto.
─ Você não me ligou, tá sumido. – Falou ela.
─ Liguei sim – retruquei já refeito – é que você nunca estava. Então pensei que você não queria falar comigo.
─ Pois ninguém me deu recado algum.
─ E por que você não ligou?
─ Eu tinha perdido o telefone, rapaz, acredita? – Falou, como um garoto – Só hoje é que eu achei. E eu pensei assim: num vou ligar não, se o Daniel quisesse falar comigo ele tinha me ligado.
─ Tá bom – disse eu já quase sem palavras.
─ E quando eu te vejo? – Indagou ela de súbito.
─ Não sei, quando você quiser... e o seu namorado?
─ Namorado! Você quer dizer noivo... é minha mãe resolveu que nós devemos ficar noivos e casar no próximo ano. Sim mas a gente podia se ver... ou você não quer?
─ Claro! – disse eu – Mas onde?
─ No shopping, naquele mesmo lugar. Tá bom?
─ Tá ótimo.
Fiquei por muito tempo saboreando a voz daquela menina que estava destinada a mim, mas que ia casar-se. Não sei por que eu não pensava no fato de ela estar noiva eu só pensava em sua voz milenar e eu via o rosto de Ranjicniami e o cheiro do mar invadindo minhas narinas.
No dia seguinte eu estava como combinado à sua espera na praça de alimentação quando chegou o garçom e me entregou um bilhete no qual estava escrito: “passei mais cedo e deixei esse bilhete com o garçom porque não posso vir ao seu encontro, desculpa tá.” Nossa que angústia medonha eu senti. Que chato. Eu me preparara desde a manhã para ser feliz e de repente vejo minha felicidade roubada por um pedaço de papel. Chamei o garçom, paguei a conta e quando ia me levantando ouvi uma voz no meu ouvido, baixa e em forma de uma melodia de ninar “enganei o bobo na casca do ovo”. Era aliel, que sorria a minha frente. Eu não sabia o que pensar ou o que dizer, eu estava abobalhado. Não sabia se sorria ou ficava sério. Só quem ama e se defronta com a mulher amada inesperadamente sabe o aspecto patético com que eu fiquei. Eu não me contive, num gesto súbito tresloucado, apaixonado eu a beijei, enquanto ela ria. Aos poucos seu sorriso foi sumindo e seus olhos fechando e eu pude senti-la. Ah, meus amigos, o que eu senti naquele momento foi algo indescritível, sentir o sabor de seus lábios o contato com sua pele é algo que nunca vou conseguir descrever por mais que me esforce. Depois não iria beijar muitas mulheres, mas aquela sensação de beijar Aliel tenho certeza que não há igual eu... Depois de nos recompormos, eu não tinha palavras. Ela foi quem começou:
─ Eu adorei esse beijo e esperava por eles há tempo, mas eu sou uma moça noiva, seu Daniel, o que as pessoas vão pensar. Deixa que eu faço. – e me beijou de novo, enquanto ria.
Durante o resto da tarde ficamos juntos. Ela me contou a história de seu noivado, que esperava que o noivo desistisse desse casamento, que havia sonhado comigo, e eu embebido fitando aquele rosto lindo. Depois eu falei de minha aprovação no vestibular, das angústias que sentia toda vez que ligava para ela e ninguém a chamava. Rimos brincamos um com o outro e nos beijamos como se a vida fosse um beijo e nós estivéssemos simplesmente vivendo. E ela sempre com suas brincadeiras e seu jeito brejeiro só me fazia amá-la mais ainda. À noite, enquanto repassava o dia, pensava como seria embriagante ter Aliel nos meus braços, para nunca mais nos despedirmos, mas até eu duvidava de que esse dia chegasse. Às vezes imaginava ser inacessível ficarmos juntos para todo o sempre, e ninguém ou nada nos separar. Quanto ao noivado, eu não me importava, como se já esperasse por isso, como se já soubesse o desenrolar dos acontecimentos, como se previsse que não era chegado ainda o momento, e, pior, que esse dia nunca chegaria, e minha sina fosse andar pela terra feito um sonâmbulo em busca da felicidade plena que me era já clandestina.
A partir daquele dia passamos a nos ver quase todas as tardes, e eu passei a cogitar a idéia de que nunca mais fôssemos deixar de nos encontrar. Aliel pouco falava de seus problemas a ponto de eu os esquecer. Estava vivendo um momento singular. Por um lado a faculdade que me realizava a cada dia como ser humano. Era aquilo para que me havia destinado; do outro, Aliel que me embriagava com suas brincadeiras, seu sorriso e seus beijos, como se a vida fosse o meu desejo, beijar o seu sorriso sem cansaço era o portão do paraíso que se me abria em terra, às vezes me beliscava para ver se não estava sonhando. Noutras pensava se aliel não estava era brincando comigo. E no meio dessas reflexões era surpreendido por um beijo ou uma atitude inesperada dela..
No entanto esse idílio teve fim, o que era doce se acabou, e o que me restou foi o doce amargo da resignação. Um dia estava a sua espera, quando uma senhora se aproximou de mim, sentou-se a minha frente e me encarou. Percebendo meu semblante questionador, ela me estendeu um papel. Era um atestado médico, nele havia escrito um diagnóstico nada agradável para mim. Segundo o papel Aliel sofria de perturbações mentais, esquizofrenia que se alternavam com estados de euforia compulsiva.
─ Desde que era uma garotinha – explicou a mulher – Aliel alternava estados de depressão e alegria. Falava constantemente de um irmão que nunca teve...
Nesse ponto eu a interrompi para lembrar-lhe que eu a havia conhecido na praia há dez anos. A mulher, no entanto, ignorou minhas palavras e continuou impassível:
─ ... No início nós pensávamos que era só mania de criança. Com a mente muito fértil, elas costumam imaginar coisas. No entanto o caso se agravou e tivemos de levá-la ao médico. O resultado infelizmente é esse que você está vendo. Nós procuramos fazer tudo para que ela se sentisse uma criatura normal, mas ela nos desobedece e tem novas recaídas. Numa de suas crises, Dr. Ernani iniciou um tratamento, e ela melhorou sensivelmente. Com o tempo e o convívio ele acabou se apaixonando por ela e a pediu em casamento. Ele é viúvo, não tem filhos e é tão dedicado a ela que eu e meu marido achamos interessante a idéia. Porque se ele é psiquiatra e se dedica tanto a ela, daria um bom marido. O Senhor não acha? – como não obteve resposta para sua pergunta cretina, foi em frente – O senhor é um rapaz novo, inteligente deve compreender o que é melhor para Aliel. Por favor, afaste-se dela, ou melhor, esqueça-a, se acaso você a encontrar, o que vai ser um pouco difícil – nesse momento a mulher deixou escapar um leve sorriso de desdém – diga a ela que não lhe quer mais, que ama outra. Passar be... – ia se despedindo, mas eu a interrompi:
─ E onde está sua filha?
─ foi passear com o noivo, foram à Europa, ele disse que os ares europeus vão ajudá-la no tratamento. E por favor, deixe-a em paz – disse isso e afastou-se.
Eu fiquei arrasado, pensando em quem estava mentindo, ela ou Aliel, e que noivo misterioso era esse, um vizinho ou um psiquiatra viúvo. E me lembrei de Ranjicniami e de seu problema com o pai, também viúvo. Tive vontade de levantar dali, seguir aquela mulher para ver onde ela morava, no entanto pairou sobre mim uma inatividade que me perturbava. Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser esperar, como se a vida me fosse essa eterna angústia de esperar o dia seguinte ou a vida seguinte.





CAPÍTULO XI
“Amontoei também prata e ouro e tesouros de reis e de províncias; provi-me de cantores e de cantoras e das delícias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres.”
(Eclesiastes: 2 – 8)


Nos dias que se seguiram liguei para Aliel, mas fiquei sabendo que o número havia sido mudado, busquei pistas em lugares que ela, nas nossas conversas, havia citado. Debalde, nada nem ninguém a conhecia. Foi então que lembrei que ela sempre falava da casa de uma tia cujo endereço ela sabia direitinho. Parecia que de seus familiares em segundo grau o único endereço que ela conhecia de fato era esse. O de sua casa ela nunca mencionava. Sempre que eu me referia a ele, ela desconversava, me embromava, me beijava e eu acabava esquecendo. Já a localização de onde morava essa tia ela vez por outra estava mencionando. A ponto de eu o memorizar. Diante dessa possibilidade, um dia, ao sair da faculdade, tomei o ônibus e fui até lá. Tratava-se de um casarão abandonado, no meio de uma rua bastante movimentada. Todo o espaço que separava as grossas grades de ferro do prédio principal estava tomado pelo mato. Os pujantes cadeados impediam que os portões fossem transpostos de forma natural. Ao fundo, a casa de dois pisos e duas varandas que cercavam os cômodos internos em toda sua extensão, o telhado, ao estilo europeu, terminava nos quatro cantos em calhas por onde escorria a água da chuva que era conduzida aos lençóis subterrâneos por dutos de bronze que caiam na vertical. Os janelões, circundando a sala, indicavam tempos áureos de festas e saraus, no centro da platibanda o brasão trazia o nome da família. Isso tudo eu via de longe. Porém não resisti e, diante dos olhos dos passantes, eu transpus o muro de ferro. Com carrapichos pendurados nas calças e nos tênis eu me dirigi à casa, receando pisar em alguma cobra. No interior, a mansão se mostrava mais portentosa, havia marcas ainda dos que ali habitavam, a louça dos lavabos e sentinas quebrados era riquíssima, as torneiras, arrancadas por vândalos, deviam ser de metal caro, o mesmo de alguns porta-toalhas que jaziam intactos nas paredes. Enquanto explorava os corredores e quartos, encontrei uma escadinha apertada que levava ao sótão e lembrei que Aliel me falou certa vez de uma escada estreita que havia na casa da referida tia e onde costumava se esconder quando brincava com os primos. Ela me contou que uma vez, no topo da escada avistou um parapeito e tentou subir até lá para se esconder dos primos, com quem brincava de esconde-esconde. Mas ao colocar o pé direito no parapeito e tentar levar o esquerdo até lá, teve medo e assim ficou, com uma perna no topo da escada e outra no balcão, numa altura de quase quatro metros, por mais de uma hora, sob o riso baixinho dos primos, que zombavam de seu choro assustado. Até que um empregado da casa veio-lhe em socorro. Lembrando essa história, eu olhei para cima e avistei, ao lado do topo da escada, a um passo dele, um pequeno balcão que saía da parede e finalizava com o formato de uma cabeça de leão, símbolo do brasão que se encontrava na fachada da casa. Fiquei sem saber o que dizer, pois se aquela história contada por Aliel fosse verdade, ela era uma lembrança de uma vida anterior, pois aquela casa estava abandonada há pelo menos meio século. De súbito uma sensação estranha me ocorreu e eu me senti como em uma máquina do tempo, cenas passavam rápido em minha frente e eu desmaiei.
Eu estou na mesma casa só que totalmente nova, sem rabiscos na parede ou marcas quaisquer de abandono. Está chovendo muito, os trovões parece que vão jogar a casa pelos ares, enquanto os relâmpagos iluminam o interior em curtos espaços de tempo. Eu procuro alguém. Ando pelo comprido corredor, cujas cerâmicas brilham sob meus pés, subo a escadinha estreita que dá para o sótão. Empurro com jeito a entradinha, acendo uma lanterna a gás, ilumino o interior, mas não vejo nada, só o gato de pêlos eriçados esconde-se num canto. Entro num dos quartos, ergo a lanterna mais uma vez e nada. Vou passando pela cozinha, quando ouço um gemido, entro e vislumbro um vulto por trás do fogão. A menininha corre para mim, me abraça e me diz com voz sumida:
─ Eu tô com medo. Cadê a mamãe?
─ Tá bom, Miciane, não chore, eu tô aqui, nada de ruim vai acontecer.
─ E se os monstros destruírem nossa casa? O Emerson e o Marcílio disseram que o trovão são as pedras que vão matar todo mundo. – e volta a choramingar com sua vozinha de falsete – Eu tô com medo.
─ Calma. Aqueles primos são uns chatos, só querem fazer medo a você.
─ Cadê mamãe? – Pergunta novamente.
─ Mamãe está viajando, mas vai voltar logo.
─ É verdade que nós vamos ter de mudar daqui?
─ É, mas ainda vai demorar, relaxa – nesse momento me sobe um nó pela garganta e eu me abraço mais ainda à menina – relaxa, tá – mas minha voz sai atropelada pelo nó e as lágrimas escorrem devagar pelo rosto. De repente, um trovão ecoa tão forte e tão próximo que eu sinto a casa balançar.
Despertei com alguém me sacolejando. À minha frente está um homem que penso ser algum mendigo, entretanto percebo algo na sua voz que denota condição diferente.
─ Cê tava desmaiado, o que foi que houve?
─ Desculpe, eu tava aqui e de repente o mundo rodou... Você mora aqui? – perguntei.
─ É, eu durmo aqui. – disse – Você sabe que horas são?
Só aí foi que eu percebi que já era noite e que o chegante iluminava a casa com uma lamparina.
─ Nossa, faz tempo que eu tô aqui. – assustei-me, pensando que aquelas curtas cenas demoraram tanto para se passarem – Que horas são?
─ Vão dar oito horas – disse ele tirando um relógio, ou melhor, uma cabeça de relógio do bolso traseiro da calça.
─ Pois eu já vou, desculpe, tá.
─ Espere pra tomar um café. A gente aproveita e conversa, eu não converso muito. – Disse isso e apontou para a solidão dos aposentos em ruína.
Aceitei. E enquanto tomávamos café ele me contou parte de sua vida. Narrou que era filho de pessoas pobres e que cresceu sonhando em enricar. Começara a trabalhar desde cedo e quando já estava desistindo de ter uma vida de talões de cheque e carros importados, a vida lhe aprontou uma surpresa. Através de uma sociedade escusa com algumas pessoas ligadas a sindicatos, apossou-se de uma bolada e viu aí a oportunidade de abrir uma empresa. Logo era empresário no ramo de calçados e a vida tornou-se um entrar de dinheiro em sua conta bancária que não tinha fim. Era paparicado por muitos e desprezava a todos. “Tinha a impressão de que todos queriam o meu dinheiro, achava que as pessoas só se aproximavam de mim pela minha riqueza, pela minha opulência. E tratei de me afastar deles, principalmente dos amigos da infância e da adolescência, pois via neles o atraso, o passado de privações, as dificuldades em conseguir dinheiro para tomar uma cerveja, o aperto dos coletivos e a angústia de se não ter trabalho. Cheguei até a esnobar aqueles que me eram outrora os mais próximos, exibindo a eles, sem lhes oferecer, copos cheios de uísque caro. Com o tempo passei a esnobar também meus familiares e me isolei na minha fábrica e na minha mansão, com mulheres e falsos amigos. Ainda bem que não casei, não tive filhos, por isso, como diria Machado de Assis, não transmiti a ninguém o legado de minha miséria. Tudo o que a vida dá ela toma. Não importa o que seja. Se ela vir que você não merece, ela vem e leva. Pode ser não só riqueza material, mas também a miséria moral, a pobreza, ou uma doença. Ela te dá e ela vem buscar. Se você é bom, solidário ela tira de você essa bondade e te dá riqueza. Mas a sua bondade é inata, ela te deixa a opulência e devolve tua bondade, tua solidariedade em dobro. Mas se tua bondade é só fachada, ela te leva a opulência e te devolve não a bondade, mas a angústia e o orgulho para viver sem ninguém. Comigo foi assim. Quando dei por mim estava sem nada e sem ninguém. A ruína me veio rápido, como a opulência, confiei em pessoas às quais não devia dar crédito, aplicaram-me um golpe sujo e mero, zerei, até a casa a justiça confiscou. Os falsos amigos e as mulheres viraram gases, evaporaram, sumiram, não me queriam, como nunca me quiseram. O meu orgulho não me deixou sequer voltar para a casa de meus pais. Um dia, desesperado, tendo gasto os últimos centavos numa refeição, subi no alto de um prédio para me jogar, mas ouvi a conversa entre dois funcionários de serviços gerais do edifício. Um falava para o outro do filho que ia nascer, era o terceiro. Quando o outro perguntou se dava para alimentar três filhos mais a mulher, ele respondeu que sim, que cada filho que nasce é a resposta de Deus de que devemos continuar lutando pela sobrevivência, é a resposta de Deus de que o mundo deve continuar. Ele falava do filho que ia chegar com tanto carinho, com tanto amor que sua voz embargava. E eu ali querendo me matar. Naquele momento eu tomei uma decisão. Decidi que ia voltar a trabalhar para depois conquistar as amizades que jogara fora, principalmente a de meus pais e meus irmãos. Mas algo me incomodava, eu não podia continuar ali no Maranhão eu precisava purgar meus erros longe dali. Foi aí que resolvi vir aqui para Fortaleza. Cheguei faz duas semanas. Como não tinha onde morar, vim para cá. Coloquei minhas roupas que sobraram no chão e elas me servem de cama, enquanto eu as engomo com a quentura e o peso do corpo, numa relação de cooperação. Uso somente duas mudas de roupas. Quando estou usando uma, a outra está enxugando e assim vai. No começo desta semana consegui um emprego, amanhã talvez eu alugue uma quitinete...” Ao dizer essas últimas palavras, com a voz pausada, ele se virou simulando remexer o fogo para esquentar o café. Aproveitei o silêncio para me despedir. Já na rua, após saltar as grades, ainda o ouvi chamar:
─ Ei, não se esqueça do que lhe contei, não faça jamais como eu fiz.
Acenei para ele, num gesto afirmativo e saí.
Chegando a casa, tentei dormir logo, mas foi em vão. O acontecimento da tarde e a história ouvida à noite se embaralhavam em minha cabeça, até que, como num processo seletivo natural, o transporte aos tempos áureos da casa e as aflições de Aliel, agora encarnada numa garotinha de nome Miciane, tomou todo o espaço de meus pensamentos. O que eu estava fazendo ali? Está claro que eu era ali o irmão a que Aliel se referia. É certo também que nós éramos bastante ligados. E nossa mãe, o que realmente acontecera a ela? De uma coisa eu tinha certeza: eu e Aliel estávamos cada vez mais ligados um ao outro através das existências. Urgia, pois, que eu a encontrasse, para que juntos desatássemos os nós que nos engodavam o destino e pudéssemos enfim ficar juntos. Mas agora eu precisava dormir, já que as provas semestrais se aproximavam.




NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...