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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

TRAGÉDIA EM GIL VICENTE

CAPÍTULO I


Sandra estava sentada num banco de cimento, do pátio da escola Redentorista. Os cabelos negros cobrindo o rosto, um livro sobre as pernas e um marcador entre os dentes formavam uma imagem perfeita de uma estudante, digna de um quadro de Manet. Estando assim, não viu quando uma garota se aproximou. A menina, meio sem saber o que dizer, ficou por alguns segundos fitando a outra. Sandra, depois de sublinhar um trecho, ergueu vagarosamente os olhos:
─ Oi, desculpe, eu não te vi chegar. Senta.
─ Eu é que peço desculpa, – respondeu a outra – você estava tão concentrada que eu tive medo de atrapalhar.
─ Qual é o seu nome?
─ Genoveva. – respondeu a recém chegada com um leve tremor de voz – Estranho não meu nome? Indagou quase se desculpando pelo nome de batismo.
─ Claro que não! Eu acho legal, é diferente. As pessoas é que têm preconceito contra tudo, até com nomes. O meu é Sandra, Sandra Batista.
Dizendo isso, Sandra notou um ar mais à vontade por parte da nova amiga e ficou feliz por ter conseguido seu intento. Genoveva tinha a mesma idade de Sandra, a mesma altura, mas um ar bem mais infantil. Seus cabelos curtos como o de um menino emoldurava um belo rosto, cujo perfil estava completo pelo sorriso formado por duas carreiras de dentes perfeitos. Eram nove horas do dia, e o pátio estava vazio. Só havia as duas, frente uma para a outra. Mantendo sempre um meio-sorriso, Sandra continuou:
─ Você é capricorniana, acertei?
─ Sim, mas como é que você sabe? Perguntou Genoveva, franzindo o cenho.
─ Chute. Às vezes acerto, às vezes não. Mas as suas mãos presas uma à outra é uma característica desse signo. Eu sou de Aquário e, de acordo com a astrologia, nós duas não vamos ser boas amigas porque você, quer dizer, Capricórnio é o inferno astral de Aquário, mas isso não quer dizer que não vá ocorrer o contrário...
Ainda atônita, Genoveva, que já ficara à vontade, observava o que a menina falava com entusiasmo, e antes que a outra declinasse todos os signos do horóscopo, interrompeu-a:
─ Desculpa, eu já vi que você adora astrologia e, pelo seu entusiasmo, deve saber muito. Mas eu queria, antes de ficarmos boas amigas, eu queria conhecer a escola. Eu estou chegando agora, meu pai veio transferido pra cá, ... mas eu não tô vendo ninguém!
Sandra mantendo o sorriso em fogo brando, guardou na bolsa calmamente o livro de Química no qual estava estudando, segurou o braço da outra e saíram, pelo pátio, enquanto Sandra sussurrava algo para a menina, como se lhe revelasse um segredo de estado. Neste momento, outros alunos chegavam, com certa algazarra, e logo se dirigiam à biblioteca, ou às diversas salas de estudo em cujas entradas se lia a frase, em letras garrafais: “SILÊNCIO, SALA DE ESTUDO!”

CAPÍOTULO II




O Colégio Redentorista era fruto de uma batalha de anos de seu fundador, que o concebera como a um filho. Era, como ele gostava de dizer, a escola do futuro (─No futuro todas as escolas serão assim.). Era um empreendimento bastante ousado e que levou muitos anos para sair do papel. Professor Cícero, como gostava de ser chamado pelo amor da profissão, por muito tempo fora motivo de troça entre os colegas. Desde os tempos de estagiário, em que a idade é desculpa para tudo.
─ Ah, ele fala assim porque não conhece a realidade da sala-de-aula! Quando ele estiver lá, com os “cãezinhos” a cozerem-lhe o juízo, aí eu quero ver. Diziam os colegas de faculdade sempre que ele dissecava seu ousado projeto educacional. O certo é que logo que conseguiu seu primeiro emprego, numa escola particular, o Professor Cícero, como já exigia ser chamado, surpreendeu colegas, coordenadores e o diretor, ao levar os alunos para o pátio e, com todos sentados no chão, ficou contando histórias de contos de fadas. Os alunos por sua vez se revezavam narrando histórias de filmes a que tinham assistido. Mesmo com o sucesso da aula, mesmo com os alunos não despregando o olho do professor ou dos colegas durante as contações, mesmo com os comentários positivo dos alunos, o jovem professor foi chamado à sala do diretor. Com o cenho franzido e as grossas sobrancelhas arqueadas, o diretor fez um discurso em que descreveu como na Educação não há que ter inventivas, aquele procedimento não tinha cabimento porque lugar de aluno era em sala de aula, enfim: as regras do jogo não podiam mudar...
A partir desse dia, Cícero, com palavras amenas, explicava nos corredores, na sala-dos-professores, ou nos bares sua visão sobre a educação. Entre as idéias propostas pelo rapaz estavam as seguintes: mudança nas salas-de-aula, como fim dos quadros-negros, verdes ou brancos, “pois só assim os professores buscariam formas alternativas de ministrarem seus conteúdos”; fim das provas com intuito avaliativo, pois, segundo o mestre, “as provas não provam conhecimento”, para ele as provas, testes, não importa a terminologia, deveriam ser realizados com intuito simulativo, as avaliações dos alunos deveriam ocorrer no dia-a-dia, pela freqüência, tarefas realizadas e atividades espontâneas por parte dos próprios alunos; divisão das matérias por grupos de alunos respeitando suas tendências. Por exemplo, se um aluno demonstrar aptidão para as letras, esse aluno teria a cobrança de Matemática, Física e Química reduzida. Ele aprenderia somente o básico e, por conseguinte, a cobrança nas áreas de Português, História, Artes, Línguas seria redobrada, e assim por diante; e a mais revolucionária de todas as sua idéias era o fim das aulas, quer dizer, na escola haveria professores e alunos, mas esses só se encontrariam quando os alunos quisessem tirar dúvidas.
Foi explanando, em certa reunião da escola, essa nova lógica educacional que ele ficou sem emprego. Como na cidade havia muitas escolas, logo ele ingressou em uma outra e resolveu não mais falar de seus projetos, mas creditou-se a alimentá-los, só revelando-os a poucos, que o ouviam, mesmo que rissem interiormente.

CAPÍTULO III


Era meio dia e meia, quando Sandra chegou para o almoço. Como sempre chegava gritando quando havia alguma novidade, e não era uma nova amizade uma grande novidade! Ela foi logo dizendo para a mãe:
─ Mãe, conheci uma menina novata na escola. Ela é capricorniana e isso eu adivinhei porque a coitadinha não despregava uma mão da outra...
A euforia da menina foi contida pelo semblante concentrado de Dona Lourdes. A filha conhecia muito bem aquele rosto, sabia que a mãe brigara mais uma vez com o pai. E isso a entristecia muito porque a cada dia que passava ocorria mais amiúde, e ela temia por imaginar onde iria parar, segundo as amigas que tinham pais separados, a desunião oficial deles começava sempre assim. Dona Lourdes percebeu os pensamentos da filha e tentou inutilmente consertar:
─ Diga, minha filha, você estava falando de sua nova amiga, qual o nome dela?
─ Genoveva, respondeu a garota sem nenhum entusiasmo. Deu um beijo na mãe e saiu para o banho, pensando, como sempre, numa maneira de solucionar aquele problema. Para dali a alguns dias estava marcada uma palestra na escola sobre relacionamento, e algo lhe dizia que a solução para o seu drama doméstico podia estar ali.
─ À tarde passou rápido. Sandra reviu a matéria de Química, pois em breve haveria o provão e ela queria se manter na média, dentro do ponto de corte, como dizia o Professor Cícero. Por outro lado, estudar ajuda a passar o tempo, não existe pior inimigo para o tempo que estudar. Quando se abre um livro qualquer, ou se pega uma bateria de exercícios de Matemática, o tempo corre feito o vento. Sandra nem olhou para o computador, que ficou à tarde toda paradão, frio, sem vida. À noitinha, depois de guardar seu material, foi para a praça, conforme tinha combinado com Genoveva, para apresentar “o pessoal” à garota. Beijou a mãe e o pai, que se comportavam como dois estranhos no mesmo ninho, era sempre assim. Pegou a bicicleta e pedalou devagarinho para desanuviar os pensamentos. Não gostava do modo como os colegas e as colegas agiam. Achava-os fúteis. Costumava dizer para a mãe que conversar com um era conversar com todos. Se estivesse falando com o Almir, por exemplo, e virasse porá o Germano, possivelmente não perceberia a diferença, já que eles falavam as mesmas coisas, tipo “Hoje conheci uma menina no messenger...” ou “Golaço, aquele do Renato...”. Com as meninas também não era diferente. A Flavinha: “O professor de Matemática tá pegando no meu pé...”, A Juliana: “Nem que eu brigue com a minha mãe, mas eu vou no show do Relíquias...”. Mas o prato predileto delas era o atual ficante. E o pior é que o atual ficante da Iolanda era o ex da Marta, e o atual da Marta era o ex da Joana e assim por diante. Mas Sandra gostava deles, sabia que ela era que amadurecera rápido, talvez a astrologia explicasse isso. Já lera algo a esse respeito. A mãe costumava dizer que ela quase não tivera infância, como as outras meninas. Vivia agarrada com livros, sua curiosidade por bichos, plantas, pessoas era incrível para uma garota da sua idade. Quando conhecia alguém perguntava logo o dia do nascimento. Com o tempo, passou a tentar adivinhar o signo delas pelo comportamento ou pelos traços físicos. A diferença entre ela e as outras garotas era realmente muito grande. Agora, por exemplo, enquanto as outras meninas “ficavam”, ela namorava sério, não admitia traição. Seu relacionamento com Jonas era franco, aberto, mas firme. É claro que não pensava em casamento, pois achava-se e era muito nova para isso, entretanto tinha em mente que qualquer relacionamento entre duas pessoas, até mesmo uma amizade deve ser encarado de forma séria e responsável. Quando acabar, acabou, cada um para o seu lado sem rezingas, nem mágoas.
O Centro, como sempre àquela hora, estava movimentado. Bicicletas, motonetas, motos e carros circulavam de lá para cá. De vez em quando se ouviam alguns gritos de um gaiato, com ditinhos dirigidos a alguma garota. Isso tudo sem falar nos barulhos indecifráveis, ofertados generosamente pelos sons potentes de alguns carros parados nos bares e lanchonetes. A lei municipal que proibia som de carro acima do permitido era ineficaz. Por mais de uma vez o prefeito tentara coibir essa atitudes, mas esbarrava na autoridade do dinheiro, e é claro que quem participava daquelas farras não eram os filhos dos cidadãos comuns, a estes o braço da lei alcançava e baixava os sons de seus automóveis. A praça da Amizade era sem dúvida o lugar mais tranqüilo para se estar, namorar, conversar. Muitos jovens e muitas jovens preferiam os diversos cafés eletrônicos, onde se enfurnavam nas salas de bate-papo ou nas disputas eternas com outros “intergamers”. Ma a Praça da Amizade era o lugar. Lá todos iam, e em todas as noites. Crianças, jovens e adultos dividiam os espaços, ocupavam os bancos e os passeios. Casais de namorados ou de ficantes passeavam alheios às olhadelas das línguas maledicentes. Os idosos fitavam o céu e recordavam o passado sem luz elétrica, quando Gil Vicente ainda não havia sido tomada pelo progresso e quando nem tinha esse nome. Àquela hora o vento trazia das casas o cheiro forte do café, que impregnava a praça, e esse aroma se confundia com o cheiro das rosas espalhadas pelos diversos jardins que ali havia. É que a praça fora construída, estrategicamente, num ponto alto da cidade. De lá se tinha a impressão de estar perto do céu. Lá se estava perto dos homens. Era um ambiente quase mágico. Era como se se tratasse de outro mundo.
Quando Sandra chegou, sentiu um alívio enorme “puxa que diferença havia entre a praça e o centro!” Mesmo conhecendo bem aquele recanto ela não conseguia deixar de estranhar a diferença, e isso acontecia com todos que ali moravam. Ficou mais tranqüila quando viu Genoveva conversando com Lalinha, que toda faceira mostrava, não tão discretamente como devia, os rapazes à novata. Em breve todas conversavam e riam como se fossem velhas amigas. Flavinha, com sua mania de abreviar os nomes, já chamava a recém chegada de Genó. De repente a conversa foi interrompida pela Naiara que chegou, dizendo ter uma super novidade. Todos se calaram, e até Alfredo, que acabava de chegar, arregalou os ouvidos para melhor escutar, para saber da última:
─ Babado forte, dizia entre espantada e eufórica a menina, a rede de TV Mundo vai vir aqui gravar as cenas de uma novela!
─ Uau! Será que o Murilo vem? Indagava uma.
─ E a Luana Rocha? Perscrutava Alfredo. Eu adoro aquela atriz.
E a notícia se espalhou como um rastilho de pólvora pela praça até voltar para o centro, de onde tinha vindo. Sandra aproveitou a euforia e conversava com Jonas, já um pouco afastados do grupo, feliz por estar ao lado do rapaz e também por Genoveva já estar enturmada. Seus olhos brilhavam, mas ela quase não ouvia a voz do garoto, sua cabeça trabalhava a mil: “era realmente uma grande novidade aquela!”.

CAPÍTULO IV


O Professor Cícero estava atônito com aquela notícia: sua escola, cenário de cena de uma novela! Quando recebeu o telefonema do diretor da trama, ele pensou ser trote. A princípio, foi até um pouco rude com o homem, que lhe foi explicando o motivo da escolha. A emissora estava preparando uma novela voltada para o público jovem e o escolheu para diretor. Ele ficara sabendo por intermédio de um amigo do modelo revolucionário de escola que havia em Gil Vicente, simpatizara com a idéia e queria divulgá-la. Para isso, juntamente com o autor, criaram algumas cenas para serem gravadas lá. Em uma semana estariam chegando com os atores, os apetrechos e os escritos para o diretor da escola autorizar as filmagens.
O diretor do Redentorista estava sentado em sua sala lembrando as dificuldades pelas quais passara até aquele momento. As privações ano após ano para juntar dinheiro, as brigas junto ao conselho e às secretarias de educação para ter o seu regimento aprovado e, principalmente, o entrevero com os outros donos de escola, que o acusavam de irresponsável e até o ameaçaram. Depois desistiram da pugna com a certeza de seu fracasso. No entanto o pior ainda estava por vir. Quando foi inaugurada a escola, em um modesto prédio, e as matrículas começaram, é que ele percebeu que teria dificuldades em concluir seu projeto. Nos dois primeiros dias, as vagas se esgotaram. O que deveria ser motivo de festa passou a ser motivo de preocupação. Analisados os históricos dos alunos, O Professor Cícero chegou à conclusão de que sua clientela não era das melhores.
A escola funcionava da seguinte forma. Os alunos iam todos os dias à escola para registrar a presença e receber as tarefas diárias, as quais poderiam ser feitas em casa. Às sextas-feiras, eles prestavam conta com o supervisor, que fazia todas as anotações das tarefas entregues e não entregues. Três dias por semana, os alunos deveriam estar nas salas de estudo, acompanhados por um professor-orientador o qual tinha por finalidade tirar dúvidas dos grupos. Os estudos eram sempre feitos em equipes para estimular a cooperação. Cada sala-de-estudo estava designada para uma disciplina. No final de cada mês, era realizada uma avaliação abordando todas as disciplinas, tendo como fonte os exercícios resolvidos. As avaliações não tinham o objetivo de provar conhecimento. Elas eram simulativas, para estabelecer os “pontos-de-corte” dos diversos concursos a que os alunos se submeteriam após o ensino básico. As questões desses exercícios eram todas baseadas em vestibulares e concursos afins, adaptadas conforme a série. Nos outros dois dias, quarta-feira e sexta, eram realizadas atividades diversas, como palestras sobre assuntos de interesse dos alunos e da comunidade; seminários organizados pelos próprios alunos; gincanas de conhecimento; exibição de filmes, seguida de debates sobre os assuntos tratados nas películas; exposição de artes desenvolvidas pelos discentes e docentes, como música, pintura e outros. Esses dois dias eram uma festa só.
É claro que nem tudo foram flores no primeiro ano. Aliás, aquele foi o pior ano do Redentorista. Os alunos confundiram tudo. Iam ao colégio e não às salas-de-estudo, não faziam as tarefas, não estudavam, não tudo. O resultado foi catastrófico: as notas baixíssimas, a maioria dos alunos reprovada. Os pais daqueles alunos, como não tinham controle sobre os filhos e, principalmente, compromisso para com eles, jogaram toda a culpa no método do Professor Cícero, que “queria enricar sem trabalhar”. A escola quase foi fechada, primeiro por falta de alunos, no segundo ano de funcionamento os poucos alunos mal davam para pagar a folha de professores; segundo porque muitos pais reclamaram junto ao Conselho e o Professor Cícero teve de recorrer a liminares para o Redentorista funcionar. Até empréstimo ele teve de fazer para não ver seu sonho ir pelo ralo. Só após o décimo ano é que as coisas foram clareando. As dívidas foram pagas, a situação junto ao Conselho regularizada e a escola ganhou credibilidade. O Redentorista finalmente erigiu-se como uma alternativa de ensino, e o seu dono mereceu o respeito da cidade. Só o Senhor Clodoaldo, fazendeiro da região, que tinha uma escola falida nesse ínterim, não aceitava o sucesso do outro e credenciava a falência de sua escola ao diretor do Redentorista e não à desorganização com que a administrava. O pior era que dizia a todos que um dia veria o Redentorista desmoronar.
Dias duros aqueles, pensava o Professor Cícero. Agora sua escola seria cenário de uma novela, já pensou!

CAPÍTULO V


A noite de domingo estava bem animada. Espalhados pelo pátio da igreja, nas lanchonetes, bares e pizzarias, grupos diversos não falavam noutra coisa que não nas gravações das já famigeradas cenas. Gil Vicente ganharia o país e quem sabe o mundo, levada pelas câmeras de tevê. Já havia até um grupo de conservadores, sempre os mesmos, que queria proibir as gravações. Um texto assinado por seus componentes, no jornal Diário Noturno, em um dos trechos dizia “A tevê neste país é a janela que invade as casas e permite que a pornografia, os maus costumes e a luxúria saltem para as casas de bem. Esses ‘profissionais’, que não têm respeito pelas instituições eternamente sacras, como o Casamento, a Família e a Igreja, trarão, impregnado em seus corpos, o germe da indecência e da licenciosidade. Se permitirmos que eles entrem em nossa cidade, eles distorcerão as cabeças de nossos jovens e o demônio agradecerá a eles por isso. Nós lutaremos até o fim e usaremos todos os mecanismos possíveis para evitar que isso aconteça” Os demais habitantes dividiam as opiniões em debates diversos, afinal de contas Gil Vicente era uma cidade interiorana, com seus tabus e seus sonhos. Mas os jovens e as jovens não esperavam a hora de pôr os olhos nos atores, antes só vistos nas telenovelas e em alguns comerciais de tevê. Óbvio que não viriam todos os atores da famosa emissora, só alguns dos jovens talentos, já que a novela seria voltada para o público jovem. Não obstante tratava-se de uma novidade digna da quase paralisação que tomara conta da cidade.
Na pizzaria Siciliana, Sandra, de frente para os pais, perscrutava os seus movimentos, entre uma garfada e outra, feliz por vê-los bem. No entanto sabia que aquele estado era passageiro, pois em breve eles estariam novamente de mal. E a garota só pensava em encontrar uma solução definitiva para aquela situação. Seu meio-sorriso tornou-se quase largo quando viu Jonas, que lhe acenou de longe. Ela levantou-se, deu um beijo no pai e outro na mãe e foi ao encontro do namorado, sem ligar para os olhares vigilantes que os pais lhe destinavam.
Jonas era o que as meninas chamavam TDB (tudo de bom). Filho de um bem sucedido empresário, era discreto, educado, amante de livros e bonito, com seus olhos negros e grandes cílios que premiavam a pele morena e os grossos lábios. Tinha apenas dezesseis anos, mas com uma boa estatura e musculatura proporcional, arrancava suspiros das garotas, que morriam de inveja de Sandra. Entretanto tinha defeitos, como todo mundo, um deles pior que todos: era ciumento. Quando começaram o namoro, Sandra não conhecia esse seu lado. Porém certa vez, ela conversava com Emanuel, namorado da Naiara, Quando Jonas, por quem ela esperava, chegou com uma expressão nunca vista. A menina pensava que lhe tivesse acontecido algo terrível. Percebendo a situação, o garoto se despediu e saiu. Jonas foi logo interrogando:
─ O que vocês estavam conversando de tão sigiloso que calaram, quando eu cheguei?
Sua voz era calma, mas não escondia um tremor nervoso! O eterno meio-sorriso desapareceu dos lábios da moça:
─ O que você está insinuando? – Interrogou ela, em tom alto – Nós interrompemos a conversa porque você chegou como uma cara que calaria qualquer um.
─ Vocês pareciam muito à vontade. Eu observei de longe como vocês até se tocavam enquanto falavam e riam.
Foi o fim. Sandra apenas balançou a cabeça e se retirou, enquanto o rapaz colocava as mãos na cabeça meio desesperado. Durante toda a noite tentou falar com a garota, que desplugou o telefone e desligou o celular, depois de ele muito insistir. No dia seguinte ele procurou-a para pedir desculpas e se justificou:
─ Já faz tempo que eu sou assim. Ontem, quando você saiu, eu refleti e cheguei à conclusão que mais uma vez meu ciúme me perturbava, que tudo tinha sido um engano. Há dois anos, quando ainda morava em Olival, briguei com um amigo e perdi uma namorada. Foi terrível e humilhante, era apenas uma criança e já dominado pelos sentimentos. De lá pra cá, venho procurando não ver aquilo que não existe. Ontem, infelizmente, perdi o controle. Perdão, vai, prometo que isso não irá mais acontecer.
Sandra não sabia se tinha pena ou raiva do garoto. O dó prevaleceu, e ela se rendeu ao apelo de seu coração, mesmo sabendo que poderia estar cometendo o maior erro de sua vida.



CAPÍTULO VI




A palestra sobre relacionamento estava sendo a mais interessante daquele ano. O palestrante, Dom. Diogo, sociólogo e psicanalista, depois de ler alguns textos e contado alguns casos de casais que tinham tudo para serem felizes, mas que não o eram, abriu o debate entre os jovens para que narrassem suas incipientes experiências. Sandra não perdeu a oportunidade de entrevistar-se com o homem. Falou sobre seus pais e pediu conselhos. O homem ficou impressionado com o discernimento daquela garota de pouco mais de quinze anos e lhe disse:
─ Minha filha, eu não posso fazer nada, mas você, com esse seu belo sorriso e sua esperteza conseguirá. Fale com eles. Pelo que você me falou, eles se dão bem, mas vivem de mal. Proponha a eles a separação, dependendo da reação deles, peça para que eles reflitam sobre que tipo de relação eles mantêm: tênis ou frescobol.
A menina curiosa quis saber que história era aquela de tênis ou frescobol, ao que ele respondeu que na volta falaria com todos sobre essa tese e deixou Sandra ainda mais curiosa.
Ao retornar para a palestra, depois de ter tomado um café, ele explicou, diante das expressões atentas da assistência, que uma relação tipo tênis é aquela em que há uma disputa surda sem que muitas vezes o casal saiba. Essa relação leva o casal à destruição do sentimento que os uniu, e tem como conseqüência a separação e a futura infelicidade de ambos. Esse tipo de relação é marcado muitas vezes pelo constrangimento que um parceiro passa a ter diante do outro por não receber incentivo diante de algo que deseja empreender, pois toda pessoa precisa de incentivo. Para que um homem tenha sucesso em seus trabalho, por exemplo, é necessário que sua esposa demonstre amiúde seu entusiasmo pelo seu sucesso, e vice-versa. Entretanto nesse tipo de relacionamento reina a discórdia, tem-se a impressão de que há a inveja pelo sucesso do outro, e o que reina é a disputa por nada. Entretanto ela pode ser transformada em uma do tipo frescobol, que consiste em uma relação de cooperação, na qual as duas partes envolvidas no enlace reconhecem e incentivam as potencialidades individuais. Essa mútua percepção faz com que essas qualidades redobrem, a auto-estima se eleva e, conscientes de seus valores individuais, o casal vive uma união sólida. A felicidade é a conseqüência inexorável, como num jogo de frescobol, em que a bolinha deve estar sempre no ar, e nenhum dos jogadores procura o erro do outro, mas o acerto, não importando quem é o melhor, o mais forte; os brincadores (não jogadores) não buscam os aplausos nem os lauréis da vitória, mas o sucesso recíproco. Dr. Diogo informou, ao público que aquela teoria não era sua, mas de um filósofo chamado Rubem Alves. Em seguida colocou no retro projetor um poema intitulado “Soneto da Relação”, de sua autoria, baseado numa crônica do referido filósofo:


SONETO DA RELAÇÃO
(Baseado na crônica de Rubens Alves)

A questão é mera e não requer cola:
Seu enlace é tênis ou frescobol?
Não pode ser do tipo futebol
Porque envolve dois seres e uma bola.

Se tênis, meus pêsames, é mortal,
Se frescobol, parabéns, é brinquedo;
Se tênis, nele reina ódio e segredo,
Se frescobol, parceria total.

Pois se joga tênis pra derrotar,
Frescobol é jogo de cooperar.
Num o erro é a alegria do companheiro,

No outro, felicidade é acertar.
Se num a ação preferida é cortar,
Noutro, dialoga-se o tempo inteiro.

No final da palestra os alunos aplaudiram palestrante, que prometeu voltar para falar de outros assuntos e, ao sair, sussurrou para Sandra “E espero tê-la ajudado a resolver seu problema”.






CAPÍTULO VII
Os grupos na sala de Química naquele dia estavam inquietos. Flávio estava tendo muito trabalho, enquanto transitava entre um grupo e outro. Tudo isso porque o provão semestral se aproximava e ninguém queria ficar Abaixo do ponto-de-corte, daí o esforço redobrado. Flávio Augusto era professor-coordenador do Redentorista recém-contratado. Ele havia concluído brilhantemente o curso de Química e em uma boa extensão de léguas dizia-se que não havia quem entendesse melhor do riscado. Filho de um rico comerciante de Gil Vicente, não quis seguir os passos do pai e se dedicara aos estudos de Química com o intuito de ser professor. E o era como ninguém. Não havia quem encarnasse melhor o espírito docente quando a questão era tirar uma dúvida ou explicar um ponto. Trabalhara por quatro anos no colégio Santo Eufrásio e ninguém sabia na verdade o motivo pelo qual saíra de lá. Professor Cícero, logo que soube que o rapaz estava sem emprego, foi procurá-lo e o contratou, sem indagar o motivo de seu desemprego. Apesar da espontaneidade com que lidava com o objeto de sua profissão, Flávio era retraído quando o objeto era a pessoa humana. Suavam-lhe o nariz e as mãos, a cabeça baixava e vasculhava o chão como quem procura algo em derredor, as palavras se atropelavam, enfim era um Deus-nos-acuda sempre que precisava conversar com alguém sobre outro assunto que não Química. Sem namorada, comentava-se na cidade que ele era apaixonado por Marlene, uma morena de olhos verdes que, conforme as línguas de plantão, tinha coração negro e era desfrutável. Era certo, no entanto, que a moça zanzava de braço em braço até enjoar. Sua preferência era, pois, pelas “carnes novas”, rapazes recém-chegados à cidade. As beatas benziam-se ao cruzar com a moça, que ria e benzia-se também, para desespero das senhoras. Certa vez foram reclamar ao Juiz, que explicou não haver crime algum, apenas falatório. O resultado foi uma crônica escrita por Dona Iolanda, sobre o fim do mundo e da decência. Mas Flávio não desistia de seu intento e sempre que podia dava um jeito de entrar na loja de propriedade de Marlene em sociedade com uma amiga. Ela, por sua vez, lhe virava o rosto, demonstrando forte aversão. As colegas diziam que ela comentava não tragá-lo, porque ele tinha jeito de tarado.
Nesse dia, depois de uma explicação ao grupo do qual Sandra e Genoveva participavam, Flávio esqueceu a agenda. Curioso, mesmo diante dos apelos de Genoveva, Carlão abriu-a para remexer “os segredo do professor Flávio”. Remexeu até encontrar, numa página datada de dois dias antes, o “Soneto da Relação”, de autoria do Dom. Diogo, e abaixo uma deprecação:

Ó deus, não permiti que ela seja de mais ninguém
Fazei com que seus olhos aprendam a ver os meus
Que eu seja finalmente soberano dos seus!

E quando eu reinar sobre seu ser,
Que me livre dessa prisão
Na qual estou sem nenhuma compaixão!

E haverá um dia, meu Deus,
Em que seus beijos não serão de outrem
Somente de mim amém! Amém!

Eu sonho, meu Deus, com um acidente
Que a deixará numa cama entrevada
E eu dela cuidarei de alma enlevada!

Mas dar-ma, para minha felicidade
Para que eu possa o céu ver
Para que em Ti, finalmente,
Eu possa crer!


Carlão queria arrancar aquela página. Mas as meninas instaram para que não o fizesse. Logo o professor voltou para pegar de volta seu objeto. O grupo fingiu surpresa, que não sabia sequer que a agenda estava ali. E ele se foi sem saber que seus sentimentos não eram mais apenas fruto da imaginação coletiva. Os alunos se entreolharam, como ocorre sempre que se faz um pacto secreto. Sandra sentiu dó do mestre, que trazia no peito um sentimento capaz de levá-lo à loucura.
A caminho de casa, Genoveva revelava à outra:
─Ah! se Fabrício me amasse assim, eternamente, colado no meu pé, sem me deixar respirar... Mas foi interrompida pela amiga:
─Isso não é amor, é loucura. Esse tipo de sentimento, amiga, leva ao delírio e a pessoa amada pode torna-se vítima do amante.
Nesse momento Jonas apareceu com uma rosa vermelha entre os dedos e um sorriso nos lábios. Abraçou a namorada e beijou-a apaixonadamente. Genoveva, sentindo-se demais, deu tchau para os dois e foi para casa.

CAPÍTULO VIII




Sandra ainda pensava no que havia ocorrido na escola, quando chegou a casa. A mãe ainda não havia chegado enquanto o pai remexia na cozinha, preparando o almoço. Sandra foi para o banho e quando voltou. A mãe acabara de chegar. Sem pensar duas vezes, a menina atirou a bomba:
─Pai e mãe, por que vocês não se separam? – e E ficou olhando o semblante dos dois.
Entre assustados e atônitos, Josafá e Lourdes se entreolharam. Quem primeiro recobrou a calma foi o pai. Deu uma olhada para a filha e indagou:
─ O que está havendo, filha? Por que você fala assim?
Era exatamente o que a menina esperava. Mantendo o eterno riso ela falou:
─ Não está havendo nada, pai. Mas é que vocês vivem brigando, se entristecendo. E isso é ruim pra os dois e para mim também. Agora, por exemplo, vocês estão bem, mas até quando?
Quem tomou a palavra dessa vez foi Lourdes:
─ Minha filha, todo casal tem suas brigas, discussões, isso é normal.
─ Normal! – Interrompeu a garota, tentando conduzir a conversa para onde desejava – Normal é as pessoas viverem bem. Atritar uma vez aqui outra ali. Mas toda semana há alguma coisa para vocês ficarem trombudos um com o outro. Às vezes até penso que vocês estão juntos por minha causa. Os pais da Flavinha eram como vocês, separaram e se tornaram bons amigos. É claro que eu quero que vocês fiquem juntos, não quero ver minha família dividida, adoraria que vocês fossem como quem brinca de frescobol e não como quem joga tênis.
─ Explique-se melhor minha filha? O que você entende de relação?
─ Eu não queria estragar o nosso almoço – disse Sandra colocando os pratos na mesa – por isso durante essa tarde eu queria que vocês pensassem sobre isso, sobre o que vocês podem fazer para melhorar essa situação. Eu sei que vocês poderiam se dar muito bem, mas acho que há uma disputa surda entre vocês dois, que aos poucos vai levando à desunião. Eu não vejo os dois falando de trabalho, apesar de fazerem na mesma coisa. Quando o pai recebeu aquele convite para participar de uma convenção na capital, a mãe não ficou feliz, parece, desculpe, até que tinha inveja. Quando a mãe recebeu aquela promoção, o pai também não demonstrou alegria. Sem querer comparar, os pais do Alfredo, Dona Hosana e Seu Jairo, estão sempre falando em trabalho, ele a elogia, e para ela não há melhor médico em toda a região – A menina ia falando e observando o semblante interrogativo dos pais – é preciso que vocês pensem nisso. A gente nasceu para ser feliz e não para “agüentar” o outro. À noite eu não vou sair e nós três vamos conversar a respeito desse assunto. Vocês terão a tarde inteira para pensar, e eu falarei sobre a relação tipo frescobol.
Os pais de Sandra não sabiam se riam ou se choravam. Era realmente estranho aquela menina, que há pouco tempo engatinhava dentro de casa, falando de sentimento como se fosse uma pessoa grande. Mas ela era uma pessoa grande, eles é que nunca notaram como a filha era adulta, apesar da idade. Agora eles eram obrigados pelo momento a verem-na com outros olhos, eles nunca a enganaram quando tentavam esconder as desavenças entre si. E, além disso, ela conseguira ver os motivos, percebera o que lhes passava no íntimo, coisa que eles não conseguiam. Enquanto almoçavam Josafá e Lourdes refletiam sobre tudo aquilo. Era claro que os dois se amavam, não havia traição, não havia dificuldades financeiras. Os dois eram muito bem empregados, podiam manter os luxos de uma família de classe média, podiam viajar uma vez por ano, não faltava nada, a não ser a felicidade, e a felicidade estava nos dois, na união, no afeto de um pelo outro, mas que aos poucos ganhava a porta da rua. “Por que motivo realmente eu não fiquei feliz quando Lourdes recebeu aquela promoção?”, pensava ele. “Por que eu não contei a verdade para Joana quando ela me perguntou aonde tinha ido Josafá, quando ele foi convidado a participar daquela convenção?”, indagava-se ela. Foi enquanto pensavam nessas coisas que a tarde eclipsou-se.
No final da tarde, Josafá passou no escritório onde Lourdes trabalhava para buscá-la. Lourdes ficou tão surpresa que gaguejou. Era tão estranha a situação que os dois não conseguiam falar francamente. A caminho de casa eles trocaram alguns monossílabos apenas, seus pensamentos voltavam à época do namoro, mas não encontravam a paz. Desde aquela época, havia um certo rancor, na cama os dois eram felizes, conseguiam o intuito. Mas fora dela pouco falavam. Quando o assunto era o sucesso um do outro, subia-lhe um nó na garganta e não sabiam como conseguiam estar casados há mais de quinze anos.
Em casa, aguardava-os a filha, que naquele dia não encontraria Jonas nem os amigos, pois tinha uma missão das mais importantes. Quando os pais chegaram, ela já havia preparado o jantar. Depois da refeição, os pais, constrangidos, dirigiram-se para a sala, onde ouviram o longo discurso da filha sobre os dois tipos de relação, aprendidos na escola. Os pais estavam mais estupefatos do que pela manhã. “Meu Deus, quem é essa menina?” Pensavam. Mas o que mais os impressionava era segurança de suas palavras, e, assim, aos poucos, Sandra lhes ia revelando seus próprios desejos e ambições. E eram resgatados pelas palavras da menina, que lhes indicavam o caminho da felicidade a dois, livravam-nos do seqüestro da ignorância e o preço cobrado era tão baixo.
Quando a menina terminou, retirou-se para o quarto e os deixou sós. No entanto eles não disseram palavra. Estavam ensimesmados, retraídos, fechados para balanço. Seria difícil para ambos reencontrar os caminhos das palavras. Há tempos que elas ficaram esquecidas no sótão da memória, algumas, como “eu te amo”, “me dá um beijo”, “você está bem” já estavam aposentadas e precisariam de muito esforço para que fossem restauradas à ativa. Aquele silêncio era por demais doloroso, angustiante. Naquela noite, eles não se falaram. No dia seguinte, mal conseguiam olhar nos olhos da filha. À noite suas mãos se tocaram e o tempo, engenheiro, trataria de erigir uma estrutura sólida para eles, re-unir aqueles dois... ou não.




CAPÍTULO IX





Era quarta-feira, e a cidade estava em festa, afinal não era todo dia que chegava ali um grupo pertencente à maior rede de tevê do país, e nem era todo dia que a cidade iria se tornar, por pouco tempo, na casa de atores jovens, mas consagrados. As meninas se enfeitaram como nunca para irem à escola, pois na volta iriam para o aeroporto recepcionar o pessoal. Os meninos, de forma mais discreta, também se arrumaram para presenciar o evento. Nas escolas era difícil para os professores conterem os ânimos. No Redentorista, Professor Cícero dava ordens aos homens responsáveis pela reforma, nas salas-de-estudo a vida dos professores-coordenadores não era mais fácil que a dos colegas das outras escolas.
Nas ruas, na feira, nos botequins não se dizia uma palavra que não fosse referência ao que estava por acontecer. Um censurava, outro se orgulhava de sua Gil Vicente, mas ninguém tinha outro assunto na ponta da língua. As ruas, sempre limpas, brilhavam, os chafarizes vertiam água como nunca. Gil Vicente estava realmente em festa, e essa festa duraria pelo menos 15 dias, quando terminariam as gravações agendadas para lá.
Ao meio-dia, o pequeno aeroporto parecia menor. Pessoas se acotovelavam na galeria por onde passaria o grupo de profissionais da emissora de tevê. Havia faixas de boas vindas, cartazes feitos pelas meninas e até uma pequena charanga organizada por elas. O prefeito ao lado do Professor Cícero eram os anfitriões mores.
Pode até parecer exagero para quem está lendo esta narrativa e mora na capital do país ou numa grande metrópole. Mas não o parecerá a quem conhece Gil Vicente ou uma cidade similar. Essa cidade tem aproximadamente cinqüenta mil habitantes. São várias as atividades econômicas: indústrias têxteis, agropecuária, comércio diversificado, atividade bancária representada pelos principais bancos do país. Possui dois grandes hospitais além de postos de saúde pública muito bem servidos. E todos os apetrechos capitalistas que possui um grande centro. No entanto, devido ao fato de ter sido povoada por um grupo de portugueses procedentes de uma comunidade religiosa, sua população era por demais cortês, amistosa e, por que não dizer, cristã. O tempo e o contato com outros costumes formaram uma população híbrida, de comportamentos diversificados. Só para o leitor ter uma idéia, no dia anterior à chegada do famigerado pessoal da emissora, o grupo de conservadores, já mencionados em capítulos anteriores, aguardava ansioso pelo atendimento por parte do juiz de uma liminar que proibisse o desembarque do pessoal da emissora, solicitado dias antes. Imagine agora o leitor citadino, metropolitano, uma cidade cuja última grande novidade tinha ocorrido há vinte anos, quando a seleção de futebol do Brasil veio inaugurar o estádio local, num amistoso contra a seleção regional. A “internet”, por exemplo, só influenciou a população jovem. Mesmo assim a idéia de cosmopolitismo ainda é quase um sacrilégio, mesmo para esses, pois todos amam a simplicidade de sua cidade.
Daí o frenesi que causou a chegada do elenco da tevê Mundo a Gil Vicente. No meio de todo o furdunço, Marlene saltou para a pista com uma câmera digital, pulou no pescoço do Murilo Chaves, deu-lhe um beijo, enquanto a Rita, sua comparsa de pândega, tirava uma foto. O ator meio sem graça tentava sorrir para demonstrar normalidade. Outras moçoilas, impelidas pela ousadia da ninfeta, também se arriscavam a tirar fotos com os rapazes. Alfredo também lá já estava, agarrando a mão das estrelas e fazendo pose. Os outros presentes não sabiam o que fazer, se riam ou reprovavam as atitudes das jovens. Entretanto, lá da grade de proteção, quem peremptoriamente reprovava esse comportamento era o professor Flávio Augusto. Se Marlene visse o modo como ele a olhava, certamente teria um frio na espinha.
Sandra, ao lado de sua já eterna amiga, Genoveva, e de Jonas balançava discretamente uma bandeirola branca. E nisso era imitada pelos outros presentes, que também aproveitavam para tirar fotos para a posteridade. Jonas estava ali, junto de Sandra, mas o pensamento parecia voar, tal era o vazio visto, se olhado, na pupila quase dilatada. Não ouviu, por exemplo, quando a namorada perguntou o que ele achava de toda aquela festa. Só quando ela o cutucou pela terceira vez foi que ele aterrissou de sua viagem momentânea. Mesmo assim respondeu com alguns monossílabos e com uma aspereza na voz que deixou a moça preocupada.
Durante todo o dia a cidade permaneceu com aquele clima festivo. Os atores, as atrizes e o diretor foram almoçar no restaurante mais fino da cidade na companhia do prefeito, da primeira dama, do diretor do Redentorista e de Margarida, sua eterna companheira. À tarde foram a uma rádio local onde falaram das gravações e tiraram algumas dúvidas a respeito delas. Informaram, outrossim, que seriam gravadas uma seqüência de cenas que só seriam apresentadas no meio da novela. Essa seqüência dizia respeito a uma viagem que os alunos da escola São Cristóvão, cenário principal da tal novela, faria até Gil Vicente, para participar de um torneio de futebol de salão. Depois da disputa iria haver uma rivalidade entre duas personagens, Fábio e Rodrigo, motivada pelo ciúme doentio que aquele tinha da irmã, Amaralina, namorada deste. Essa quizila teria um desfecho trágico. Devido a isso, Professor Cícero, preocupado com a má reputação que sua escola poderia adquirir, tentou mudar a seqüência de cena, em vão. O diretor explicou que a tragédia seria encenada com o máximo de cuidado, os textos eram bem redigidos para que não maculasse nem o nome do colégio tampouco o da cidade.
A oposição conservadora tentou, após tomar conhecimento da seqüência de cenas, fazer um protesto, mas foi contida por alguns membros que já viam com bons olhos a divulgação de sua urbe país afora. Há algum tempo que se tentava implementar o turismo na cidade e aquela podia ser a grande chance. Quando chegasse a alta estação podia ser que a cidade fosse incluída no roteiro de viagem de alguns esbanjadores de dinheiro. E isso seria rentável para os cofres públicos e privados.


CAPÍTULO X




Na quinta feira, logo cedo, a equipe gravou algumas cenas na rodoviária e, a pedido do prefeito, nos principais pontos turísticos da cidade, como a praça e o balneário de águas termais, que era o orgulho dos Gil-vicentinos. Sempre sob o olhar curioso ou atento dos habitantes. Os apetrechos chamavam a sua atenção. Maquiagens a céu aberto, guinchos que subiam e desciam conduzindo os operadores câmaras. Mas o que mais os espantava era a rapidez com que montavam e desmontavam as geringonças. As gravações no redentorista seriam as últimas. Professor Cícero cuidava para que a rotina em sua escola não fosse alterada, daí os trabalhos de gravação deveriam ser realizados sempre à tarde.
Sexta-feira à noite os atores saíram para conhecer melhor a cidade, respirar o ar puro que cercava a praça principal. Ficaram impressionados com o espetáculo que viram: a lua cheia quase tocando o chão. Mera ilusão de óptica. Mas a impressão que se tinha era a de que se alguém conseguisse pular três metros, encostaria os dedos nela. Os jardins, parecendo adivinhar a presença da fama, tinha suas flores mais belas, de cores mais vivas e perfumes mais olentes. Os moradores faziam o máximo para passearem à vontade sem se importarem com as estrelas, que se sentiam em casa em meio a tanta magia.
Depois das nove horas da noite, foram para o centro onde ocuparam duas mesas de um bar, e beberam, e sorriram, e dançaram, e deram autógrafos, sem se sentirem nem um pouco incomodados. Marlene, que depois do espetáculo da chegada, não aparecera mais, chegou no meio da noite com sua companheira, Rita, e estava tão deslumbrante que chamou a atenção de Murilo. O rapaz ficara encantado com o despojamento demonstrado dois dias antes e, ao vê-la chegar, acenou com os dedos. Rita cutucou-a quase indiscretamente:
─ Olha quem está acenando para nós. Disse entre dentes.
─ Para nós não, queridinha, para a mamãe aqui. Retrucou Marlene esboçando seu lindo sorriso e dirigindo-se à mesa, em que o rapaz estava acomodado.
A conversa foi rápida, apenas algumas palavras de elogios mútuos e uma ligeira insinuação por parte da moça, para que Murilo passasse em seu apartamento. Ao sair, sob os olhos atentos da platéia, Marlene coroou a conversa com um selinho, o que lhe rendeu mais alguns elogios por parte das amigas mais chegadas e muitas críticas e palavras pouco elogiosas da intriga e do conservadorismo de plantão.
No dia seguinte todos comentavam o ocorrido, sabe como é que é, cidade pequena, em que todos querem comentar e serem comentados. Mas para Marlene era só mais um motivo de riso. Era exatamente isso que ela queria. Ver até onde aquelas pessoas “pequenas, medíocres” iriam. Na verdade tudo sobre ela era meio mito. Ela falava o que lhe vinha na telha, não andava na igreja, ostentava um ar leviano. Por isso era o alvo das pessoas que se diziam arautas na defesa da moral e dos bons costumes e era admirada por aquelas que respeitavam o modo de vida de cada uma. Quando ela viu o jornal do dia, que estampava na primeira página a cena do selinho, deu uma sonora gargalhada e voltou ao trabalho, pensando “Ô povo besta!”.
Besta diante daquela situação estava professor Flávio Augusto. Já pensava em ir embora de Gil Vicente. Cada dia que se passava lhe trazia mais angústia. A vontade que tinha era a de seqüestrar a mulher de sua vida. Pois era isso que Marlene representava para ele. Muitas vezes no meio da noite acordava pensando no seu belo rosto. Seria mágico poder tocá-la, sentir-lhe o hálito perfumado roçar-lhe o rosto, passar os dedos por entre os anéis de seus cabelos... Balançava a cabeça para afastar aqueles pensamentos e, debalde, buscava o sono, como quem busca a salvação diante de um altar. O sentimento que lhe minava as forças nascera sem que ele percebesse. Um dia, quando ela retornara à cidade, depois de uma ausência de cinco anos, ele a encontrou na praça e ficou impressionado com a beleza da moça, que ao deixar Gil Vicente era ainda uma garota. Ela lhe sorriu, para seu espanto. Daquele dia em diante não conseguiu deixar de pensar na moça. Encontraram-se casualmente outras vezes e ela o tratara bem, como ninguém do sexo feminino fizera até então. Nosso apaixonado fazia de tudo para topar com Marlene a qualquer hora do dia ou da noite. No entanto a moça, que tinha uma alma bastante fugaz, enjoou da brincadeira e antes que ele insinuasse haver algo de mais sério entre ambos, decepou a pouca amizade que havia.
─ Olha, amigo, começou ela com o intuito de dar descaminho nas pretensões do rapaz, eu já percebi que você está nutrindo um sentimento diferente do que eu possuo por você. Eu percebo a luz que brilha nos seus olhos quando você me vê. Por isso eu gostaria que você deixasse de esbarrar em mim por onde eu ando. Tá bom?
Dizendo isso ela se afastou e nunca mais o olhou na cara, evitava estar onde ele estivesse e quando o rapaz, simulando algum interesse por um produto de sua loja, lá entrava, ela eclipsava-se e só reaparecia quando ele se ia. Ele tentou várias vezes pedir desculpas que “não era aquilo que você estava pensando”, mas ela era decisiva. Certa vez ele lhe enviou um soneto de um escritor brasileiro, cujo último terceto dizia:

“Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia o mundo
E de teu ventre nasceriam deuses”

Esses versos vinham acompanhados de uma caixa de doces finos e reiterados pedidos de casamento. No entanto foram devolvidos, os versos, sem os doces, com a ameaça de que se ele insistisse, ela recorreria à polícia. Foi um balde de água fria nas pretensões do moço e o estopim que incendiaria de vez seu débil coração. Tudo isso aconteceu em surdina, por isso só algumas pessoas sabiam dessa funesta relação.

CAPÍTULO XI



Manhã de segunda-feira, vários grupos estavam espalhados pelo pátio do redentorista, discutindo o tema da próxima palestra, que seria gravidez na adolescência. Era sempre assim. Dias antes de uma palestra os alunos reuniam-se em seus grupos (no Redentorista era assim: tudo era feito em equipe) e discutiam sobre o assunto, formulavam questões e situações com o intuito de aprofundar a discussão. Naiara, esbaforida, narrava uma experiência ocorrida com uma prima, quando deu um gritinho de susto. Todos se voltaram para onde ela olhava e viram entrar no pátio João Santos, o diretor das filmagens, acompanhado de dois homens os quais elas não conheciam, os três estavam na companhia do Professor Cícero. O grupo dirigiu-se primeiro à equipe da Flavinha, depois conversou com alguns meninos do grupo do Alfredo e finalmente chegou à rodinha onde Sandra estava. Depois de se apresentar os visitantes, o diretor do redentorista falou:
─ O motivo de nossa visita é que, além de quererem conhecer as dependências da escola eles estão precisando de uns figurantes e queriam fazer um teste com alguns garotos e garotas.
─ Oba! – exclamou Naiara, sem conter o entusiasmo.
─ O teste será realizado hoje à tarde no auditório da escola. Será um teste bem simples. Quem quiser participar, às duas horas esteja aqui. E João Santos se despediu com um sorriso.
O babado, segundo Naiara, era forte demais e ela já se via estrela de cinema. Toda essa euforia, no entanto, foi contida pela mais sensata das meninas do Redentorista:
─ Calma, gente, isso é só um teste, e é bom lembrar que não há vaga pra todo mundo. Vamos pôr os pés no chão...
─ ...PARA NÃO HAVER DECEPÇÃO! Exclamou o restante do grupo, que já conhecia o lema da moça. Ao que Genoveva argumentou:
─ Não seja estraga-prazer, amiga, sonhar não custa nada, não vai dizer que você não vai fazer esse teste.
─ Claro que não, Genoveva, eu não tenho vocação para encenar. Vão vocês, que são mais espevitadas... Alfredo que ia chegando cortou:
─ Desculpem-me, mas se alguém aqui nasceu para representar é você, queridinha. – a menina olhou o chegante, que continuou – lembram daquela peça que nós fizemos ano trasado “Cândida Herêndira e sua avô desalmada”? Quem foi que arrancou palmas do público, quem foi que mandou super bem?
─ Obrigada, amigo, por você ter dito isso, eu estarei aqui, na escola, às duas horas. Acudiu Sandra, antes que Alfredo desfiasse todas as experiências do grupo na escola. Genoveva abraçou a amiga, e dessa forma o grupo se desfez, indo cada um para a sua casa.
Os testes foram simples e objetivos. Constituía-se da declamação de um poema carregado de forte sentimentalismo. A prova maior era a capacidade de memorização e a competência de transpor para a voz o sentimentalismo presente no texto, apesar de a participação do escolhido ser pequena, quase sem fala. Depois de muito elogiar os participantes, o diretor anunciou que havia escolhido Sandra para participar de uma das cenas a serem gravadas na próxima semana, os demais participantes figurariam nas proximidades da cena. A menina Ficou tão surpresa que imitou Naiara, dando um gritinho. É certo que poucos meninos e poucas meninas participaram, porque algumas sofreram oposição dos pais. No entanto quem não gostou da notícia foi Jonas:
─ Como! Você vai beijar outros caras e eu tenho que ficar feliz? – dizia possesso, enquanto tentava recuperar a tranqüilidade habitual. Suas mãos, no entanto eram esfregadas uma na outra e ele andava de lá pra cá, completamente descomposto. Sandra tentou explicar:
─ Que beijo que nada! É só uma cena besta. Eu estarei conversando com Rodrigo, personagem do Murilo, quando a namorada chega e...
Mas foi interrompida pelo namorado, que dizia palavras sem sentido. Ele aos poucos ia retirando de vez sua máscara, aos poucos, ia mudando o comportamento, seu rosto ia-se desfigurando, o meigo sorriso, que tanto atraía as meninas, apresentava um tom quase trágico. Entre constrangida e assustada a menina continuou:
─ E eu não tenho que dar satisfações a você. Se te contei é porque achava que você ficaria feliz por mim. – Nesse momento ela lembrou dos pais, do motivo que os levava às brigas e do esforço que os dois estavam fazendo para tornarem-se “jogadores de frescobol”. Jonas, no entanto, sem dizer palavra, retirou-se.
Sandra ainda zanzou um pouco pela rua antes de chegar a casa. Os pais não tinham vindo para o almoço (Mau sinal?), apenas um bilhete da mãe, com palavras vãs, dizia que não vinham para o almoço, “coisa de trabalho”. Sandra colocou o roupão e foi para a cozinha e ficou a refletir sobre sentimentos e concluiu: “quem sou eu para pensar sobre esse assunto, que sei eu sobre amor, ciúme, inveja, relação? Meus pais estão corretos. como eu posso intervir na relação deles se nem ao menos consigo resolver a minha!”. Depois de comer um sanduíche com suco ela foi para o banho e depois para o quarto, o rádio ficou esquecido sobre o criado mudo, mudo. À tarde, ligou o computador para se distrair, leu um e-mail enviado por Jonas, no qual ele pedia desculpas e informava que estava viajando para a capital e que só retornaria dali a dois dias. Entristecida, Sandra só pensava em romper o namoro, pois apesar de o namorado ser uma pessoa extraordinariamente agradável, era portador de uma doença incurável, que estava destruindo a ele e aos outros: o ciúme.








CAPÍTULO XII

Naqueles dias o consolo de Sandra eram as colegas e suas brincadeiras, seus ditinhos, suas frases feitas. Evitava pensar nos pais e às vezes se pegava de lágrimas nos olhos a imaginar que teria sido melhor deixá-los como estavam. Certamente o pai tinha razão “quem era ela, o que entendia de relações”. E voltava à tona com uma piada do Alfredo, cada vez mais enturmado com as meninas, ou os afagos de Genoveva, para, em seguida, sucumbir em seu anel inferior, levada pelo pensamento, que agora buscava desesperadamente o namorado. Ela que era tão decidida, tão fria, agora estava apaixonada, estava amando! Que coisa estranha aquela. E por falar em paixão, onde andava Jonas? O que teria ido fazer na capital? E ela lembrava novamente a última vez em que o vira, o rosto irreconhecível. De repente ela era resgatada ao mundo dos jovens com um puxavanco de uma das colegas, tentava se antenar com a conversa, atitude nada fácil de concluir.
As colegas mais chegadas já haviam notado as diferenças na menina, mas tinham receio de estarem pisando um terreno desconhecido, Genoveva, a mais chegada, procurava distraí-la como podia, porém seu envolvimento com o namorado, Fabrício, tomava-lhe bastante tempo e ela às vezes até se culpava por não dispor de mais para a amiga. Outrossim, entre os adolescentes há uma espécie de pacto surdo de ninguém se preocupar de verdade com os problemas uns dos outros só “os babados” é que são motivo de união, confidências. É como se problemas fossem doenças contagiantes e ninguém quer ficar de cama.
Em casa, os pais de Sandra pouco falavam ou discutiam, pelo menos em sua presença. A casa estava muda e surda. Os livros já não eram os grandes aliados da menina, o computador, com sua cara quadrada, quando era ligado, exibia problemas e escândalos difíceis de se entenderem por ela. Os saites de frivolidades, que nunca foram seus preferidos, agora a irritavam mais ainda. O sono longe de ser descanso, trazia consigo os sonhos e suas imagens distorcidas e situações surreais, que a faziam acordar no dia seguinte mais cansada do que quando adormecera.
Naquela noite, o telefone tocou. Era Jonas, que falava do aeroporto da capital e lhe informava que naquele momento estava voltando para Gil Vicente. Sandra já quase dormindo pensou fosse mais um sonho, mas despertou quando ele disse que a amava. Durante o resto da noite ela teve um pouco de descanso. Mas pela madrugada teve um pesadelo terrível. Nele Jonas, embriagado, tinha as mãos cheias de balas de revólveres e jogava-as em todos os rapazes que olhavam para ela. E mesmo sem a arma o projétil explodia e deixava os rapazes no chão com uma mancha vermelha no peito. Sandra acordou assustada com o som desesperado do despertador. Foi para o banho e lembrou que aquele dia prometia, pois havia duas novidades: o retorno de Jonas e a participação nas gravações.





CAPÍTULO XIII

Naquela manhã, na sala-de-estudo de Química, o grupo de Sandra, enquanto realizava uma experiência, repassava os últimos acontecimentos. Segundo Alfredo. Marlene e o ator Murilo foram vistos juntos, nos arredores da cidade. E todos comentavam, em sussurros, os dissabores do professor-orientador, que os observava de longe:
─ Coitado, minha filha, – dizia o garoto – minha tia que mora ali para os arrabaldes da cidade foi quem me disse.
À tarde, todos estavam a postos para as últimas gravações da novela, em Gil Vicente. Eram duas cenas. Uma em que Amaralina, namorada de Rodrigo, personagem de Murilo, encontra-o conversando com uma amiga, personagem de Sandra, e dá um senhor escândalo. A outra cena é a da tragédia anunciada, em que, numa discussão, o irmão de Amaralina, super protetor da irmã, atira em Rodrigo, que ficará entre a vida e a morte. Depois desse triste desenlace, os rapazes pertencentes ao time de futebol de salão do colégio São Cristóvão, palco oficial da trama, voltarão para sua origem.
Apesar do nervosismo e da falta de experiência, Sandra foi muito bem em sua participação.
No momento da gravação da cena mais esperada, as pessoas se aboletavam como podiam na periferia do pátio do redentorista, onde a cena seria gravada. Câmeras e atores a postos, o diretor ordenou o início:
─ Você precisa deixar de proteger sua irmã, ela não é propriedade sua. – dizia Rodrigo, tentando acalmar o irmão da namorada. Mas para sua surpresa o rapaz sacou de um revólver e atirou.
O estampido ecoou pelo pátio da escola e ganhou seus corredores. Rodrigo levou a mão ao peito ensangüentado e caiu com os olhos vidrados, sob os aplausos dos presentes. A cena foi perfeita.
Entretanto, perfeita demais para o diretor, que nesse momento levantou-se e correu na direção do ator. Assustado ele pediu gritando para chamarem uma ambulância. As pessoas ali presentes não entendiam o que estava acontecendo, e só Algum tempo depois, quando os médicos chegaram, fizeram as manipulações clássicas e balançaram a cabeça, dando por vencida sua luta com a morte, é que eles finalmente compreenderam: a realidade acabara de se fundir à ficção.
O que se passou em seguida foi um corre-corre e um deus-nos-acuda, pessoas choravam, alguns jovens atores e atrizes tentavam se aproximar do amigo inerte no chão, mas eram impedidos pelo diretor que sabia da necessidade de se isolar a área o mais rápido possível. Professor Cícero, que estava ausente, foi chamado e ao chegar tentou, em vão, que aquela situação não se espalhasse pela cidade. Em menos de vinte minutos o população inteira já era sabedora do ocorrido. O delegado já estava no local e, com grande esforço, conseguiu dispersar os curiosos. Enquanto aguardava a chegada da perícia, que viria da cidade vizinha e talvez levasse umas três horas para chegar ali, Macedo, chefe de polícia da cidade, pensava que tinha um grande abacaxi nas mãos. Os alunos e as pessoas que ali se encontravam no momento da tragédia tinham sido evacuados, exceto os atores e o pessoal da produção. Do grupo da escola, só Sandra permanecia lá a pedido do delegado, uma vez que fizera parte das gravações. Quando os peritos chegaram, já era noitinha. O cadáver foi enviado para o IML após ser periciado. O trabalho de investigação na arma constatou que ela possuía cinco projéteis de festim e apenas um era real, o deflagrado. O causador de tudo, o assassino, não tendo coragem de executar a vítima, utilizou-se de dois expedientes sórdidos: uma terceira pessoa e a roleta russa, com que sadicamente dera uma chance ao seu desafeto. Mas tudo ainda estava no plano das suposições, e até as investigações serem concluídas muitas surpresas ainda poderiam surgir. Isso foi concluído pelo perito e repassado ao delegado. Na mesma noite todos os que estavam presentes no momento da tragédia foram interrogados e em seguida liberados. Assim a equipe da emissora de tevê, com viagem marcada para o dia seguinte, teria mais uma temporada em Gil Vicente, até tudo ficar esclarecido.







CAPÍTULO XIV


Os pais de Sandra foram buscá-la, naquela noite fatídica. E ela ficou bastante surpresa com ver os dois juntos e preocupados com o seu bem-estar. No entanto não tinha ânimo de fazer comentário algum e nem achava que o devesse. Mesmo assim sua cabeça tinha outros pensamentos e esses pensamentos tinham nome: Jonas. Onde ele teria estado durante todo o dia, que não a procurara? Uma outra idéia assustadora a incomodava: o sonho que tivera no dia anterior. Podia ser bobagem, mas aquele pesadelo tinha-se tornado realidade, pelo menos em parte. Mesmo perdida em pensamentos, não deixou de notar um momento de cumplicidade entre os pais: a mãe fez um comentário sobre o que havia acontecido àquela tarde e o pai, espontaneamente, concordara, coisa que Sandra nunca presenciara; em seguida fez um comentário que casara perfeitamente com o que a mãe falara. Aquela cena deixara Sandra um pouco mais à vontade para refletir sobre seus próprios dilemas.
Já passava da meia noite, quando o telefone de Sandra tocou. Era Jonas. O coração da moça saltou de alegria ao ouvir a voz do amado. Não obstante ela tentou manter uma voz tranqüila, para tentar captar qualquer tom de voz que lhe justificasse alguma suspeita. A voz do rapaz era doce como sempre que estava em seu estado natural. Após palavras meio vãs, Jonas disse:
─ Hoje eu não parei de pensar em você um só minuto, estava ansioso por vê-la... – Mas foi interrompido pela amada, que tentando não demonstrar apreensão inquiriu:
─ E onde você esteve, não disse que chegaria pela manhã!
─ Ah, é verdade, mas meu pai, no momento em que eu ia pegar o avião, me ligou e pediu para eu ficar mais um dia para resolver uns problemas da fábrica, ele quer que eu assuma imediatamente o controle de gerência externa dos negócios. Sendo assim eu até estava pensando em... deixa pra lá, depois com mais calma eu te falo.
─ Espera – pediu a menina inquisidora – você não soube do que aconteceu aqui em Gil Vicente hoje?
─ Não, o que foi? Perguntou o moço.
─ Uma tragédia – Respondeu Sandra – depois você saberá os detalhes, com certeza. E desligou.
Depois da conversa com o namorado, Sandra não sabia se ficava feliz ou preocupada, seu tom de voz era natural demais. Entretanto naquela noite alguma coisa desanuviava sua cabeça, apesar dos pesares, e ela dormiu sem sobressaltos.



CAPÍTULO XV


No dia seguinte, o principal jornal da cidade trazia um suplemento especial sobre a tragédia no Redentorista. Os exemplares praticamente sumiram das bancas. Todos queriam saber o que a polícia havia apurado, mas não havia palavra elucidativa. Estavam aguardando para aquele dia a chegada dos investigadores da capital que trabalhariam no caso. Outrossim, a cidade recebeu um bom contingente de “turistas”, eram jornalistas de outros estados que vinham fazer a cobertura do crime do ano.
O delegado marcara para aquele dia o depoimento das pessoas supostamente envolvidas no caso. Mas os depoimentos só poderiam ser feitos na presença do Dr. Rocha. Nunca houvera na pacata Gil Vicente nenhuma ocorrência policial de grandes proporções. Assassinatos e assaltos ali eram fatos remotos demais. A cidade não apresentava grandes distorções sociais, fator de criminalidade na maioria das grandes cidades. Sendo assim o comissário Macedo fora considerado inviável para a condução do inquérito e o remédio era aguardar a chegada do delegado da capital. Mesmo assim, Macedo fazia algumas anotações numa caderneta a respeito do caso. Entre as possibilidades encontradas por ele estava a de que o projétil colocado no revólver só poderia ter vindo de fora, pois em Gil Vicente não havia lojas de arma e munições, uma vez que há muito a cidade entrara para um programa de desarmamento.
Chegado o todo poderoso, os trabalhos de investigações foram iniciados Os membros da emissora de tevê foram os primeiros a serem ouvidos. Enquanto as perguntas eram feitas o delegado olhava cada interrogado, tentando captar algum falsear na voz ou expressão facial que pudesse delatar algo não conhecido pela polícia. Um ar de inquisidor-mor, um riso meio cínico, um charuto apagado entre os lábios grossos e um corpo grosso, apertado por um paletó preto, compunham a figura perfeita do investigador. Além de tudo trazia na mão, com o se fosse um prolongamento desta, um livro de palavras cruzadas feito um canudo. Enquanto interrogava as “vítimas”, dava voltas em torno delas, fazendo barulho com as solas do sapato. Outras vezes, parava, emudecia, pigarreava, para depois retornar com a voz baixa, que aos poucos ia se tornando forte e gutural.
Sandra, quando se viu diante daquela figura anacrônica de araponga, teve vontade rir. O homem, esperto, notou a expressão no rosto da moça e começou por aí:
─ Então quer dizer que a senhora é bem humorada, diante de uma situação trágica ainda ri? E estralou os dedos, forçando as duas mãos contra o ar como o eterno canudo embaixo de uma axila, enquanto pigarreava forte. A menina se desculpou:
─ Perdão, mas é que eu nunca estive na presença de alguém tão importante como o Senhor – brincou – sabe que o Senhor me lembra aqueles filmes americanos, é que parece aqueles policiais que prendem bandidos e depois são homenageados pelo Estado. Por isso eu fiquei um pouco nervosa, e toda vez que fico assim eu tenho vontade de rir.
O homem nesse momento estava no meio de uma de suas voltas, por isso não percebeu o ar de sarcasmo no rosto de Sandra.
─ Vamos então às perguntas. – disse – A senhora ... – E desfiou meia légua de comentários sobre o que já sabia a respeito da menina, dos colegas dela; falou sobre a vítima, sobre aqueles que conviviam com ela, e por fim arrematou:
─ A senhora, então, tem algo a acrescentar ao que eu já falei, tem algo de novo a dizer?
Sandra balançou negativamente a cabeça e foi liberada em seguida. Fora da sala, ela segurava a boca para não gargalhar. Que figura estranha! Pensava. Os pais que a aguardavam, preocupados, ficaram surpresos ao ver o estado de riso em que a filha se encontrava. E ela segredou a eles:
─ O responsável pelo crime pode ficar despreocupado, esse aí não descobre nada.
Em poucos dias, todas as pessoas que tinham alguma ligação com os fatos que culminaram com a tragédia foram ouvidas. As investigações, passadas semanas, era um monte de papéis, praticamente sem nenhuma utilidade, encostado num canto da sala. Comissário Macedo, pensava consigo quem poderia ser responsável pelo crime. Dr. Rocha, sentado do outro lado da mesa, charuto apagado entre os lábios, rabiscava, nervosamente, num caderno de palavras cruzadas, quando o telefone tocou. Dr. Macedo atendeu. Do outro lado da linha alguém dizia ter uma pista que poderia levar à elucidação do crime. Macedo fez sinal com a mão para Rocha para que este ficasse atento.
─ Diga o que você sabe. Pediu apreensivo Macedo.
─ Só vou dizer uma palavra... – respondeu a voz do outro lado da linha – ...
─ Sentimento que levou Otelo a assassinar sua esposa? – Perguntou desesperado Rocha levantando-se da cadeira – só falta essa para terminar minha cruzada!
Nesse momento a linha caiu sem que a pessoa dissesse a palavra chave, que supostamente ajudaria a elucidar o caso. Rocha retomou a palavra para inquirir de Macedo a resposta para a última palavra de sua cruzada:
─ Sentimento que levou Otelo a assassinar Desdêmona, com cinco letras?
─ CIÚME, respondeu maquinalmente Macedo. É isso. Numa cidade pequena, só o ciúme poderia levar alguém a cometer um assassinato, principalmente contra um jovem bonito e ainda por cima ator! Mas quem!?
Rocha, ajudado pela sorte, sem querer tinha acabado de descobrir uma linha de investigação que possivelmente traria a solução para o mistério. Enquanto Dr. Macedo festejava aos pulos o fim de sua cruzada.



CAPÍTULO XVII


Era terça-feira à noite. Sandra estava em seu quarto estudando, quando a mãe bateu na porta. Ela abriu, e a mãe, um pouco apreensiva, lhe entregou a intimação para que comparecesse no dia seguinte à delegacia para prestar novo depoimento. Ela ficou deveras preocupada, tentando adivinhar qual seria o motivo daquela nova convocação. Naquele momento o telefone tocou. Era Jonas, que tentando aparentar tranqüilidade, perscrutou se a namorada tinha comparecido à delegacia. Sandra percebeu o tom de voz do namorado, diferente daquele quando os dois se encontraram no cinema à tarde.
─ Hoje não, só naquele dia, mas eu já te falei. Por quê?
─É porque eu fui convocado para ir lá amanhã, às dez horas. Respondeu ele.
A menina ficou por um instante calada, mas logo recobrou a tranqüilidade perdida momentaneamente e falou:
─ Mas é assim mesmo, eles estão precisando dar uma satisfação ao país, as autoridades da capital querem por fina força que o caso seja solucionado, por isso estão falando com todo mundo, em busca de pistas.
A moça não revelou ao namorado que também havia sido reconvocada para depor novamente, achou desnecessário, uma vez que seu novo depoimento seria à tarde Os dois despediram-se, com juras de amor. Entretanto ela ficou ensimesmada garimpando algum motivo que levaria o delegado a intimar Jonas a um depoimento.
Os jornais de todo o país já haviam praticamente se exaurido de inventar notícias a respeito do caso, como sempre acontece. Passadas já algumas semanas, o assunto não rendia mais o mesmo IBOP que anteriormente. No entanto as investigações até ali já haviam chegado a uma conclusão, e essa conclusão era terrificante para os moradores de Gil Vicente, pois era peremptória ao afirmar que o criminoso era cidadão ou cidadã gil - vicentino(a). Os membros da tevê Mundo já tinham retornado à sede da emissora, e em Gil Vicente só ficou um representante dela para fornecer aquilo que fosse necessário para o andamento das investigações. Por isso, ali, ainda se discutia muito sobre o caso. E cada habitante olhava para o outro como se estivesse vendo o responsável pelo crime.
Corria na cidade um cordel bem humorado sobre a suposta participação do “Tinhoso”, pois só podia ser obra dele, para desestabilizar a pacata Gil Vicente. Esse coro era levantado pelos grupos de beatas e beatos, que acusavam os “agentes do mal, da perdição” de terem desafiado o demônio. Segundo esses grupos, não havia culpado por aquele crime, a não ser as próprias vítimas. Só com o tempo a paz e a tranqüilidade reinariam de novo na cidade. No referido cordel, havia a descrição da cena em que o “Tinhoso” entrou no camarim e lá transformou uma simples bala de festim em um letal projétil. Havia, é claro, os que riam da situação, outros se benziam diversas vezes para afastarem as más horas. Mas entre os delegados responsáveis pelo caso já havia uma certeza: eles estavam próximos de colocar as mãos no criminoso.
Jonas estava visivelmente nervoso, enquanto Dr. Rocha dava voltas em torno dele sem dizer palavra. Parou, tirou o charuto apagado da boca e começou:
─ Há quanto tempo você namora a menina Sandra?
─ O que o Senhor tem com isso? Redargüiu áspero o rapaz.
─ Limite-se a responder. Quem faz as perguntas aqui sou eu. Retomou o delegado enquanto devolvia o charuto apagado à boca.
─Faz pouco mais de um ano. Disse finalmente Jonas depois de um breve silêncio.
─ É verdade que o senhor é muito ciumento? Que discutiu com a moça em público por causa desse sentimento causador da morte de Desdêmona? Lembrou-se nesse momento da última pergunta de sua cruzada.
─ É verdade, mas todo mundo é ciumento, todos nós temos nossas briguinhas de casal.
─ Mas não foi isso que descobrimos. O que sabemos é que o senhor fica transtornado, possesso... – e o delegado esbugalhava os olhos para dar a idéia ao moço de como ela ficaria naqueles momentos.
E o interrogatório prosseguiu nesse tom. O rapaz sempre argumentando que não tinha motivo algum para cometer nenhuma loucura, e o delegado batendo na tecla do ciúme. Ao ser indagado sobre onde estava no dia anterior ao crime, o rapaz foi peremptório em dizer que estava viajando, que todos sabiam que ele estava ausente e que nem ao menos sabia do ocorrido, que só ficara sabendo no dia seguinte ao retornar a Gil Vicente. Tudo o que o rapaz dizia era imediatamente digitado pelo tabelião, e defronte do interrogado, o comissário Macedo fazia suas próprias anotações, pois havia extra-oficialmente tomado as rédeas do caso.
À tarde foi a vez de Sandra responder a respeito do ciúme do namorado e de onde ele estava no dia anterior ao da tragédia e no próprio dia do sinistro. Sandra contou o que sabia, e no seu discurso houve uma contradição com relação ao do rapaz: ele não falara que a princípio sua volta estava prevista para o dia do ocorrido. Essa divergência não passou despercebida e foi anotada com calma pelo comissário Macedo.
Quando Sandra abandonou a sala de depoimento, quem entrou foi Marlene, que, inexplicavelmente, não havia ainda sido convidada a depor. Com seu jeito debochado, ela falou sobre sua curta relação com a vítima, que tudo o mais que se dissesse era mito, tratava-se de uma cidade provinciana que não podia ver duas pessoas conversando que já maldava tudo. Ma o que surpreendeu os agentes de polícia foi quando ela se reportou ao Professor Flávio Augusto, até então figura desconhecida até do próprio comissário Macedo. Marlene falou de sua perseguição e revelou que no dia anterior ao nefasto acontecimento, ela se encontrara com Murilo e que, enquanto os dois conversavam no carro de propriedade dela, o professor passara diversas vezes, tentando apesar do escuro ver com quem ela estava.
Esse depoimento foi bastante comemorado por Dr. Rocha, estava aí a solução do caso. Macedo, no entanto, não parecia feliz. Mesmo assim assentiu com um sorriso quando Rocha mandou expedir a convocação para o professor-coordenador do Redentorista.




CAPÍTULO XVIII




Era começo de novembro daquele ano. Todas as atividades letivas estavam no auge, fosse nas escolas convencionais, fosse no redentorista. Ali, os professores-coordenadores não tinham sossego, redobravam suas cargas de trabalho e tinham que estar na escola pela manhã e pela tarde. Aquele sistema implantado pelo Professor Cícero permitia alguma folga durante o ano, mas na reta final, em que os alunos tinham de obter notas para a aprovação e outros tinham que acelerar os estudos visando aos exames de vestibular, a procura pelas salas-de-estudo aumentava consideravelmente. Flávio Augusto era um dos mais procurados, visto que sua matéria é considerada pela maioria um bicho papão das provas de vestibular. Por isso foi na sala de estudo que recebeu a intimação para depor. Esse fato é claro não passou despercebido pelos alunos que lá estavam. E os comentários se espalharam imediatamente. Carlão e Alfredo lembraram as meninas sobre o que haviam descoberto na agenda do mestre e todos tinham imediatamente uma história para inventar.
Na cidade, os enfeites de natal já estavam por toda parte. Nas portas das lojas, os adornos representando as comemorações do Santa Claus era um chamado para que as pessoas não se esquecessem das compras, pois embora o natal seja a festa do nascimento do maior homem que já pisou o solo terrestre, esse período, na verdade, por muitos, só é lembrado como época de compras. As promoções se espalham pela cidade em forma de letreiros luminosos ou em carros de som. Até um Santa Claus gigante fora erguido no meio da praça, e ainda faltavam quase cinqüenta dias para a festa do consumismo. Até em Gil Vicente era assim.
Sobre o acontecimento fatídico daquele ano e que ainda não fora esclarecido, as conversas agora girava em torno dos depoentes. Comentava-se o depoimento de Marlene e a convocação para o dia seguinte do professor Flávio augusto. Apesar da discrição com que a delegacia conduzia as investigações, alguém sempre sopra uma coisa aqui outra ali e isso justificava e alimentava a curiosidade dos habitantes. Enquanto uns eram só curiosidade outros eram expectativas. Entre estes últimos estavam aqueles que de forma direta ou indireta estavam sob suspeita, e havia o medo de que a justiça pegasse a pessoa errada. Pelo visto o natal não seria motivo de festa para alguém.





CAPÍTULO XIX


Professor Flávio estava visivelmente nervoso. Não parava um minuto sequer de andar pela sala de espera. Por precaução, como não conhecia os procedimentos policiais, levara consigo um advogado, o que fazia com que os curiosos de plantão já se referissem a ele como sendo o principal suspeito.
O depoimento foi rápido, mas o suficiente para deixar o homem em parafusos. As palavras contundentes, o jogo de ping-pong feito pelos dois policiais turvava-lhe a cabeça. Antes de responder às perguntas que lhe faziam, ele pedia ajuda ao advogado, até mesmo quando foi indagado sobre o que havia feito nos dias antecedentes ao do ocorrido, o coitado demonstrava insegurança. O suor escorria-lhe pela nuca e empapava-lhe a camisa. Mas foi quando o delegado se referiu ao seu infando relacionamento com Marlene que a casa desmoronou de vez. As lágrimas correram pelas faces, e entre soluços saiu da sala acompanhado pelo seu advogado, que instou com os delegados para que adiassem o depoimento do professor.
Era realmente complicada a situação do homem; o nervosismo, a insegurança levavam-no ao desespero e o colocavam como principal suspeito, a partir dali, de haver colocado o projétil de verdade no lugar do falso, pois, segundo os delegados em conversa a sós, quem teria motivo em toda cidade para planejar aquele crime? Ele. Por quê? Porque ele amava desesperadamente uma mulher, a qual não lhe queria, e ainda estava sendo vista com um pouco de freqüência com o ator, com a vítima.
Nos dias que se sucederam, o Professor tentou aparentar normalidade, evitava baixar a cabeça quando alguém lhe falava, esboçava sorrisos, que para alguns soavam como deboche e, sempre que alguém tocava no assunto do depoimento, ele desconversava, dizia que estava pronto para novo interrogatório, já marcado para dali a uma semana, que não tinha nada a ver com o caso. Estava claro que naquele novo comportamento havia o dedo do advogado, o qual não era da cidade e cujo nome era conhecido até da imprensa nacional pela astúcia com que conduzia suas defesas. Logo que terminou a faculdade de Direito, Rui resolveu fazer psicologia. Dizia ele que não havia nada que melhor complementasse a arte da defesa do que o conhecimento psicológico do cliente e da situação na qual este estava envolvido. E, assim, ia destravando as algemas que sufocava a liberdade de alguns alvos da justiça. Com certeza, utilizando-se de seu conhecimento jurídico e da ciência freudiana, ele conseguira dar ao Professor uma sobrevida psicológica, para que ele pudesse escapar daquela rede que se armara em seu torno. E foi com essa nova armadura que Flávio Augusto entrou para depor. Os interrogadores perceberam essa mudança e, conhecendo a fama do Dr. Rui Amaral de saber mudar o discurso de seus clientes e também percebendo que ele viera preparado para responder a qualquer questionamento, Comissário Macedo mudou de estratégia e pediu apenas que o rapaz falasse sobre si e sobre o que ocorrera entre ele e Marlene. Foi com certo esforço, mas com palavras secas, que Flávio Augusto resumiu o que nós já sabemos. Quando foi indagado se teria motivos para cometer crimes ele foi categórico em utilizar um jargão bastante conhecido:
─ Dr., Quem ama não mata, nem o ser amado nem a um suposto rival. Quem ama quer a felicidade do ser amado.
Aquelas palavras, é claro, soaram ocas, vazias da carga emocional que preenche os discursos autênticos. E os delegados despediram o depoente com uma certeza fervilhando em suas cabeças. O próximo passo seria a procura de provas. E a tática foi mudada. A partir de então eles iriam buscar provas materiais que levassem o criminoso às grades. Até porque a família da vítima já havia suposto, em depoimento a uma emissora de rádio, que o bairrismo existente em Gil Vicente estava fazendo com que o criminoso não aparecesse. Para O Comissário Macedo prender o assassino era agora uma questão de honra.





CAPÍTULO XX



Os rumos que a investigação havia tomado tirava de Sandra boa parte das suspeitas que ela tinha do namorado. Boa parte porque o restante dessa suspeita só poderia ser desfeita quando o caso fosse totalmente solucionado, apesar de a cidade não ter mais dúvidas quanto à autoria do crime. Assim Sandra, que até então estava angustiada com aquela situação, podia agora pensar se valeria a pena ou não manter o relacionamento amoroso com o rapaz. Ela já ouvira muita história e lera muitas notícias de crimes passionais motivados apenas pela doença do ciúme e não queria ser mais uma vítima. Sabia, por exemplo, que as demonstrações de ciúme começam durante o namoro e vão-se intensificando com o passar do tempo. Conhecia o caso de uma jovem, que morava em São Carrero, cidade vizinha, cujo namorado era um doce de pessoa. Paulatinamente, entre as juras de amor, ele começou a protagonizar pequenos escândalos em praça pública, depois alguns safanões, daí para as surras foi um pulo. A moça terminou o namoro várias vezes, mas o namorado, agora noivo, procurava-a, prometendo mudar. Assim os dois voltavam às boas. Por algum tempo ele controlava seus nefastos sentimentos. Entretanto as brigas voltavam e a violência se intensificava como se ele fosse um viciado, que, ao tornar ao objeto do vício, o fizesse com os desejos redobrados. Casados, ele a proibia de trabalhar e estudar. Quando se achou totalmente sufocada pelo marido, ela, sem saber que não havia mais tempo, resolveu encerrar de vez o relacionamento, mas foi assassinada pelo ciúme doentio do companheiro.
Foi pensando nisso que Sandra entrou em casa, vinda da escola. Era tarde cedo, duas horas mais ou menos, e ela estranhou o fato de os pais estarem àquela hora, sentados à mesa da sala, sérios quase compungidos (impressão?). Antes que ela perguntasse algo, o pai a chamou:
─ Sente aqui, filha, temos algo a lhe comunicar.
─ Vocês vão se separar, é isso? Perguntou Sandra com um aperto no peito.
─ Não filha – disse a mãe – nós não nos vamos separar, pelo contrário, nunca estivemos tão unidos como agora e graças a você e àquela história de frescobol. Realmente você tinha razão. Era preciso que nós nos desfizéssemos de nossos orgulhos e partilhássemos mais nossas experiências profissionais. Você tinha razão, nós nos amamos e precisamos viver bem sempre, sem segredos, com palavras claras e sem cobranças desnecessárias.
─ É isso, Sandra – continuou o pai – mas o que queremos comunicar a você é que nós pedimos demissão dos nossos trabalhos e resolvemos abrir nossa própria empresa de contabilidade...
─ Puxa! Que legal, interrompeu a menina quase com lágrimas nos olhos, mas por que estão tão sérios?
─ Calma! É que no começo as coisas poderão não ser tão legais, como você diz. Nós vamos ter que cortar algumas despesas e poderemos passar por algumas privações, até que o negócio esteja consolidado e ganho a confiança dos clientes...
O pai não pôde continuar, pois Sandra pendurou-se no pescoço dos dois dando beijos num e noutro sem parar. Naquela tarde o pai e a mãe resolveram fazer um gasto extra, e os três saíram, como uma família realmente unida, para passar a tarde nos arredores de Gil Vicente, onde havia excelentes balneários com bons restaurantes e ótimas refeições.




CAPÍTULO XXI



Na verdade, Professor Flávio estava mesmo mudado. Até suas roupas haviam ganho um novo colorido. Ele, que sempre usara roupas de um tom amarronzado, apresentava, agora, sempre combinando, tons bem mais alegres. Essa mudança no vestuário refletia também no seu novo jeito de falar, de cumprimentar as pessoas, no início com certa dificuldade, mas com o tempo foi-se percebendo uma maior espontaneidade. Mas qual teria sido mesmo o motivo de tanta mudança? Saibamo-lo a seguir.
Logo que foi apontado como suspeita da ação que culminou com a morte do jovem ator da tevê Mundo, Flávio procurou o Professor Cícero e colocou à sua disposição seu cargo. Professor Cícero elogiou bastante sua atitude e lhe disse que julgar cabia à justiça, que enquanto não se provasse o contrário, ele era inocente. Aquelas palavras do diretor do Redentorista deram grande alento ao professor, que segredou ao chefe sua insegurança diante das pessoas e que, era claro, morria de medo de estar diante da polícia. Foi nesse contexto que lhe foi apresentado Dr. Rui, amicíssimo do Professor Cícero. O advogado aceitou imediatamente a responsabilidade de auxiliar o professor durante os interrogatórios. Foi a partir daí que Flávio encontrou não só uma forma de provar sua inocência, mas também de melhorar sua relação com o mundo.
Motivados por uma forte afinidade, talvez só explicável à luz da astrologia ou por um desses mistérios que envolvem a humanidade, os dois tornaram-se amigos e confidentes, o que reforçou ainda mais a confiança do rapaz. Diante daquela timidez à flor da pele, o psicólogo-advogado, em determinados momentos mais um que outro, começou uma rápida, porém gradual mudança no rapaz. Sendo assim, aquilo que os habitantes de Gil Vicente viram como uma máscara de cinismo, na verdade, era o processo em série da alteração de comportamento. Era uma tese defendida pelo psicólogo que consistia na erradicação de um complexo através da exposição do indivíduo àquilo que o constrange. Rui era um defensor da idéia de Freud segundo a qual a timidez é gerada por um complexo de inferioridade, que é um conjunto de memórias recalcadas no subconsciente do indivíduo. Para o progenitor da psicanálise é necessário que o indivíduo assuma seu mal para que possa eliminá-lo. A princípio, o advogado pensou que o problema de seu cliente fosse algum tipo de autismo, mas bastou-lhe algum tempo de conversa para concluir que se tratava de um complexo originado na infância. Depois de algumas sessões o médico e o paciente tornaram-se conhecedores da memória pregressa que ocasionara o distúrbio. Foi nesses dias que o professor fora convocado para o primeiro depoimento. E nós já conhecemos o resultado. Para o segundo depoimento, Dr. Rui intensificou o tratamento de choque, que resultou na dissimulação ocorrida no segundo interrogatório. Era que Dr. rui se desdobrara em dois: o advogado e o psicólogo.
Na escola os alunos perceberam a mudança e a aprovaram. Os jovens são mais susceptíveis a alterações por isso não viram a metamorfose pela qual passava o rapaz o como uma fuga de personalidade, com o intuito de retirar de si a suspeita de um suposto crime o qual já era atribuído ao professor. Os grupos comentavam a nova postura de Flávio sempre de forma bem humorada. Carlão afeito a fofocas mais do que o Alfredo, não cansava de lembrar as meninas e aos meninos a mudança “como ele está gato!” As moçinhas também faziam comentários do gênero. Sandra, no entanto, tinha comentários ma reflexivos:
─ As pessoas têm direito a uma virada de comportamento. É comum no homem esse desejo de se tornar melhor. O professor Flávio sempre foi um grande profissional, mas sempre me incomodava aquela suadeira nas mãos e aquele ar de quem está assustado ao falar com alguém. Agora ele é outro, é um novo homem e talvez seja finalmente feliz. Vamos ver agora se Marlene vai desprezá-lo.
Os colegas e as colegas ouviam aquelas palavras e aos seus ouvidos elas soavam quase proféticas. Sandra sabia como poucos naquela idade fazer um raciocínio maduro e agora com a nova união dos pais ela estava bem mais feliz e livre para fazer o que sempre gostara: refletir sobre a existência.
Com efeito, Marlene se surpreendera com as mudanças ocorridas com Flávio. A princípio, quando ficou sabendo por Rita, dissera não ter nada a ver com isso, “a vida desse cidadão, cidadão não, cidadim, não me interessa”, brincou ela um pouco áspera. No entanto, uma manhã, ela estava na loja ajeitando algumas prateleiras quando viu, do outro lado da rua, um homem, de costas e que lhe pareceu um belo exemplar do sexo masculino. A moça, espevitada, não tirava os olhos do novo rapaz, quando este se virou ela teve um susto, era ele, Flávio Augusto. Não imaginava o quanto ele havia mudado. Ela não conseguiu tirar os olhos de cima dele, mesmo um pouco constrangida pelo engano. Algo de que ela não gostava, um detalhe que o tornara repulsivo aos seus olhos, desde a primeira vez que o vira, não existia mais, no entanto, por mais que se esforçasse, a moça não conseguia atinar o que era. Do outro lado ele se esforçou ao máximo para manter o semblante impassível. Naquele curto espaço de tempo, que mais pareceu uma eternidade, em alguns momentos ele quis baixar a cabeça, mas susteve-a, encarando aquela por quem daria a própria vida e por quem era desprezado Ela, pela primeira vez na vida, sentia-se atrapalhada. Ele meneou a cabeça como se desculpasse por ter de sair e desceu a rua. Daquele momento em diante, nunca mais a vida dela seria a mesma.



CAPÍTULO XXII



Era final de novembro. À medida que se aproximavam as comemorações do final do ano, mais a cidade tornava-se festiva. A praça da amizade parecia mais alegre, mais pessoas a freqüentavam, as flores tornavam-se mais perfumadas, as pessoas mais felizes. As novenas, comuns nessa época, eram verdadeiras festas religiosas que acabavam se tornando em momentos de confraternização. PE Belo e o pastor Hamilton transformavam a cidade numa comunidade ecumênica. Há muito era assim em Gil Vicente, as pessoas aprenderam a conviver com as diferenças de culto, e até a Umbanda, com seus poucos seguidores e apesar da discriminação dos grupos conservadores era sempre mencionada pelo padre como sendo uma cultura religiosa, portanto merecedora de respeito.
O centro, com seu barulho de carros, motos e motonetas, além dos sons ininteligíveis era uma outra realidade. Nas lojas, os jingles de natal recebiam os clientes que não paravam de entrar de mãos abanando e de sair com pacotes e mais pacotes. Os sorrisos se estendiam de um canto ao outro da boca numa felicidade gerada pelo poder de compra. É assim que funciona o germe do consumismo, comprar é a realização maior do ego, presentear a si e aos outros é apenas a desculpa para se entrar nas lojas e digitar a senha do cartão de débito ou riscar o nome no de crédito, é como a alegria de um gol, incontida, explosiva. Para os comerciantes é o período mais esperado do ano. As vendas crescem e junto com ela os lucros que em breve se transformarão em novos carros, passeios a outros continentes e mais lucros no final de tudo.
As escolas já estavam se preparando para as festas de encerramento do ano letivo, e neste ano haveria uma novidade: as maiores escolas fariam juntas essa festa. Pela primeira vez os alunos das cinco principais escolas particulares, incluindo o Redentorista, se confraternizariam em uma só comemoração de encerramento de ano letivo. Essa novidade fora uma iniciativa da SPP (sociedade Promovedora da Paz), uma instituição criada há alguns anos na cidade, mas que andava um pouco desativada e que renascia agora com todo gás, após o triste acontecimento de setembro. O objetivo da mega confraternização era evitar que uma pequena rivalidade que havia entre os estudantes de diferentes instituições de ensino ganhasse proporções maiores, com aquela reunião, com certeza, ela se dissiparia. O sucesso desse empreendimento já era manifesto, pois alunos que antes evitavam outros porque pertenciam a escolas diferentes agora sentavam nos mesmos bancos da praça e se cumprimentavam espontaneamente. A festa estava marcada para o dia 15 de dezembro.
Mas para a felicidade de Gil Vicente ser completa era necessário que a tragédia do redentorista fosse solucionada. E para tal o comissário Macedo, agora oficialmente à frente do caso, não media esforços. Há dias não parava na delegacia, andava para cima e para baixo, tomava café no mercado central, freqüentava mais amiúde a barbearia da rua do ouvidor, visitava famílias, fazia interrogatórios que mais pareciam uma conversa informal. Enfim não poupava esforços para chegar a uma conclusão do caso. Naqueles dias, numa entrevista a um programa policial, ele disse que já tinha provas suficientes para prender o responsável pela morte de Murilo, o jovem ator vítima da tragédia. É claro que aquela afirmação gerou certo mal estar na cidade, e todos eram categóricos em afirmar que “se ele já tem o nome do criminoso por que não tira a angústia que sufoca a sociedade gil - vicentina”. Quando alguém lhe indagava quando ele iria colocar as mãos no assassino, ele respondia que “em breve”. No entanto não parava de investigar e isso fazia com que alguns afirmassem que era blefe, que o delegado não sabia nada.





CAPÍTULO XXIII



Desde setembro que Jonas e Sandra estavam bem. Nunca mais o rapaz tivera nenhuma crise de ciúme. Mas também viver bem com Sandra não era tarefa difícil. Ela era muito discreta, nunca dava motivo para desconfiança, não cobrava nada do namorado. Ele, por sua vez, não olhava para as garotas, que não tiravam os olhos dele, e não cansava de demonstrar seus sentimentos para com a namorada.
Entretanto Sandra não estava satisfeita com a situação. Havia em sua boca um gosto entre doce e amargo, com certeza era o gosto da dúvida e esse sabor tinha que desaparecer. Ela queria o sabor da certeza de que o namorado mudara, e só ficaria tranqüila quando ele demonstrasse realmente confiar nela, provasse que não sentia ciúme. Ela sabia, pelo que lera, pelo que pesquisara, ser difícil o controle desse sentimento tão nefasto, mas sabia também, e para isso tinha o exemplo recente do professor Flávio, que as pessoas podem inibir sentimentos negativos. Ela precisava ter certeza de que poderia ser feliz ao lado do namorado, sem se preocupar com alguma atitude impulsiva.
Sendo assim, ela arquitetou um plano: diria a ele que recebeu um convite da tevê Mundo para fazer um teste para participar da próxima novela. Seu plano, no entanto, deveria ser muito bem arquitetado, para ser convincente. Por isso ela recorreu a sua curta amizade com o diretor João Santos. Enviou um e-mail para ele pedindo que lhe remetesse o tal convite. Disse que era uma brincadeira que queria fazer com as colegas e jurou que “não vou comparecer na tevê reclamando o tal teste”, brincou. Pelo pouco que conhecera a garota, o diretor atendeu ao seu pedido e enviou-lhe um e-mail simulando um convite para fazer uns testes na famosa emissora.
Era sexta-feira, véspera da festa de encerramento do ano letivo. Sandra e Genoveva estavam na sorveteria no final da tarde, quando Jonas chegou, cumprimentou-as e sentou-se ao lado da namorada. Quando Genoveva se despediu, Sandra disse a Jonas que tinha uma novidade e entregou a ele um papel dobrado, no qual havia o falso convite. Ele leu, dobrou-o novamente e o devolveu à menina, que lhe perguntou:
 E aí, o que você acha?
─ Ótimo, disse ele, esse diretor deve ser libriano, pois é um descobridor de talentos. Não foi você que disse que os librianos são bons descobridores de talento?
Sandra estava abismada. Não notava nada que demonstrasse que Jonas estava com ciúme. E realmente ele não sentira. Ele próprio estava admirado de si mesmo. Ele olhou nos olhos dela e lhe disse:
─O tratamento está dando certo.
─Que tratamento? Perguntou Sandra. Ao que ele respondeu:
─ Naqueles dias em que eu me ausentei da cidade, véspera de ter acontecido aquela tragédia, eu não tinha ido resolver problemas da fábrica para o meu pai não. Eu fui à cidade participar de um curso para se deixar de ter ciúme...
E contou os detalhes sobre o curso. Na verdade era um seminário com psicólogos famosos, estudiosos da gênese desse sentimento responsável pela dissolução de tantos relacionamentos e destruidor de tantas vidas. Nele os participantes tinham de contar suas experiências, ouvir a dos demais, numa terapia semelhante ao dos alcoólicos anônimos. Jonas finalizou o relato dizendo:
─ Não se preocupe mais com isso. Agora eu aprendi a confiar em você. Eu não sou bobo de correr o risco de perdê-la.
─ A menina não sabia o que fazer ou o que dizer. Tudo em sua vida estava dando certo. Naquele momento ela sentiu na boca um sabor diferente, um gosto bom, que só podia ser o gosto da felicidade. Levantou-se e beijou o namorado com serenidade, quase agradecendo pelo que estava acontecendo. Aquele beijo com certeza selaria de vez a união entre ambos.


CAPÍTULO XXIV



O Clube Recreativo Gil - vicentino estava de decoração nova. As paredes pintadas de vermelho, para lembrar as comemorações natalinas, contrastavam com o branco das colunas e o transparente dos lustres enormes que pendiam do teto. Cortava toda a extensão do salão principal fitas verdes Das quais pendiam enfeites natalinos. No canto, estava o palco, onde o conjunto executava solenemente o hino das escolas ali reunidas. As pessoas iam chegando paulatinamente e eram recebidas pelos diretores das instituições de ensino. Às dez da noite, horário do início oficial da festa, quase toda Gil Vicente estava ali reunida. Não havia mesa desocupada, e muita gente se arranjava nos parapeitos mesmo, entretanto era pouco o número de casais que desfilavam pelo salão. Os garções é que estavam tendo trabalho para transitar por entre as pessoas, indo e vindo com bandejas enormes repletas de comes e bebes.
Sandra estava ao lado dos pais e do namorado e seria a própria imagem da felicidade, se algo ainda por esclarecer não a incomodasse. Genoveva, numa mesa ao lado, com os pais e o namorado Fabrício, de vez em quando virava-se para a amiga para fazer algum comentário. Alfredo e Carlão não paravam de zanzar saracoteando de cá pra lá e de lá pra cá. É que eles não podiam ver alguém com uma roupa espalhafatosa ou com uma maquilagem um pouco mais forçada, ou algum flagrante do gênero que já vinham e iam contar para as colegas, que não sabiam se riam do que eles contavam ou de como eles contavam. A mais atenta aos relatos dos dois era Naiara, que estava à frente do jornal da escola e era responsável pela coluna de fofocas, juntamente com Flavinha.
Sentados a uma mesa na beira da piscina estavam Dr. Rui, sua esposa e Flávio Augusto. O advogado e sua companheira gostaram tanto dos ares da cidade que compraram uma casa nos arredores e agora viviam praticamente ali. O professor conversava animadamente e não ligava ou se fazia não ligar para a presença de Marlene, que, sentada com Rita mais alguns rapazes a uma mesa próxima, não parava de olhá-lo. Aquela deveria ser a noite mais importante dele, pois era a primeira vez que se achava em um aglomerado como aquele depois que ficara livre do tormento o qual o incomodara durante toda sua existência, a timidez. Agora podia olhar as pessoas, admirar sua beleza ou ignorar sua feiúra. Via o mundo por um prisma novo, sem constrangimento, respirava o perfume das flores sem se preocupar se aquela atitude gratuita pudesse ser ridícula aos olhos de alguém, podia falar algo trivial sem se incomodar se o dito soara como “besta” aos ouvidos de outrem. Enfim era um novo homem, livre, como um escravo que acabou de receber a alforria. No entanto havia algo que o incomodava, e ele sabia muito bem o que era.
Mas esse sentimento não era privilégio do professor. Jonas, ao lado de Sandra, não conseguia deixar de se imaginar suspeito de um crime. Soavam ainda as palavras do delegado: “ninguém nessa cidade pode ser considerado inocente até que o responsável pela morte do rapaz da tevê não esteja atrás das grades. Até então todos são suspeitos, principalmente aqueles que de certa forma tinham algum motivo para querer vê-lo abaixo de sete palmos.” Isso o incomodava muito e ele sabia exatamente por quê.
Mas esse sentimento de culpa pertencia a toda uma cidade. Gil Vicente era uma comunidade pacata, constituída de pessoas ordeiras, em sua maioria, e aquela nódoa de ter sido palco de um crime iria permanecer por muito tempo. Parafraseando PE Vieira, um jornalista dali dizia que “só o tempo iria apagar a mácula que se pespegara a esta cidade, pois o tempo tudo cura, tudo digere, o tempo se atreve a colunas de mármores quanto mais à memória humana”. E esse pejo se via nos olhos das pessoas, para quem todos eram suspeitos, e às noites rezava-se para que se solucionasse aquele fato.
O primeiro a discursar foi o Professor Cícero, que falou de sua trajetória na educação e de como lhe foi dificultoso a construção de uma escola alternativa como aquela e, pedindo desculpas aos colegas, encerrou sua fala repetindo sua já célebre frase: “NO FUTURO TODAS AS ESCOLAS SERÃO ASSIM”. Os diretores das outras escolas seguiram a mesma linha de discurso e finalizaram sempre lembrando que “no mundo há espaço para todos”. Os representantes dos estudantes procuraram ser breves em discursos, pois o que mais lhes importava naquele momento era a festa. Quando o último orador vendeu seu peixe, os aplausos ecoaram mais forte do que antes, pois isso era o indicativo de que a festa agora iria realmente começar. Entretanto os presentes foram surpreendidos quando Comissário Macedo e seu inseparável companheiro, Dr. Rocha, que já pedira transferência para os ares de Gil Vicente, subiram ao palco:
─ Desculpem-nos, Senhoras e Senhores – falou em tom solene comissário Macedo, como a dar seqüência aos oradores – não queremos interromper a sua festa, mas é que não vimos momento mais adequado para darmos a grande notícia desse final de ano. É que já chegamos ao responsável pelo crime de setembro e queremos compartilhar nossa alegria aqui com vocês.
Houve uma comoção generalizada, um zunzunzum quase ensurdecedor. Era, possivelmente, a primeira vez que se via aquilo na história da crônica policial, um delegado interromper uma festa para dizer que solucionara um caso, principalmente um como aquele, que envolvia pessoas que se encontravam ali, naquele momento. Diante do quase tumulto, comissário Macedo aumentou o tom da voz para pedir silêncio e foi com grande esforço que o conseguiu. Com o retorno aparente da tranqüilidade ele continuou para dizer que no início das investigações as suspeitas recaíram sobre pessoas da cidade. Após algum tempo alguns suspeitos tiveram seus álibis comprovados. Entre esses suspeitos estava Jonas, que comprovara estar realmente ausente nos dias que antecederam ao ocorrido, incluindo o próprio dia em que se deu o fato lamentável. Outra pessoa que teve seu nome riscado do rol dos suspeitos foi o senhor Amaral, presidente do Conselho Restaurador da Ordem na Cidade (CROC) e que era motivo de zombaria para a maioria dos habitantes. Ele tornara-se suspeito porque numa gravação apreendida em sua casa ele dizia ser capaz de qualquer coisa para afastar “o veículo do demônio de nossa cidade”. Durante as investigações os delegados comprovaram seu álibi e concluíram que suas ameaças não passavam de bravatas. É claro que o delegado não utilizou-se desses termos, tampouco citou nomes. Marlene, outra, suspeita também teve seu nome riscado, por também comprovar onde e com quem estava nos momentos que antecederam e se sucederam ao ocorrido. As suspeitas então recaíram de vez sobre o professor Flávio Augusto, que fora visto nas imediações da escola no dia anterior ao do sinistro.
─ Todas as suspeitas recaíam sobre um único cidadão. Inclusive já havíamos solicitado ao juiz que expedisse o mandado de prisão contra o mesmo. – nesse momento houve um frisson entre os presentes que teve mais uma vez de ser controlado, desta feita pela voz grave do Dr. Rocha, que se abanava com seu inseparável livro de palavras cruzadas. Ao que o titular continuou – no entanto, ocorreu algo que viria mudar de vez a linha de investigação. Há alguns dias eu estava vendo umas notícias policiais na internet, quando li que havia no mundo uma rede de suicidas, uma espécie de seita que induzia seus participantes a cometerem o suicídio. Entrei em contato com alguns colegas de outros estados e eles me confirmaram o inacreditável, pelo menos para mim. Eu, então, – nesse momento o comissário pigarreou forte e olhou os circunstantes, estavam todos calados, assim pensou que nunca se sentira tão importante, e continuou – então eu entrei no saite de diversos grupos desse gênero, e já estava quase desistindo, quando encontrei o nome do ator Murilo entre os adeptos de uma seita chamada “Ego proximus ero”, que é latim e significa eu “Eu serei o próximo”. Conseguimos que nossos colegas na capital investigassem os e-mails do rapaz. Dias depois eles entraram em contato conosco para dizer que acharam a seguinte mensagem datada do dia 21 de setembro deste ano, portanto dois dias antes de sua morte: “Vitam terrenam relinque, ut Deum invenire possis. Nunc tua hora est, aliis culpam dona”. Também é latim e quer dizer “Abandona a vida terrena, para que possas descobrir a Deus. Agora é a tua vez, deixa a culpa para os outros.” Concluímos, pois, que o rapaz, cumprindo com os desígnios do grupo, colocou o projétil de verdade no lugar da bala de festim. E mais: colocou-a na agulha para que não houvesse falha. Sua morte representaria um mistério para o meio policial e levaria as pessoas a se culparem, assim o grupo teria alcançado um de seus objetivos. Não parece loucura um negócio desses! Sendo assim nós demos o caso por encerrado. A Polícia Nacional agora tomou para si a diligência das investigações sobre como funcionam esses grupos e cabe a ela prender os verdadeiros culpados. Esperamos que assim ninguém mais veja em Gil Vicente nenhum suspeito. Eis o motivo pelo qual resolvemos dar a notícia aqui, num dia festivo, para que ninguém tenha motivo para desconfiar uns dos outros.
Os delegados foram bastante aplaudidos. A festa finalmente poderia ter início. Já passava da meia noite, mas para a comunidade gil - vicentina, a noite estava apenas começando. Aquelas comemorações tornaram a data mais festiva da cidade e aquele dia seria conhecido como o dia da redenção.




CAPÍTULO XXV



A cada dia que se aproximava o Natal, mas festiva Gil Vicente ia ficando. A praça da amizade tornava-se mais ainda o ponto de encontro dos habitantes. Por essa época, muitas pessoas vindas de Portugal e de outros pontos da Europa vinham visitar parentes e aproveitavam para ficar durante os festejos de final de ano. Era o momento em que se intensificava o turismo na cidade. Os hotéis ganhavam novas movimentações e os habitantes podiam ganhar uma renda extra. Os balneários de águas termais eram visitados durante todos os dias, sem exceção.
Era sexta-feira à noite. Sentada num dos bancos da praça estava Marlene, curiosamente sozinha, sem Rita, seu apêndice. É que ela estava esperando alguém. Em sua cabeça passavam diversos textos, cada um deles parecia mais ridículo que o outro, mas no fundo ela sabia que saberia o que dizer na hora certa. Essa era sua grande arma: a segurança. Algumas colegas chegavam, cumprimentavam-na, no entanto ela facilmente conseguia fazê-las entender que preferia ficar a sós. Já estava ficando apreensiva, quando Flávio Augusto chegou. A moça ficou visivelmente nervosa. Sua tranqüilidade foi-se com o vento que soprava amiúde, enregelando os ossos de quem não fosse acostumado a ele. O rapaz aproximou-se, cumprimentou Marlene e lhe disse:
─ Não entendi quando recebi seu bilhete, mas sou todo ouvidos.
Marlene recuperou parcialmente a calma e começou pedindo desculpas pelo modo como o tratara durante todo aquele tempo. Estava arrependida e que só agora percebia como ele era um belo homem. Ficou um pouco constrangida ao dizer que depois que o vira em frente à loja naquela tarde não conseguira mais tirá-lo dos pensamentos e concluiu:
─ Se você ainda me ama e quiser ficar comigo, me namorar, sei lá, eu aceito.
Nesse momento suas palavras foram envoltas de forte sensualidade, seus lábios vermelhos revelavam desejo premente de posse, os seios arfavam dentro do decote insinuante. Ela sentiu-se novamente dona da situação e os lábios passearam lentamente pelos cantos da boca carmim. Flávio olhou-a de alto a baixo como a fotografar todo o seu perfil, respirou o ar puro da cidade e disse:
─Não houve dia, desde que você voltou de viagem que eu não tenha sonhado com este dia. Quantas vezes eu acordei no meio da madrugada imaginando enlaçá-la, sentir seu perfume, não sei. Sempre imaginei que a felicidade era estar ao seu lado, amá-la dia após dia; ver os filhos correndo de lá pra cá nesta mesma praça onde estamos agora. Suas más-criações, seu desprezo nunca me foram constrangedores, pelo contrário, a única coisa que eu tinha de meu, fora o conhecimento acadêmico, ou seja, a única coisa que fazia com que eu existisse e as pessoas me vissem era você. Todos diziam: “Ali vai Flávio Augusto e o seu peito intumescido de amor pela moça faceira da loja”, e até nos momentos em que fui suspeito de algo tão terrível como o acontecido com o rapaz da tevê, era-o por você, e ninguém dizia “lá vai o suspeito de um crime”, mas “lá vai o homem que ama Marlene a ponto de cometer um crime”. E era por isso que eu existia. No entanto encontrei uma pessoa que me devolveu a alta auto-estima perdida, não sei em que momento da minha existência. Dr. Rui me fez ver que somos todos iguais, que eu podia olhar qualquer um no olho ou me apaixonar por qualquer pessoa, que eu não precisava inventar uma paixão. É isso que você foi durante todo esse tempo uma invenção. Nós precisamos demasiadamente dos outros e desse mal eu também sofria. Eu entendo, hoje, que nós precisamos nos dar o direito de conhecer pessoas, fazer amizades e assim, com certeza, encontraremos a pessoa certa, a nossa alma gêmea, nossa cara metade. Certamente você não é essa pessoa, pelo menos com relação a mim. Se você não sair beijando qualquer um que lhe cruze o caminho, amando qualquer um sem critério algum, você também poderá ser feliz e encontrar sua outra metade. Mas não seja ansiosa, dialogue, discuta, faça amizade com todos os grupos de pessoas, sem discriminação, permita-se conhecer o universo de seres que lhe rodeiam o mundo. Eu queria muito admirar sua coragem pôr vir aqui me falar em namoro, “ficância”, sei lá, mas no fundo eu sei que você fez isso para as pessoas poderem dizer “aquela moça realmente tem fibra, consegue tudo e todos que quer”. Sem mágoas, eu desejo a você toda sorte do mundo, mas eu não a amo.
Dizendo isso, o rapaz beijou-lhe a mão e saiu sem olhar para trás, enquanto Marlene soluçava convulsivamente, as palavras do rapaz foram fundas no seu ego até ali tão prepotente. O choro não era de amor, mas de reconhecimento do seu abjeto comportamento. Ela irá mudar, assim como ele pôde fazê-lo, e quem sabe se essa outra pessoa na qual ela se tornará não seja a alma gêmea de Flávio, e quem sabe eles possam juntos recontar-nos esta história.




FIM




NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...