terça-feira, 30 de dezembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO VII

“Amor, e o que é o sofrer
para mim que estou jurado
pra morrer de amor!”
(Djavan)

Eu ando por uma rua cheia de pedras e chego a uma oficina onde com um serrote um homem transforma uma tora de madeira em vários pedaços, em seguida ele com um formão vai moldando-os até dar a eles forma de encaixe. Estou numa oficina de manufatura lá fazemos diversos móveis, além de molduras para quadro e esculturas. Eu sou o responsável por essas últimas, sou uma espécie de artista. Com as sobras de madeiras eu faço o meu trabalho de formas diversas, esse é o meu modo de expor meus sentimentos. Ao chegar à referida oficina sento-me e vou terminar um trabalho. Depois de lixar bastante várias conchas, eu as colo com cuidado, encaixando-as umas às outras formando a moldura de um quadro em que há a xilogravura de uma jovem. Enquanto executo esse trabalho sou abordado pelo meu companheiro, que trabalha ao lado:
─ E aí Brhadzag, já desistiu da moça?
─ Claro que não, nós nos amamos e nada vai fazer com que desistamos um do outro, nem que para isso seja preciso mil anos.
─ Já tinha ouvido dizer que os artesãos eram malucos, mas você é pior que uma mula. Você sabe que o pai a quer para si e, mesmo sendo isso contra as leis sagradas, é ele quem manda na aldeia. Se você se interpuser entre ambos ele o eliminará. Ele já deliberou isso para quem quisesse ouvir.
Eu não respondo nem comento essas palavras. Em minha cabeça só reside uma idéia: a de fugir com Ranjicniami dali daquela aldeia.
A aldeia fica numa ilha afastada de qualquer coisa que podemos chamar civilização, pelo fato de ser constantemente assolada por ondas gigantes. Seus antigos moradores viram ali uma forma de fugirem da miséria imposta pelo estado de fato e aos poucos foram se habituando às ondas gigantes que chegam sem aviso e destroem tudo que encontram pela frente. Às vezes com maior ou menor intensidade. Já houve vezes em que a aldeia foi totalmente destruída, para ser novamente edificada, pois os moradores preferem ser vítimas da natureza a voltarem à miséria de então. A maioria dos aldeãos, resignada, crê que as ondas vêm lavar os pecados dos antigos habitantes dali, que foram tragados pela terra a mando do demônio, e agora o mar, a mando do altíssimo, lava-lhes os pecados com fortes ondas.
Ronstabrhami é o pai da moça. É ele quem manda na aldeia, manipula os pescadores e odeia os artesãos, que vivem à revelia de suas ordens. Se dependesse dele não haveria manufaturas por ali. Entretanto trata-se de uma necessidade coletiva, como em toda sociedade. As mulheres usam sempre um manto de cor marrom enquanto os homens vestem-se à vontade. Trata-se de uma cultura patriarcal em que as mulheres não têm direito algum sobre nada. Apesar de vivermos numa sociedade sem estado de fato, aqueles que se colocam como líder, entre eles Ronstabrhami, trouxeram o ranço do poder e dominam com palavras os submissos, sobremaneira as mulheres “que não podem erguer a voz contra os homens, não podem vestir-se de tal forma que lhe apareça partes do corpo, pois o altíssimo, aquele que criou o mundo, que nos deu a vida, lançará sobre nós todas estrelas do céu.” O povo saiu do fogo e caiu na brasa. Havia aqueles que procuravam não baixar a cabeça, mas o temor a Deus era implacável.
A moça é Ranjicniami, filha de Ronstabrhami. A vila inteira comenta em surdina que o pai, ao perder a mulher durante parto, odiara a filha e assim decidira que quando ela chegasse à puberdade ele a possuiria em lugar da esposa. Embora desde criança conhecesse a família de Ronstabrhami, não conhecia Ranjicniami. Certa vez quando me dirigia ao deserto para o jejum anual, que todos fazemos em data escolhida, passando por umas ruínas da antiga civilização, ouvi som de choro baixinho. Dirigi-me até lá e vi o rosto mais bonito que já vira até então, que mesmo imaginado por um artista não teria tanta beleza. Mesmo envolto em véu e lágrimas, não perdia a feição quase sacra. Era Ranjicniami, que ao me ver encolheu-se a um canto:
─ Calma – disse-lhe eu – não vou machucá-la. O que faz você aqui?
Ela então me contou entre soluços que seu pai a queria possuir. Havia alguns meses que ele começara a reivindicar que ela desse a ele aquilo que lhe tirara ao nascer e cada dia o assédio tornava-se mais amiúde. Não sei o que me ocorreu diante de ser tão belo e ao mesmo tempo tão necessitado de proteção, só sei que não me contive e a beijei. Ela assustou-se e se afastou de mim.
─ Desculpe-me, – falei desorientado – não foi por mal, perdão – instei.
Ela aproximou-se novamente de mim, pousou o rosto no meu peito e falou baixinho com segurança:
─ Então é você! Agora eu o reconheço.
Eu é que não estava entendendo. Mas vendo meu semblante interrogativo continuou:
─ Ontem à noite eu tive um sonho. Eu estava desesperada e me apareceu uma imagem feita de luz e me disse que em breve eu encontraria uma pessoa que me ajudaria no meu calvário. Eu então perguntei como identificaria essa pessoa, ao que a luz me respondeu: “Ela lhe dará o sinal.” Você acaba de me dar esse sinal. Pois não é o beijo o sinal da eternidade?
Eu, apesar da surpresa, não achava a situação estranha, era como se tudo aquilo fosse acontecer e estivesse apenas esperando o momento certo (há tempo certo para tudo). Depois passamos a nos ver com freqüência e cada vez a amava com mais intensidade. Ela era a minha razão de existir, todas as minhas imagens tinham o seu rosto. Mas o óbvio se deu. Ronstabrhami descobriu nosso idílio e surrou a filha, trancando-a em seguida num quarto. Ele era mais covarde do que eu imaginava. Como não havia homens a sua disposição, não enfrentava seu desafeto, preferia castigar a filha para obrigá-la a submeter-se a ele. Tentei todos os meios de vê-la. Debalde foi, pois Ronstabrhami passava os dias de guarda, como um cão, e as mulheres que trabalhavam em sua casa temiam por suas vidas.
Eu estou na praia catando conchas para a moldura de um quadro de uma senhora morta, solicitado pelo viúvo, que me pagaria bem pelo rosto da esposa. Com essas moedas somadas às que eu tinha guardado eu pretendo, construir um barco e com ele atingir o continente junto com Ranjicniami. De repente eu ouço um barulho ensurdecedor, semelhante ao ruído de um leão, viro-me e vejo a onda gigante que desponta no horizonte. No meu desespero só penso em ajudar umas crianças que brincam próximo ao dique. Corro para lá e vejo o torpor impressos nos rostos infantis. Não tenho dúvida, preciso salvá-las. Pego-as e num esforço heróico transporto-as até o ponto mais alto, livre do alcance das águas. No entanto, quando me viro, vejo Ranjicniami, correndo desesperada para mim. Num relance eu imagino o que aconteceu. Ela conseguira se libertar do pai e fora atrás de mim, imaginando onde eu me encontrava, fora à praia. Eu vejo a onda gigante se aproximando com furor mais intenso, normalmente ela leva entre vinte e trinta segundos quando desponta no horizonte até rebentar no dique. Resta-me, pois, alguns segundos para salvar Ranjicniami. Salto por cima das rochas ferindo as pernas, sem sentir dor, quando chego até ela, ouço-a dizer “você não deveria ter descido até aqui”. Resignado do que nos espera, abraço-a. Somos arremessados contra a parede de rocha com tanta violência, que nossos ossos estalam ao mesmo tempo que sinto os pulmões serem invadidos pela água. Em seguida não sinto nada. Estou com Ranjicniami nos braços, ela me sorri me beija e ficamos olhando as águas revoltas que cobrem toda a praia. Vejo nitidamente as pessoas se aproximando, olhando assustadas a água. Dali podemos ver alguns corpos boiando, inclusive o meu e o de Ranjicniami, abraçados. Olho para ela pasmo, mas ela não tem o mesmo sentimento, apenas sorri. Uma luz nesse instante desce sobre mim e outra sobre ela. Uma luz tão intensa que a luz do sol parece trevas se comparada a ela. Sou levado para um lado e Ranjicniami para o outro.
Acordei, já com dia claro. O sol já me entrara pela janela, minha mãe batia na porta com violência dizendo que eu estava atrasado para o compromisso que assumira com ela de ir fazer o restante das compras de Natal.
─ Já vou. – Respondi, mas fiquei um bom tempo refletindo a respeito daquele sonho. Com certeza era um regresso à mais importante das minhas vidas passadas. Era esse o meu destino, encontrar Aliel e fazê-la feliz, nesse ínterim eu deveria ajudar outras pessoas. Lembrei-me então de Wellington. Eu deveria escolher uma profissão que salvasse vidas, tendo ao mesmo tempo que encontrar a mulher que me fora destinada há quase dez séculos.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS


CAPÍTULO VI
“Graças a Deus que as pedras são só pedras
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.”
(Fernando Pessoa)
No dia seguinte deixei o hospital e voltei para casa. Sentia-me um novo homem. Edificara em mim uma nova pessoa. Não sentia vontade alguma de fumar ou beber. Em mim só havia uma vontade grande de redescobrir a existência, de recuperar o tempo perdido, entretanto não havia pressa. Eu sabia que o futuro vem com o tempo, que eu conseguiria realizar aquilo para que fui destinado. Era final de ano e eu procurei dar vazão às coisas mundanas. Matriculei-me novamente no terceiro ano para me preparar para o vestibular, arrumei meu quarto, joguei papéis inúteis fora e me desfiz de tudo que fosse supérfluo. Precisava reorganizar minha biblioteca, meus discos. Até minha cama eu mudei de lugar. Antes ela ficava entre a janela e a parede, agora eu a pus ao lado da janela para durante as noites admirar a lua e as estrelas.
Às véspera de natal eu estava mais próximo de minha família, como forma de buscar energias para o futuro. Eu nunca havia percebido isso antes, mas o final de ano é um momento par refletir o nosso estar no mundo e nos prepararmos para o ano seguinte, quando temos de escolher caminhos e nos ausentarmos de casa. É nesse período que precisamos de fato armar a estratégia de ação para o ano vindouro. É certo que a questão tempo cronológico, como o concebemos, é apenas uma convenção, algo criado pelos homens para gerar o ciclo social. Mas não é menos certo que ao encerrarmos um ano encerramos uma etapa de nossa vida, pó isso é nesse momento que devemos nos preparar para a etapa seguinte. Isso tudo me fez reflexivo e eu pensava que o meu encontro com Aliel estava próximo, em uma dessas andanças das estrelas pelo céu, talvez sob a constelação de Virgem ou Libra, nós nos reencontraríamos.
Mas foi Ângela que encontrei, numa loja de um shopping. Eu remexia numa arara de camisas em promoção quando ela tocou de leve meu ombro. Ergui a cabeça e a vi sorrindo para mim, não sei se de alegria ou cinismo. Meu coração disparou e eu tive de me segurar para não desabar, meu rosto devia ter ficado branco e eu não encontrei palavra. Ao que ela indagou simplesmente:
─ Te assustei?
─ Que é que você acha? – Respondi, meio sem jeito.
─ Posso falar contigo? – Perguntou ao perceber que a resposta seria sim, pois notara todo o meu desmoronamento.
Saímos e nos dirigimos à praça de alimentação. Alguma coisa me inquietava, como se eu estivesse sendo conduzido para um abismo, como se eu pudesse dizer não, mas não conseguisse. Ela ia séria como um carrasco que leva o condenado ao cadafalso. Sentamos-nos e ficamos alguns minutos em silêncio. Ela pediu um chope e eu um refrigerante.
─ Você vai tomar refrigerante? O que você tem? Aliás, onde você esteve todo esse tempo? Te procurei por todo canto e ninguém tinha notícias.
Eu passei algum tempo calado enquanto ela esperava minha resposta. Até que eu abri a boca para responder e os meus olhos quiseram se encher de lágrimas.
─ Olha – comecei – eu passei por maus pedaços, estive doente, quase morro. Nesse ínterim descobri muita coisa sobre minha vida, tanta coisa que se eu fosse contar você não teria tempo para ouvir...
Ela levantou-se de onde estava e sentou-se ao meu lado, puxando a cadeira para o mais próximo possível de mim. Esse gesto me fez parar. Já sentada ela me beijou. Seus lábios mornos colaram-se aos meus, o cheiro de sua boca me invadiu e eu revi todos os momentos que tive ao seu lado. As lágrimas enfim romperam a barreira do desespero e banharam meu rosto. Eu tive uma vontade louca de abraçá-la, sentir seu cheiro, amá-la ali mesmo para depois adormecer em seus braços, enfim começar tudo de novo. Mas aí eu ouvi a voz do Wellington dizendo “Outras (pessoas) há cuja função é fazê-lo sofrer. Elas precisam desesperadamente de que você sofra, mas você não precisa passar por isso.” Foi então que eu, chorando, fitei-a nos olhos e lhe disse:
─ Eu te quero como nunca quis nada no mundo, às vezes penso que você é a coisa mais importante do mundo para mim, mas você me faz mal e eu não quero mais essa paixão, esse sofrimento. – Era assim que eu me sentia, tão louco por ela que o corpo inteiro reclamava o seu, por isso foi grande o esforço com que eu disse essas palavras.
Ela levantou-se me beijou nos olhos, disse-me “até mais” e se foi, deixando-me em soluços. Naquele momento, ainda com a vista turvada pelas lágrimas que não se queriam conter, eu vislumbrei um rosto me olhando. Era uma menina que estava parada a alguns metros. Fui me detendo e aos poucos pude reconhecer a dona dele. Ela se aproximou de mim e me indagou:
─ Desculpe, mas nós não nos conhecemos?
Enxuguei as lágrimas rapidamente para vê-la melhor. Era Aliel que me reaparecia. Tinha agora quatorze anos e era uma bela moça, os olhos verdes contrastavam com a pele morena, os cabelos soltos davam a ela um ar mais maduro do que a idade. Diante da minha hipnose, ela brincou:
─ Alôô, tem alguém aí? – e simulou bater na janela dos meus olhos. Eu sorri e lhe respondi:
─ Desculpe é que eu estava meio perdido. Senta por favor. – E lhe puxei uma cadeira.
─ Nós não nos conhecemos? – Tornou a perguntar demonstrando seu espírito de criança, que não desiste depois de fazer uma pergunta.
─ Aliel. É este seu nome, não é?
─ E o seu éé...
─ Você não sabe, quando nos vimos você era muito pequena, e eu não lhe disse meu nome, não houve tempo, lembra foi numa praia, creio que Canoa Quebrada, faz tempo.
─ ...Daniel! Acertei? – exclamou ela como se acabasse de acertar a pergunta de um milhão. E emendou – Foi numa praia mesmo, estava me afogando e você veio e me tirou da água, eu devia ter seis ou sete anos, depois eu desmaiei e quando acordei estava em seus braços, você me fez respiração boca a boca, minha mãe que disse. Quando ela chegou feito louca eu ainda estava desmaiada. Quando voltei a mim, havia um monte de gente ao redor, e todas falavam de sua coragem. Quando mamãe me pegou pelo braço eu perguntei seu nome e você disse. Não foi isso?
À medida em que ela ia relatando esse fato eu ia recordando dele e até antecipava algo que ela ainda ia dizer. Eu estava confuso, muito confuso, pois não fora assim que nos conhecemos. E lembrei-me das palavras de sua mãe, quando a encontrei há quase dez anos, que me dissera que a tinha filha o hábito de imaginar coisas. No entanto eu não disse meu nome a ela, e como ela o soube? Talvez tenha ouvido Ângela dizê-lo. Foi isso só podia ser isso. Eu estava perdido nesses pensamentos, enquanto minha antiga amiga pediu um sorvete e agia com muita naturalidade, como se todos os dias nos encontrássemos e ficássemos olhando um para o outro. Para quebrar o silêncio das palavras eu indaguei?
─ Você tem quantos anos, Aliel?
─ Que falta de educação perguntar o nome de uma dama, Sr. Daniel – brincou, como parecia ser a única coisa que fazia a vida inteira – mas para você eu digo, quatorze, fiz agora em setembro. Por quê, você quer namorar comigo?
Eu estava pasmo diante daquela garota, tinha uma espiritualidade que deveria irritar muita gente, e resolvi entrar no jogo.
─ Quero. Aliás, Aliel, eu espero por você há quase mil anos ou mais. Forjei um ar poético para recitar Leoni e comecei: sempre tive a impressão de que...
“Nascemos um para o outro dessa argila
De que foram feitas as criaturas raras
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu trago a alma dos faunos na pupila.

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila

E é tanta a glória que nos encaminha
Nesse Amor de seleção profundo
Que ouço ao longe o oráculo de Elêusis:

Se um dia eu fosse teu e fosses minha
O nosso amor conceberia o mundo
E de teu ventre nasceriam deuses.”

E você quer me namorar? – Arrematei.
─ Quero, mas não posso. – falou sério – eu namoro um menino lá do condomínio. Nossos pais são muito chegados, dizem que nós vamos casar.
─ Você gosta dele? – Perguntei.
─ Não sei, a gente passou a infância toda junta, temos a mesma idade. Às vezes acho que ele é um irmão e tenho pejo de beijá-lo. – nesse momento seu rosto readquiriu o brilho habitual e ela disparou com os olhos de criança – que coisa bonita essa que você falou, e aquela moça que deixou você chorando, quem é? É sua namorada né, seu pérfido, brigou com a namorada e já está querendo arranjar outra...!
─ Você é linda demais – interrompi-a – queria vê-la de novo, pode ser?
─ Claro, podemos ser grandes amigos. Anota o meu telefone que eu anoto o teu e a gente se fala...
Conversamos por mais de uma hora. Depois nos levantamos, eu a beijei no rosto e ela se foi. À noite eu liguei para ela. Quem atendeu foi a mãe. Quando perguntei por Aliel, a mulher, com uma voz austera, quis saber quem queria falar. Tive vontade de dizer que era o menino que encontrou Aliel, perdida, na praia, há dez anos, mas achei estúpido e lhe disse que era um amigo. “Aliel não está” Respondeu a voz do outro lado mais austera ainda. Agradeci e desliguei.





quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CAPÍTULO V

CAPÍTULO V

“Mas Deus que é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito tantas encarnações quantas as necessárias para atingir seu objetivo – a perfeição.”
(Allan Kardec)

Os dias e as noites que passei naquele ambiente nunca serão esquecidos. Entravam e morriam pessoas todos os dias. Foi lá que eu vi de frente a cara da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Pessoas que mais pareciam zumbis do que gente. À noite ouviam-se gritos de portadores da AIDS em estado terminal, eles negavam-se a morrer e horas depois já estavam sobre a pedra à espera de terra e dos vermes, que lhes roeriam as frias carnes. Já estava bem melhor, mas ficara no hospital porque meu pai tinha medo de que eu interrompesse o tratamento. Uma manhã, vagueando pelos corredores, enquanto pensava num mundo de coisas, vi um rapaz discutindo com uma enfermeira. Aproximei-me e percebi que ele reclamava da falta de higiene das dependências do hospital.
Chamava-se Wellington, tinha 23 anos, era portador de AIDS e estava em estado terminal. O que mais me impressionou era o contraste entre sua decrepitude física e sua disposição e consciência, para falar e cobrar melhor tratamento aos pacientes. À tarde, voltei ao corredor e ouvi-o cantando. Foi com certo constrangimento que me dirigi a ele e fiquei sabendo por ele mesmo que talvez não visse o dia seguinte raiar. Ao que comentei:
─ Mesmo assim você me parece disposto, alegre. Diria feliz.
Ele me deu um sorriso magro, que lhe repuxou a pele do pescoço, entretanto era um sorriso vivo, franco, animador. Ele me questionou:
─ E qual seria a saída? Chorar desesperar-me como esses coitados que choram até expirar? Meu caro, o que lhe trouxe aqui com certeza foi algo fruto de suas próprias culpas, para que você tenha tanto medo da morte. No meu caso, não. Já nasci predestinado a este estado, uma vez que sou hemofílico, esse meu sofrimento não passa de uma casca de um fruto deleitável que saborearei em breve, por isso ela me dá coragem e resignação, expio minhas últimas façanhas aqui na terra e conheço esse meu destino. O mundo material deve ser muito importante para você. Existe algo aqui que você tem medo de perder. Você não sabe que estar vivo significa aprender, para melhorar. Quando soube que tinha AIDS, minha preocupação foi me desculpar com as pessoas deste mundo às quais dissera algo que as magoasse. Eu estou partindo hoje, amanhã ou depois de amanhã, meu irmão já partiu antes de mim. Infelizmente ele era ainda verde e se foi com muita dor, eu vou tranqüilo porque sei que é preciso. Ninguém nesse mundo nasce ou morre sem motivo. É necessário nascer e morrer para que possamos nos purificar e melhorar para nascermos em outro mundo ou outro momento que precise de nós. Você não vai agora, ainda há muito que aprender. Nesse plano existem pessoas que precisam de você. Mas urge que as procure. Outras há cuja função é fazê-lo sofrer. Elas precisam desesperadamente de que você sofra, mas você não precisa passar por isso. Aquilo por que procura, você não encontra porque não está sabendo olhar. Olhe com os olhos do espírito, porque os olhos do corpo só vêem o que o mundo lhe mostra, mas os olhos da alma esses lhe mostrarão os objetivos de sua estada aqui, pois se você pensa ser eterno está enganado, se você pensa ser mais importante do que um irmão que acaba de desencarnar, engana-se também. Não pense que você está aqui nesse hospital por acaso. Nesse momento meu espírito, que sou eu, está feliz por encontrar você, algo me diz que a minha última missão acaba de ser concluída.
Já se ia afastando, mas se virou e arrematou:
─ Só mais uma coisa: confie nos seus sonhos, eles não se repetem por acaso.
Dizendo essas últimas palavras ele se retirou e foi dar atenção a um enfermo que andava cabisbaixo e me deixou com um frio na espinha.
À noite tive um sonho, no mínimo estranho, mas que me pareceu bastante familiar. Nele eu me vejo encarnado na pele de uma jovem negra, escrava de uma fazenda de cana de açúcar. Era madrugada e eu estou me preparando para ir para o eito junto com vários outros escravos. Quando vamos saindo, aproxima-se de mim um homem bem vestido, barba negra, luzidia. É o dono do engenho. Ele chega, puxa-me de lado e me sussurra ao pé do ouvido algo como “hoje é a sua última chance, quando voltar do eito eu a estarei aguardo no meu escritório”.
Para aquele dia, nós havíamos organizado uma fuga. Nós seríamos ajudados pelo feitor, que tinha se enamorado de uma escrava e iria nos facilitar a liberdade, para em seguida se juntar a nós. Depois de fugirmos, seguiríamos um caminho indicado por ele por onde chegaríamos a um quilombo seguro, ao qual os capitães-do-mato não tinham acesso. Eu me lembrava então do muito que havia sofrido naquela fazenda. O assédio imposto pelo Senhor do engenho era constrangedor para todos. A própria Senhora sabia de suas intenções para comigo, desde que eu era uma garotinha. Ele, despudoradamente, me cercava, me olhava com os olhos da lascívia e me tocava, como se toca um animal para saber se está pronto para o abate. Quando me achou pronta, passou a me dizer coisas obscenas, a fazer convites para ocupar a cama da Senhora, os quais eu recusava amiúde, pela recusa levava alguns safanões, que depois se tornaram agressões físicas mesmo. Quando bebia, à noite invadia a senzala, chamava o feitor e mandava-o açoitar, não a mim, mas aqueles que sabia serem de meu apreço. Algumas escravas se compadeciam do meu martírio, outras, no entanto, se compraziam com ele. Havia uma, chamada Almerinda. Essa moça me odiava a ponto de não me deixar em paz um só minuto. Nela eu percebi o mesmo espírito de Ângela encarnado. Que mistério estaria por trás de nossas vidas? Quando estávamos na roca, ela me atrapalhava para que eu não cumprisse a produção. Houve uma vez que me quebrou o tear para me ver no tronco. Como continuava a me negar a ir para a cama com o Senhor, ele me mandou para o eito. Era o inferno de cortar e carregar cana de um lado para o outro. Por essa época o feitor, homem de maus bofes, envolveu-se em uma briga numa venda, que abastecia de cigarro e cachaça os homens livres, e morreu com um tiro no peito. Alguns negros fizeram até uma pequena festa com dança e bebida africanas. Para ocupar seu lugar foi contratado João Afonso, um açoriano que trabalhava na fazenda vizinha e tinha fama de ser carrasco com os negros. Diziam que lá na outra fazenda morria um escravo por semana no relho. Mas aí o amor, esse mistério que não se desvenda aos olhos humanos, abrandou aquele coração de pedra. Ele se enamorou de Rita, uma negrinha sisuda e de nariz empinado que não ria de graça. Mas o amor é inexplicável. E amar só se aprende amando, mesmo que não o compreendamos. No fundo todos nós nascemos para morrer de amor. Todo o conhecimento humano seria totalmente desnecessário e não teria emergido das profundezas do cérebro da humanidade se não fosse por amor. É bastante que encontremos o objeto de amação para sabermos amar. Hoje eu o compreendo. Assim, João Afonso, ao chegar à fazenda, viu Rita e contraiu o amor. Todos tínhamos medo de sua fama, mas ao amar uma escrava ele compreendeu os sentimentos que vão nas veias sob a pele negra. Não chegou a dar uma chicotada em lombo algum. Quando o patrão lhe reclamava, ele adquiria um ar mais austero do que o normal e dizia não ser necessário, pois “negro nenhum ousa desafiar meu chicote”. Quando Rita ficou grávida, João Afonso entrou em contato com alguns abolicionistas, seus inimigos de fato, mas que, ao reconhecer-lhe as mudanças da alma, lhe revelaram o paradeiro de vários quilombos. Ele nos reuniu e planejou a fuga para aquela manhã.
E assim se dá a empresa. Ao chegarmos a certa altura do caminho rumo ao eito ele pede que outros feitores sob suas ordens voltem para pegar alguns implementos que esquecera na senzala. E empreendemos fuga. Mas fomos traídos, possivelmente por Almerinda, que preferiu continuar cativa a ver o sorriso de felicidade nos olhos de alguém. Logo na saída somos surpreendidos pelos cabras da fazenda, que nos estão esperando. Na frente do grupo, o patrão, sorrindo com desdém. Alguns escravos desesperados pela frustração da fuga correm mato a dentro, mas são alcançados pelas balas dos cabras e caem inertes ali mesmo. Os demais somos conduzidos à fazenda, amarrados ao tronco e chicoteados oitenta vezes cada. O feitor é preso por facilitar a fuga de escravos, crime gravíssimo à época. Os dias que se seguiram são de total angústia. Rita não sobrevive a tremendo castigo e falece. O patrão quer dar terrível castigo a nós para inibir outras tentativas de fuga, para ele o prejuízo financeiro de perder alguns escravos não representa nada se comparado ao prejuízo moral de ver o comentário que de sua fazenda fugiram alguns negros.
Quando eu me recupero dos ferimentos causados pelo couro, meu sofrimento moral se intensifica. Sou levada para uma sala e lá fico presa. À noite sou amarrada a uma trave, banhada com água de cheiro, por uma preta banza que balbucia um canto ininteligível. Em seguida, sou envolvida em uma túnica de algodão cru. Mais tarde ele vem, me fala palavras obscenas, enquanto joga baforadas de fumo no meu rosto até me entorpecer. Desnorteada, sou possuída até sua exaustão. No dia seguinte, sempre na mesma hora, ele vem até mim e pergunta se eu não mudara de idéia, se não quero uma vida de Senhora. Diante da minha recusa, a noite anterior se repete indefinidamente. Quando percebo estar grávida, fico desesperada, preciso fugir dali o mais rápido possível. Mas como? Com ajuda de quem? Uma noite, crio coragem e conto meu estado para a escrava que me prepara. Ela sorri pela primeira vez e me diz que minha criança não pode rebentar ali e que me vai ajudar. Eu sinto grande alívio, no entanto meu temor aumenta quando penso que Almerinda não pode saber, pois, apesar de dividir a cama com o Senhor, ela me odeia por não ser predileta. Havia nas imediações da fazenda uma cabana habitada por um curandeiro. Poucas pessoas sabiam da existência dela e dele. Assim numa madrugada a negra vem e com a ajuda de um moleque me conduz engenho a fora. Mas a coisa não se dá facilmente. Tenho de me esconder durante todo o dia seguinte e creio que só não sou capturada por obra divina. Chove fino e isso dificulta a busca, mas pelo resto daquela existência eu não pude esquecer a voz do capataz entoando uma espécie de canto: “Negra fujona, quando eu te pegar, ah, negra, toda vai-te urinar; meu chicote, negra, é feito de couro cru, ele fere mais que espinho de mandacaru.” Já era noite quando chego a tal cabana, tusso bastante e sinto falta de ar. Sou recebida pelo velho Sabino, negro vindo de Moçambique quando ainda pequeno, fugira cedo de uma fazenda das imediações. Passando a viver às margens da região, construíra uma cabana e lá recebia negros fujões feridos e curava-os para que continuassem a fuga. Nele vi o espírito de Wellington encarnado, com certeza essa não foi a primeira vez que convivi com ele (na verdadeira acepção da palavra). Seus conhecimentos de curandeiro advinham de seus avós ainda em Moçambique. Muitas pessoas criam que ele não passava de uma lenda. Contava-se que certa vez um grupo formado por dezenas de capitães-do-mato varreu toda a região à caça do velho, sem encontrá-lo. Formaram-se então as dissidências entre os que criam na sua existência e os que acreditavam ser apenas uma lenda. Dessa forma posso passar lá todo o período de gestação, incomodada somente pela tosse e pela falta de ar. Velho Sabino sai de manhã cedo e volta trazendo frutas, e carne de alguma presa para me alimentar. Devia ter mais de oitenta anos, mas apesar da idade avançada tinha uma disposição e uma memória invejáveis. Conta-me histórias de seu povo e me faz sorrir e tossir contando piadas de Senhores de engenho. Uma noite acordo com a falta de ar intensificada e uma dor terrível no ventre. Ele vem e me diz:
─ Chegou a hora, minha filha, é nesse momento que se emendam as duas dobras da existência.
Eu não entendo suas palavras, mas o ar cada vez me fica mais escasso enquanto a dor me rasga o ventre. Tento agarrar-me à vida, mas percebo que isso é impossível, devido às lágrimas que escorrem pela face do ancião. A vida me é levada pela vida, é dela que termina aquela minha estada aqui. Ainda tenho forças para erguer os olhos e ver o rosto da criança que acaba de nascer. Num último esforço digo ao velho:
─ Adeus!
E ouço-o dizer:
─ Até breve.
E acordei. Os sonhos são interessantes. Às vezes sonhamos pouco por toda a noite. Noutras, sonhamos muito em pouco tempo. Esse sonho que eu tive não deve ter durado mais que uma hora, entretanto ali se passaram anos na mesma seqüência que lhes narrei, como num filme. Foi uma regressão a uma vida passada. E eu compreendi as palavras do Wellington. Durante o resto da noite tive sonhos normais. Sonhei com Ângela, com meus pais, com a escola, tudo de forma desconexa.
Na manhã seguinte procurei Wellington e soube que morrera durante a madrugada. Fui então até o necrotério e vi algumas pessoas ao lado de seu corpo acertando os últimos detalhes com os funcionários de uma funerária. Morto, ele tinha as feições de vivo, morrera quase sorrindo, não havia sofrimento em seu rosto. Virei-me para essas pessoas, que estavam ao lado da pedra, e perguntei:
─ Vocês são parentes do Wellington?
Uma senhora franzina, usando óculos fundo de garrafa e cujo rosto não demonstrava nenhuma dor, foi quem respondeu:
─ Sim, eu sou a mãe. E você quem é?
─ Desculpe-me – falei meio constrangido – é que eu o conheci ontem e ele me parecia tão disposto. – ao que a senhora respondeu:
─ Ele cumpriu sua missão na terra e teve de desencarnar. Meu filho é um espírito evoluído, nesse momento ele deve estar aí pelos corredores, tentando confortar alguém. Em breve ele se elevará para nascer em um outro momento que precise dele.
Ao ouvir aquelas palavras eu senti algo roçar meus lábios, senti um calafrio e voltei para o quarto, com as últimas palavras que ele me dissera no dia anterior.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

CAPÍTULO IV
“Achei cousa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são redes e laços e cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá dela, mas o pecador virá a ser seu prisioneiro.”
(Eclesiastes: 7; 26)



Tinha dezessete anos e um vício: tabagismo. Tudo começou quando tinha doze anos. Sempre que saíamos da escola um ou outro colega aparecia com um cigarro. À época não conhecia as conseqüências de um hábito como o de fumar ou de qualquer outro vício, pois não havia publicidade contra eles. E para mim, o que interessava era experimentar, saber que gosto tinha aquela brasa que meu tio puxava como se fosse o ato mais prazeroso da existência humana. Quando os colegas começaram a fumar depois da aula, eu fui embalado nessa onda, que além de tudo era proibido pela escola e aumentava a idéia de prazer. O que eu não sabia era que aquele momento de “curtição” iria passar, com o tempo, para os meus colegas, mas para mim não. Tornou-se necessidade a ponto de em pouco tempo eu não conseguir mais esconder de ninguém. Para meus pais foi uma dor de cabeça, mas como sempre acontece, com o tempo, acabaram se acostumando à idéia, mas sempre que podiam listavam-me todos os males causados por esse vício idiota. Eu tentava explicar-lhe que a coisa fugira ao meu controle. Eu já fumava, com quinze anos, trinta a quarenta cigarros diários. Era compulsivo. O vício preenchia todos os eventos diários. Depois do café acendia um cigarro; saía de casa, acendia mais um; se chegava, outro; se ia tomar banho, também, e assim por diante. Tudo era motivo para fumar. O resultado disso foram os dentes amarelados e uma pouca resistência física. Para subir, por exemplo, dois lanços de escada, era-me uma tormenta.
Por isso é que eu digo: tinha dezessete anos e era escravo de um vício. Tentei de diversas formas parar com esse mau hábito, mas todas as tentativas foram inúteis. Tentei uma solução lida em um livro, desses que vendem nas livrarias aos montes. O método consistia em paulatinamente diminuir os cigarros diários, ir cortando-os em determinados horários até que só restasse o último, o da hora de dormir. E assim eu fiz. Cortei primeiro o que eu fumava depois do café da manhã, em seguida um da tarde e assim fui. Até que me restaram cinco cigarros diários e uma angústia terrível. O rendimento escolar caiu. Eu não pensava noutra coisa senão no próximo cigarro. As pernas formigavam e a cabeça não se detinha em nada que queria fazer. Para não ser reprovado, fumei todos os cigarros que os nervos me ordenavam fumar, tirei o atraso. Abandonei de vez o método e voltei a ser “normal”. A partir daí assumi novamente o vício, como se fosse algo que fizesse parte de mim, sem remorso. Pois o cigarro era meu prazer e na minha cabeça começou a se formar a idéia fixa de que quem quisesse me aceitar teria que ser do jeito que eu era. Passei a adotar frases para desarmar os antitabagistas, como “Sei que o cigarro mata devagarinho, mas eu não tenho pressa de morrer”, ou “Desconfia dos que não fumam, eles não têm mundo interior, eles não têm sentimento, pois fumar é uma forma disfarçada de suspirar.”
Foi nesse ínterim que conheci Ângela. Uma colega de 2ª série do Ensino Médio. De repente nos pegamos falando as mesmas coisas, ouvindo as mesmas músicas e fumando os mesmos cigarros. Foi paixão imediata. Era nos nossos beijos que me encontrava e me realizava. Íamos para a Ponte Metálica (Ponte dos Ingleses) e lá ficávamos até o manto noturno desabar completamente sobre a terra, inventávamos versos, cifras. Depois passamos a inventar posições, era o prazer sexual que finalmente me vinha despertar as mais loucas sensações; seus lábios eram doces como favos de mel e as alucinações que me sussurrava azeitavam o meu viver, enquanto sua língua, penetrando meus ouvidos era aguda como espadas. Quando estava só, lembrava-me de Aliel e por onde passava buscava-a. Ela devia ter então onze anos e eu não a encontrava, só em setembro é que ela me abria os braços em desespero, e as lágrimas me vinham pela manhã por não poder salvar a mulher da minha vida.
Passava o dia inteiro fora de casa, trazia sempre às costas a mochila da escola, que continha pouco material escolar e mais revistas de cifras, poemas diversos e livros de filosofia, além é claro de duas ou três carteiras de cigarro. Tinha sempre o cuidado de não deixar faltar meus “inseparáveis companheiros”. Mais da metade do dinheiro que meus pais me davam para o lanche e para o transporte era consumida pelo vício. E eles me davam sempre mais do que o necessário, já prevendo isso. Apesar de estudarmos na mesma sala, Ângela fazia questão de só nos vermos fora da escola. E assim à tarde nos encontrávamos e eu me transmudava para o mundo da paixão.
Um dia, Flávio, um dos poucos amigos que tinha no colégio, chegou e me disse que Ângela fazia jogo duplo. Namorava ao mesmo tempo comigo e com um garoto da 3ª série. O chão abriu-se sob meus pés, fiquei desnorteado e esbofeteei meu amigo para depois desaparecer de sua frente. Não podia ser verdade! Ela me amava! À tarde fui enfático com ela e lhe pedi a verdade. Ela negou tudo, disse que o Flávio queria era fazer intriga, que vivia dando em cima dela, que eu não tinha motivos para desconfiar dos seus sentimentos, por fim chorou. Era só o que eu queria e num abrir e fechar de ouvidos cri na sua versão para os fatos.
Mas o pior veio em seguida quando descobri que era tudo verdade. Ela não fazia jogo duplo, fazia jogo triplo, jogo quádruplo e até com um professor da escola ela transava. Soube depois da existência de um tal clube da Ângela, formado por homens de todas as idades que, entre doses de uísque, revezavam a posse de seu corpo. Diante da queda da máscara da mulher que eu amava como louco, eu me desesperei. Mesmo assim, ela continuava negando e eu esperava essa negação para cair em seus braços novamente. Ela era o meu segundo vício. Meu corpo agora dependia do duplo: dela e do cigarro. Faltava-me o terceiro: o álcool. Para enganar a mim mesmo e imaginar que era amado por Ângela e que ela só pertencia a mim, unicamente, comecei a beber. Quando ela saía de meus braços, eu entrava no primeiro bar que encontrava e tomava algumas cervejas. Com o tempo adotei uma espelunca, próximo a minha casa. Lá, enquanto se jogavam cartas, eu bebericava e conversava com um e outro e só tornava a casa quando estava completamente bêbado. O fim de tudo era o amargo na boca semelhante ao jiló, que me levava ao inferno aqui mesmo na terra.
Mas para minha sorte caí doente, gravemente doente. Uma tosse crônica ocupava meu tempo, aos poucos perdi o apetite e comecei a perder peso. Um dia, sem coragem de me levantar, tive um acesso de tosse seguido de sangue e pus, desmaiei no meio da rua. Acordei num hospital, na manhã seguinte, sem lenço e sem documentos, pois haviam roubado minha inseparável mochila. Quando procurei saber onde me encontrava, fiquei surpreso quando me disseram ser o Hospital São José, lugar onde se curam doenças infecto-contagiosas. Pensei estar com AIDS e agradeci a Deus por não ter documentos, só assim meus pais não me encontrariam. Mais tarde o médico me deu o diagnóstico: “Você contraiu uma moléstia causada pela Mycrobacterium tuberculosis, também conhecida como bacilo de Koch.” Era a tuberculose, o mal do século XIX que vitimou Castro Alves, Álvares de Azevedo e quase toda uma gerações de jovens, que agora vinha me salvar.
Foi lá nesse antro de sofrimento e lamento que comecei a entender e a compreender o meu destino.


sábado, 15 de novembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE RENCONTROS

CAPÍTULO III
“Tudo tem o seu
tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
(Eclesiastes: Tempo para Tudo)


A partir de então o sonho continuou a se repetir setembro após setembro tal qual se revelara da primeira vez quando eu tinha oito anos. Minha vida seguia seu curso natural. No íntimo eu sabia que tudo viria com o tempo. O tempo é meu grande aliado. Nada de bom me veio que não fosse de forma natural, com o tempo. Há quem diga que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Mas eu acredito mais no provérbio que diz que a felicidade é como uma borboleta, se a perseguimos, ela foge de nós; mas se a esperamos, no cumprimento do dever, ela virá pousar em nosso ombro inexoravelmente. Assim não há problema pelo qual eu tenha passado até hoje que o tempo não tenha resolvido. Está claro que não devemos correr atrás de problemas para deixá-los às expensas do tempo. Mas diante de um, por mais grave que pareça, não devemos arrancar os cabelos nem pensar em suicídio. A paciência, a calma e a busca de uma solução adequada é a melhor saída. Lembro-me de que certa vez minha mãe me dera o dinheiro para eu pagar o colégio, e eu o gastei, primeiro um pouquinho, esperando repor essa quantia depois. Mas, com nosso espírito consumista latejando, toquei fogo no restante. Quando me dei conta do ocorrido, fiquei desesperado. “E agora, o que vou fazer?” Perguntava-me atônito, tentando imaginar como agiria minha genitora ao saber que o filho gastara o dinheiro da mensalidade da escola. O que fiz para enganá-la, me envergonha até hoje. Confiando em sua deficiência, destaquei a folha do talão e guardei-a num compartimento escondidinho da minha carteira de cédulas. Ela, que era portadora de miopia, não se esforçaria para ver no canhoto o carimbo da tesouraria da escola. No entanto passei quase todo o dia aperreado para encontrar uma saída. Foi quando de repente me veio a idéia da efemeridade das coisas. Nada dura para sempre, nesta vida tudo é passageiro. O que eu leria posteriormente em filósofos e poetas me era claro como as águas de um rio cristalino. Em Pe. Antônio Vieira, posteriormente eu leria: “O tempo se atreve a colunas de mármore...” Alguém outro também disse: “O futuro será uma eterna tormenta, até que um dia o tempo o torne passado.” E daquele momento em diante, essa idéia passou a me confortar sempre que algum problema tenta me tirar a paz. Até mesmo uma dor de dente, eu a curo com o tempo. Claro está que o problema deverá depois a seu tempo ser eliminado. No caso do dinheiro do pagamento da mensalidade escolar, eu fiz uma caixinha e todos os dias colocava uma ou mais moedas, que pedia a um tio e a meu pai sem dizer para quê. E grande foi minha felicidade, quando no final do ano tinha recuperado quase todo o capital extraviado. E a idéia de que as coisas são fugazes sedimentou-se em mim, pois como disse o profeta: “Passarão céu e terra, só minhas palavras não passarão.”

sábado, 8 de novembro de 2008

CAPÍTULO II

CAPÍTULO II

“Se lembra do jardim, ó maninha,
coberto de flor?
Pois hoje só da erva daninha,
depois que ele chegou.”
(Maninha, Chico Buarque)


Era julho de 1982, portanto quase um ano após a repetição de meu sonho. Nós estávamos de férias na praia de Canoa Quebrada, no Ceará. Nessa época a especulação turística ainda não havia modificado a beleza natural daquele paraíso. Eu jogava futebol com alguns garotos da minha idade, num esforço fenomenal para conter a bola em função da velocidade do vento, esforço esse só justificado pela realização da copa do mundo, evento que transforma um país inteiro em jogadores e técnicos de futebol.
Cansado, esbaforido pelo esforço inútil, sentei-me na areia, à espera de minha mãe, que deveria estar atrás de mim com uma água ou coisa que o valha, quando se aproximou de mim uma garotinha de mais ou menos quatro anos, sentou-se ao meu lado e disse com uma voz de falsete o mais natural possível:
─ Onde você esteve! Eu te procurei por toda parte.
Assustado eu perguntei:
─ Mas quem é você? Eu não conheço você.
─ Conhece sim, eu sou Aliel, sua irmã. Vamos, me leve até nossa mãe, ela deve estar preocupada.
Foi aí que eu percebi a semelhança física da menina com a moça que eu tentara salvar no sonho. Os olhos de um verde fascinante, envoltos por espessa sobrancelha, a boca pequena formando um M e um ar de desamparo que cativava, juntos com uma cabeleira negra contrastando com os olhos, completavam a imagem daquela moça. Como eu me demorei a responder, a menininha começou a choramingar dizendo que eu não queria voltar para casa com ela. Eu percebi então como aquela garotinha precisava de mim, tomei-a então pelo braço e, pela intuição, conduzi-a pela praia. Nesse momento vinha, como louca, correndo, uma mulher que, ao nos ver, abraçou a menina, que era sua filha.
─ Muito obrigada, garoto, por ter encontrado minha filha. – Disse segurando a menininha e fitando meu rosto – ela nunca se afastou da gente, mas hoje sumiu de repente. Ainda bem que apareceu você, meu anjo.
A menina olhou para a mãe e com a mesma naturalidade como se dirigira a mim falou:
─ Mas, Mamãe, eu não lhe disse que ia procurar meu irmão!
─ Desculpe – disse a mãe, voltando-se na minha direção – ela sempre fala nesse irmão que não tem.
Passou a mão no meu rosto, deu-me um beijo e se afastou arrastando com um pouco de violência, pelo braço, a pequena Aliel, que teimosamente andava com a cabeça voltada para mim. Fiquei só, pensando no que havia acontecido. Era realmente tudo muito singular, a familiaridade daquela criança me assustava. Eu tinha apenas dez anos e me deparava com um mistério que me poderia ser revelador ou se tornar por demais doloroso. À minha mente, para me salvar, veio a lembrança de que quando se é filho único, criam-se ilusões de amigos ou irmãos invisíveis. Minha mãe mesma me contara que, quando eu era bem pequeno, passava os dias todos brincando com um amigo, que ninguém via. Contra fatos não há argumentos. E isso me consolou.
Eu ando por uma rua de piçarra e ao longe ouço o marulho, o que me indica estar próximo à praia. Ao contrário das outras vezes, está anoitecendo. Para chegar à praia, é necessário saltar sobre muitas pedras, que formam os diques, vistos nas vezes anteriores. Só que eu não desço. Caminho ao longo do espigão deitado que ladeia toda a praia. Mais à frente sento-me e me ponho a admirar a lua, que surge no além. A praia não existe, a água do mar ocupa toda sua extensão e eu posso tocá-la e brincar com as algas que bóiam. Nesse momento aproxima-se de mim uma mulher, vestida com um roupão marrom e um véu escuro sobre a cabeça. Senta-se à minha frente, retira o véu. É a mesma moça dos outros sonhos. Eu a amo, ela é linda, de uma beleza que não se pode descrever porque ela só é perceptível à luz do coração. Eu miro o seu rosto e no fundo dos seus olhos eu vejo a impossibilidade de ficarmos juntos, algo conspira contra nós, e eu a amo, amo-a tanto que sinto dores, e as lágrimas me correm pelas faces. Ela abraça-me e ficamos assim por um tempo indefinido.
Quando minha mãe me chamou eu já estava acordado e chorava por não ter Aliel ao meu lado. Era ela. A moça do sonho era a mesma garotinha da praia. Eu não sabia explicar o que estava ocorrendo, mas eu sabia que tinha de encontrar aquela menina. A minha existência estava, de uma forma ou de outra, ligada à dela, e isso me parecia inexorável.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CAPÍTULO I

“ Mas onde se achará a sabedoria?
E onde está o lugar do entendimento?
O homem não conhece o valor dela,
Nem se acha ela na terra dos viventes.”
(Jó: 28, 12 e 13)



Não me lembro bem da primeira vez que tive aquele sonho. Mas sei que era muito pequeno. Talvez tivesse menos de oito anos. As marcas que ele me deixou na época, entretanto, me são lembradas até hoje. Até porque ele se repetiu indefinidamente, até que um dia sumiu; suas lembranças, porém, ficaram registradas, e eu, na rua, chegava a identificar pessoas as quais não conhecia, mas que estavam lá, povoando esses momentos oníricos.
Mas o que na verdade é o sonho, que magia é essa que nos acompanha durante nossa existência e para qual não temos explicação, enquanto seres materiais? É realmente uma incógnita esse estado de espírito. Para alguns é a realização de um desejo. Mas como se pode desejar a morte de um ente querido, como um filho ou os pais? Seria então uma projeção do futuro ou uma memória do passado? Ou será tudo isso, dependendo do estágio de nosso pensamento e de nossa alma? Vamos, pois, ao sonho que me impressionou a infância e que me abriria finalmente as portas da compreensão da existência.
Como havia afirmado anteriormente, à primeira vez que tive esse sonho deveria ter por volta dos oito anos. Até então nenhum sonho me havia chegado com tanta clareza, não que eu me lembre. Esse sim. Posso ainda sentir o cheiro da maresia e a cor do céu. Eu estou numa praia nunca vista antes por mim, a cor da terra é escura e há enormes diques de pedras, e há muitas pedras por toda parte, como se estivéssemos sempre esperando uma invasão do mar. Eu caminho pela praia catando conchas as quais deposito numa sacola feita de couro que trazia à tira colo. Próximo e um pouco além muitas pessoas caminham, pescam ou admiram o mar. De repente ouço um barulho semelhante ao rugido de um leão. Ao levantar a cabeça, vejo uma enorme onda, despontando no horizonte, vindo em direção à praia. Apesar do grande susto, olho em volta para ver se posso fazer algo pelas pessoas, e sem pensar corro na direção de umas crianças que brincam inocentemente e procuro afastá-las para o ponto mais alto possível. Com uma mão transporto algumas delas dali, enquanto com a outra escalo as pedras. Ajo rápido porque a onda se aproxima da praia com uma ira destruidora. Desesperado, vejo uma moça com os cabelos cobertos por um véu marrom tentando subir as pedras, entretanto sua roupa longa a impede de fazê-lo. Com pouco esforço, consigo alcançá-la. Mas é tarde! A onda com sua fúria indescritível nos arremessa contra o rochedo.
E eu acordei, mas não apavorado como quem tem um pesadelo, era como se eu apenas recordasse de um acontecimento de um passado remoto. Afinal, aquilo fora um sonho, não um pesadelo.
Durante os dias que se seguiram, eu não conseguia me livrar da imagem daquela moça. Seu rosto moreno e olhos assustados, no momento em que a peguei nos braços, fitaram meu rosto com um ar de gratidão e isso me abalou os nervos. Aquele rosto não me era estranho, por esse motivo eu o busquei em todas as pessoas adultas que cruzavam o meu caminho, até que cansei e voltei a ser criança. Passados alguns meses não me lembrava mais do sonho.
Não posso afirmar com precisão quanto tempo, mas um ano depois, aproximadamente, o sonho se repetiu. Era o mês de setembro. Depois eu me perguntaria se tinha algo a ver com o mês do meu aniversário, outubro. O certo é que nesse ano e nos outros que viriam o sonho me vinha sempre no mês de setembro. Não era o mesmo sonho ipse image, mas era parecido. Às vezes eu penso ser o mesmo sonho apenas com algumas alterações da minha imaginação, como se eu quisesse refazê-lo para adequá-lo a uma situação contemporânea.
Dessa feita eu não estou na praia, e sim no mar, no entanto o ambiente é o mesmo, a cor do céu, a tez escura das rochas e o verde da água. Eu estou insulado numa pedra, pescando. A minha fisionomia é a mesma da vez anterior. Minha pele escura, curtida pelo sol não contrasta com meus cabelos da mesma cor. Da vez anterior eu não lembrava de meus sentimentos, mas agora eu os tenho bem claros, meus sentidos estão alerta como se meu espírito captasse algo de anormal por acontecer, ou se estivesse ansioso por algo prestes a se realizar. Assim eu ouço o rugido do leão enfurecido, é a onda gigante que desponta no horizonte. Como da outra, vez viro-me para a praia e vejo pessoas correndo, dirijo-me com fortes braçadas até a areia e lá consigo salvar as três crianças, mas meu pensamento está na mulher que eu pretendo desesperadamente tirar do perigo. Desta vez salto para a praia numa busca quase insana daquela minha protegida, vejo-a correndo para mim de braços abertos, mas antes que a abrace a onda nos atinge novamente, sinto, então, uma dor profunda no peito, mas não sei se é dor física ou se é meu coração que dói por falhar novamente na minha missão.
E mais uma vez, como uma imagem de tevê é cortada quando há falta de energia, o sonho se apagou. Eu acordei.
Novamente minha curta existência se transformou numa busca daquele rosto, até que a infância e tudo que a compõem me chamaram novamente à vadiagem, as imagens daquele sonho tornaram-se latentes.






segunda-feira, 27 de outubro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE RENCONTROS

A partir dessa semana, será publicado um romance de nossa autoria. Toda segunda, será úblicado um capítulo desse romance, cujo título provisório é DE SONHOS, DE VIDAS, DE REENCONTROS. Abaixo segue a primeira postagem que é a introdução capítulo.


INTRODUÇÃO

“Beija-me com os beijos de tua boca;
porque melhor é o teu amor do que o vinho.
Suave é o aroma dos teus ungüentos;
como ungüento derramado
é o teu nome.”
(Cânticos: 1 – 2;3)

Como é Veneza? Em uma única palavra: apaixonante. Não existe outra cidade como ela. Não há melhor lugar para se passar uma lua-de-mel. E assim, eu casado com a solidão, de quem há muito havia me separado, resolvi ir até lá. É realmente embriagante andar pelas vielas de Veneza, sente-se o cheiro da Idade Média, pisando-se nas ruas de pedra. Mas a maior atração, com certeza, são os canais. Para minha sorte, cheguei a essa magnífica cidade no primeiro sábado de setembro, e no domingo, debruçado numa das cem janelas do Hotel Carlton e Grand Canal, que estão de frente para o Grande Canal, conforme o nome já sugere, já assisti à Regata Storica. Trata-se de uma competição de gôndolas de diferentes categorias. Nos dias que se seguiram fiz o que todo turista faz, ao lado de sua esposa: fui à praça San Marcos; visitei a Igreja de mesmo nome, depois de encarar uma fila quilométrica; passeei numa gôndola com almofadas em formato de coração, e... cansei. Era mais ou menos o décimo quinto dia em Veneza e minha esposa já me aborrecera. Uma impaciência me percorria as costas e me formigava o cérebro. Precisava urgentemente encontrar alguém para conversar ou pelo menos para observar.
Era uma tarde de sexta-feira quando um casal me chamou a atenção. Eu havia acabado de chegar de uma caminhada pelas verdadeiras ruas de Veneza, que são aquelas onde moram seus habitantes, dir-se-iam ruelas que deixam-nos ver um monte de pontezinhas sobre os inúmeros canais. Estava debruçado na janela do quarto admirando a beleza do Grande Canal, tentando descobrir os mistérios medievais submersos naquelas águas, quando esse casal passou numa gôndola. Era um casal como outro qualquer, entretanto algo, que não sei o quê, chamou-me a atenção, com certeza não foi o fato de ambos serem brasileiros, pois não dava para fazer essa identificação da distância que eu me encontrava deles.
À noite, estava em um restaurante observando as luzes da cidade refletida nas águas, quando os vi novamente. Ele deveria ter uns cinqüenta anos, enquanto ela era um pouco mais jovem. Os dois conversavam, enquanto a mulher com um brilho sapeca no olhar fazia trejeitos para diverti-lo, oferecendo-lhe os lábios umedecidos de vinho. Ele ria e beijava-lhe os lábios, beijava-os não, acarinhava-os com os seus. É esse o verbo que melhor define aquela atitude. Ela, então, molhava novamente os lábios no vinho e ofertava-os a ele, que sorvia o líquido e permanecia alguns segundos, embriagado na beleza do rosto da companheira. De súbito me veio uma idéia: aproximar-me deles e conhecer a magia daquele amor, afinal não é todo dia que vemos um casal com tamanha demonstração de carinho. “Devem ser recém-casados” – pensei. Por outro lado, indagava-me se tinha o direito de interrompê-los, pois se eles estavam ali, tão longe de casa, sozinhos, é porque não queriam companhia. Entretanto, para minha surpresa, foi ele que se aproximou de mim. Enquanto ela saiu, para ir ao toalete, ele levantou e veio até mim:
─ Boa noite! Você é brasileiro, não é? – perguntou-me, passando a mão pelos cabelos grisalhos que também brilhavam sob o reflexo das luzes.
─ Sim – respondi apertando-lhe a mão.
─ Aqui é tão difícil encontrar alguém de casa que, quando o vi, não pude controlar a vontade de falar português, com alguém que não seja lusitano. – justificou-se quase impaciente por eu não convidá-lo a sentar-se. Quando percebi essa minha gafe, prontifiquei-me a fazê-lo.
Logo estávamos familiarizados. Quando sua bela esposa chegou, ele ma apresentou e os três ficamos conversando sobre o Brasil e sobre Fortaleza. Coincidentemente eles também eram da capital alencarina. Por mais que eu me esforçasse, entretanto, não conseguia tirar os olhos de sua adorável senhora. Se os amigos leitores a vissem, com certeza saberiam o motivo. Quando voltei para o hotel levei deles a promessa de no dia seguinte almoçarmos juntos.
No dia seguinte, tínhamos acabado de almoçar, quando Daniel, era esse o nome do homem, virou-se para mim e disse:
─ Senhor Rodrigo, pode ser que o senhor não acredite em reencarnação, mas eu lembro do senhor de alguma vida anterior.
Eu estava estupefato. Afinal não é todo dia que alguém lembra de você de uma outra vida. O mais comum é alguém lembrar de você de algum lugar. Ele então repetiu a afirmação e virando-se para sua bela esposa, como quem casara há poucos dias, disse que a primeira vez que os dois se viram foi numa outra encarnação, há centenas de anos. Diante da minha surpresa ele contou rapidamente sobre seu dom de reconhecer as pessoas com quem vivera ou com quem apenas cruzara em outras vidas. Em seguida com poucas palavras me contou sua história. Eu estava entre surpreendido e impressionado. Aquela era, se não a mais bela, a mais surpreendente história de amor que alguém pode ter vivido. E ela estava ali ao alcance de meus ouvidos. No dia seguinte devolvi o favor. Fui almoçar com meus novos amigos. Levei comigo meu editor de texto portátil e o gravador. Pedi então para que Daniel me contasse sua história de sonhos e encontros. Ele assentiu, mas com uma condição: que, ao escrevê-la, eu o fizesse em primeira pessoa, pois queria que os leitores ouvissem sua voz e os ecos do passado recente e do passado remoto. É claro que eu aceitei essa condição, e, durante uma semana, em pontos diferentes de Veneza, ele me contou a história que vocês lerão a seguir.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

NÃO COMETA ESSE ERRO


A SINA DO ESCARAVELHO

Assim, como humanos seres há,
Que grande poder a si se arrosta,
Existe inseto que também se dá,
Falo do nojento rola-bosta.

Rola-bosta é apenas apelido,
Seu nome verdadeiro é escaravelho,
Como Narciso, o inútil é atrevido,
Coa caca, só descansa ante um espelho.

Vi-o enquanto olhava meu jardim,
Fiquei incrivificado com a criatura
Que desfilava bem perto de mim,
Cara fechada, preso em sua feiúra.

Ostentava tanta empáfia o infeliz,
Que chamou deveras minha atenção,
Resolvi logo ser dele aprendiz,
Para não repetir sua lição.

Duma lorica pesada era preso,
Erguia sua tromba como um falo,
Olhava os colegas com desprezo,
Como em sua cabeça houvesse um halo.

Os insetos menores tinham medo,
Pois não sabiam que, apesar de tudo,
Ele guardava um enorme segredo
Debaixo de seu focinho trombudo.

Por muitos dias perscrutei atento,
Aquele pesado fardo levar,
Aquele ser de penúria e lamento,
De viés aos outros seres olhar.

Eu juro que fiquei com muito dó,
Dele, vestido como um cavaleiro,
Porém levando a vida muito só,
Sem nunca ter momento alvissareiro.

Em surdina, dos insetos ouvi
Que ele tinha sido mais coitado,
Entanto era mais humilde ali,
E a ninguém ele tinha humilhado.

Um dia, deram para ele cuidar,
Porém, uma bosta bem grande e suja,
Que carrega então de lá para cá,
Vigiando como mamãe coruja.

Adora aos pequeninos indagar:
Sabem para que seve esta caca?
Respondem ingênuos: para brincar!
Dando um sorriso frio o babaca,

Mas não sabendo também responder
O que acabara de perguntar,
Sai trombudo a cumprir seu dever,
Sua grande bosta vai empurrar.

Entanto todo mundo tem alguém
Para consigo se preocupar.
Com ele aconteceu também,
Uma amiga havia pra consolar.

Disse-lhe ela: não seja tão sisudo,
Procure uma parceira para o ajudar,
Não seja assim, colega, tão cascudo
Há uma companheira para te amar.

Diante de grande demonstração,
O pobre resolveu pra ela se abrir
Não posso, amiga, dar meu coração,
Às fêmeas de lá tampouco daqui.

Só a você vou dizer a verdade,
Vou segredar o que sempre serei,
Que não se sabe na comunidade,
A verdade, colega, é que sou gay.

Estupefato ao ouvir-lo fiquei,
Diante de tamanha confissão,
Não sabia de nenhum inseto gay,
Sabia até de veado leão.

Mas sua amiga, do rola-bostas,
Era dessas amigas de verdade,
Disse-lhe passando a mão nas costas:
Todos precisam da felicidade.

Para tudo nesta vida tem jeito,
Não se importe meu amigo querido,
Ser boiola não é nenhum defeito,
Por que não arranja você um marido?

Arranje, amigo, um companheiro, então,
Que o ame de fato e ame-o também,
Formando de dois um só coração,
E que os anjos enfim digam amém.

Ele então seguindo esse conselho,
Logo passou com outro a desfilar,
Quando o via ficava vermelho,
E saíam os dois a namorar.

Mas não mudou nada o pobre coitado,
O motivo disso logo direi:
Não se pode amar inseto veado
Por um inseto que também é gay.

Juro sobre a bíblia e ante Deus,
Isso tudo aconteceu no meu jardim,
Passou-se assim perante os olhos meus
Descortinou-se bem perto de mim.
(Professor Alves, 03/08)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

DÊ UMA CHANCE A PAZ


IMPOSSÍVEL SONHAR
Professor Alves

“Minha mão não tem mais palma!
Dói em reverência! Violência calma!”

Hoje queria escrever um texto no qual fizesse transbordar minha admiração infinda pela humanidade, que levasse aos olhos do leitor lágrimas de felicidade e lhe desse uma vontade enorme de sair às ruas e cumprimentar seus semelhantes. Queria contar uma história, pequena que fosse, mas que narrasse uma atitude digna de uma espécie a qual se orgulha de ser racional, e que servisse de exemplo para toda humanidade, principalmente à que se diz cristã.

Não, hoje eu não queria falar em políticos e seu cinismo indecente, diante da população rota, transida pela falta de tudo que lhes dê uma condição minimamente humana. Hoje eu queria dormir tranqüilo, ter sonhos bons que elevassem meu astral para o dia seguinte.

Queria falar sobre o sorriso das crianças; do amor, verdadeiro, dos anciãos; da ingenuidade dos namorados; da puerícia das cartas de amor; do infinito mistério do beija-flor e da impossibilidade do besouro.

Mas não é possível, depois do que eu presenciei. Uma cena indigna da inteligência humana. Foi um sonho dantesco, porém indigno da Divina Comédia Humana. Numa avenida, há tão pouco tempo calma, porém, já hoje, tumultuada pelo ir e vir dos carros, ironicamente, próximo a uma escola. Após uma pequena colisão, dessas que se vêem a todo instante numa cidade que cresce, sem nenhuma estrutura para dar alicerce a esse crescimento. O proprietário do veículo colidido, de arma em punho humilhava o outro, o vilão daquele sinistro. Enquanto vociferava, ordenando que o outro entrasse no seu veículo e fosse embora, mudava o revólver de mão. Naquele momento, como os cabelos de Sansão, a arma empunhada lhe dava poder, e ele crescia perante o outro, que, humilhado, constrangido, diminuía, apequenava-se diante da superioridade da arma. Não sei quem era maior, se o revólver ou o homem que se escondia por trás dela. Não sei quem era menor, se o homem humilhado ou a sua dignidade. Súbito percebi que a humilhação não era privilégio dele, ela era coletiva Todos que por ali passavam, fechados nos seus escudos de aço, sentiam-se abatidos por aquele homem poderoso e sua arma. Em câmara lenta, (Essa era a velocidade do momento, uma vez que a cena tornava-se infinita como num filme de John Woo), o homem com a moral destroçada entrava em seu carro.

Não vi o desfecho da cena. Não precisava. O desfecho foi a morte do homem, suposto responsável pela colisão. Impossível alguém sair vivo, pelo menos moralmente, depois de passar por aquilo. Infelizmente hoje à noite terei pesadelos.

(Fortaleza, 29/04/08)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O SAL DA TERRA


O SAL DA TERRA

“Vós sois o sal da terra. E se o sal é insípido, com que se há de salgar? Servirá apenas para ser jogado fora e ser pisado pelos homens.”

Voltando para casa, sete e meia da noite, mais ou menos, vejo um furdunço urbano. Uma turba jazia ante um cadáver, sobre o qual profissionalmente já se debruçava o fotógrafo da “perícia”. Ladeando a cena, dois carros do já famigerado “Ronda do quarteirão”. Passando lentamente, mais por curiosidade que por impedimento, pude vislumbrar o pé do ex-vivente. Era um pé pequeno, desses que ainda não trilharam muitos caminhos nem o farão por já não terem futuro. Era uma criança. Quantos anos? Não importa. Era uma criança. Causa mortis? Bala. Motivo: tentativa de assalto. Não, ele não foi assaltado. Tentou fazê-lo e o resultado foi esse.

Infelizmente, não se trata de um fato isolado. Acontecimentos como esse ocorrem todos os dias numa cidade como Fortaleza. O que me leva a narrá-lo aqui, a dedos frios e coração palpitante foi o fato de me virem à mente naquele momento as palavras do mestre: “Vós sois o sal da terra...” E se o sal não tem sabor? Na verdade, quando Jesus disse isso não estava pensando em salvar almas, mas estava dizendo para todos os jovens, que são o sal da terra, a luz da vida. Mas infelizmente cada vez mais o sal está perdendo o sabor, e a luz, o brilho. Sem educação, sem orientação, o sal já não serve para dar sabor à vida, somente para ser pisado, humilhado, manipulado pelos outros.

Minha ignorância diante de algumas coisas me constrange às vezes. Uma vez, ante uma prateleira de supermercado, ainda lembrando as palavras do sábio filho de José, fiquei impressionado com a variação de preço do sal. Ao que um senhor me acorreu explicando que o valor do sal oscilava de acordo com o grau de pureza, ou com a procedência. Quanto mais refinado, mais caro se torna. Pensei assim que mesmo aqueles jovens que ainda têm algum sabor precisam ser refinados, pois mesmo que não sejam jogados fora, serão mal aproveitados, serão discriminados na prateleira do mercado de trabalho. Não sei como um país quer alcançar o topo onde se encontram os países de primeiro mundo sem refinar seu sal, sem lhe tirar as impurezas, sem lhe acrescentar a quantidade de iodo necessária!

Infelizmente, enquanto não houver vergonha na cara das autoridades, nossa juventude será sal grosseiro, daquele manipulado por mãos rudes, molhado no sal das lágrimas e suor. A falta de iodo no refino levará ao bócio social. Um grande número, crescente a cada dia, sem gosto, será jogado fora, pisado pelos homens; alguns servirão para enrijecer a argamassa que se multiplicará em prédios país a fora; e só alguns poucos servirão para a mesa do “chef” francês.

(Professor Alves)

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A FLOR E A DOR




A FLOR E A DOR
OU A ETERNA LUTA DO BEM CONTRA O MAL
(para Dra. Karol, uma flor vestida de anjo)

A dor surgiu sub-repticiamente,
De leve, cansada, espaçosa,
Logo foi tomando espaço na mente,
Em breve, era toda vitoriosa,
Impedindo os atos comumente.

Até que de triunfo deu seu grito,
Quedou-me com violência no chão.
O doutor mandou-me seguir o rito,
Ressonância era o exame padrão.
Saiu então o diagnóstico maldito.

“Exuberante protrusão discal
Póstero-mediana” – disse o médico
Descrevendo qual era o meu mal –
“Contraindo” – continuou sádico –
“A margem ventral do saco dural”.

Sentia-me como se fosse fuzilado,
Estava perplexo diante daquilo,
Ele ria por ter-me humilhado,
Recompus-me e perguntei tranqüilo:
– Há vida pra mim depois desse laudo?

Não é nada para desesperar,
Vamos fazer forte medicação,
Fisioterapia muita se fará,
Após dez meses de dedicação,
Bom de novo você estará.

Triste, macambúzio e desolado,
Voltei então dessa forma para casa,
Sem contar com a dor física do lado.
No tratamento, logo mandei brasa,
Pior, juro, nunca havia estado.

Em poucos dias estava arrasado.
Os comprimidos e as injeções
Deixaram-me o corpo debilitado,
Fui afastado, pois, das diversões
E do trabalho fui logo sacado.

A angústia e a má solidão
Tornaram-se assim minhas companheiras,
Fui presa fácil da televisão,
Nem em sonhos ia a brincadeiras,
Mas pensava: “dias melhores virão”.

Meu consolo era o computador,
Do orkut, os amigos e amigas,
Xadrez, música, e, como leitor,
Jornais e até revistas antigas,
Eram os lenitivos para a dor.

Bons dias vieram antes que eu pensava!
“Há malas as quais vem para o trem”
Há pouco um amigo, brincando, falava,
– Há males os quais vêm para o bem –
Esse provérbio ele parodiava.

E foi no momento em que adentrei
A sala de fisioterapia:
Um ente celeste encarnado encontrei!
A tal dor de repente não sentia,
De pronto, logo, logo melhorei.

Era um anjo meigo e lindo, Meu Deus!
Desses os quais pouco vêm à terra –
Que encanto para os olhos meus –
Quando vêm, numa redoma se encerram.
Inacessível a um coração ateu!

Era um ser feito de luz e harmonia,
Era um manto de pura perfeição,
O jaleco branco e o que dele fluía!
Tomou a minha dor em sua mão,
Senti-me conduzido à sacristia.

Mas passado o primeiro momento,
A dor voltou, plena, aguda, fria.
Era para mim deveras tormento
Quando vinha então a analgesia,
Só seus olhos me traziam lenimento.

Ela era assim como uma flor,
Cujos espinhos do conhecimento
Combatiam naquele vale de dor,
Impondo-nos severo tratamento,
Severamente, entanto com amor.

Era bastante um discreto sorriso,
Mostrando duas ebúrneas fileiras,
Para o mal se abater ante esse viso,
Pois sabia que não era brincadeira,
Recuava, mostrando ter bom siso.


Era a luta dos seres antitéticos:
Quando a dor sorria cinicamente,
Utilizando seus meios ecléticos;
A flor agia pacientemente,
Utilizando expedientes éticos!

Até que do bem começou a vitória.
A dor tentou, ainda em desespero,
Ostentar uma enganosa glória,
Mas a bela flor tinha o dom do esmero
E mudou por completo a história.

As noites, torturadas pela dor,
Ganharam agora uma nova feição,
São embaladas pela voz da flor,
Que, palpitante tal qual coração,
Abre os lábios, pétalas de olor.

O mal, vendo-se por fim derrotado,
Saiu deixando o campo da batalha.
Era o disco, que antes protrusado,
Pedia desculpas por sua falha;
Vitória do bem, em anjo encarnado.

Quando voltei então ao ortopedista,
Ele ficou assim sobressaltado,
Vendo-me andar como um nacionalista,
Senti-o um pouco decepcionado,
Pois, passou de leve a mão na vista.

O que vejo, amigo, um sério colosso!
Que fizeste, pois o que miro é raro,
Andas forte como se fosse um moço,
Encontraste algum santo, meu caro!?
Respondi-lhe – Uma, de carne e osso”

(Porofessor Alves)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O CIRCO DA MINHA INFÂNCIA


Muitas coisas da nossa infância nos assaltam de vez em quando. O interessante é que existem modelos, criam-se em nossas mentes paradigmas para o que acontece mais de uma vez. Os circos da minha infância foram inúmeros, de diversas cores e nomes, com artistas dos mais diferentes matizes. Entretanto aquele que meu inconsciente elegeu para repetir através das gerações foi um só.


      Em épocas determinadas do ano aparecia o circo. Estava brincando no quintal quando ouvia a algazarra, gritos da molecada a que eu deveria me juntar, se mamãe deixasse, é claro. Do quintal ainda ouvia os primeiros gritos: “Hoje tem espetáculo, tem sim, senhor... O palhaço o que é? É ladrão de mulher...” Corria para a calçada a fim de ver passar o cortejo liderado pelo palhaço da perna de pau, e sorriso largo, e roupa colorida. Depois de passada a parada, restava-nos saber onde estava sendo armada a enorme tenda. Que alegria! Desta feita era lá no campo, bem próximo à nossa casa.



       À tarde, depois de voltar da escola, fomos para lá, ver a armação do circo. E lá estavam todos os artistas uniformizados de operários. A gente os reconhecia porque eram diferentes de pele e cabelo. As moças eram todas loiras e brancas, os homens delgados ou fortes ao extremo. O mastro central subia e com ele o pano que obstruiria de nossas famintas mentes o mistério do circo, apesar da infinidade de buracos.

        No dia, seguinte já armado, o circo se preparava para a estréia. Minha cabeça era repleta daquele mistério. Ai que vontade de ser invisível para ir lá, saber o que estava se passando, sobre o que conversavam. O pior é que logo vinham as histórias, criadas pelas mentes ou vistas de fato, pelas frestas impenetráveis da estrutura circense: “Quem tiver gato que esconda porque o domador está comprando gato para dar de comer aos leões.” “Dizem que o filho de dona sicrana sumiu, que foi pisoteado pelo elefante e enterrado numa das barracas”...

      À noite estávamos lá, ávidos pela magia do circo, sentados nas arquibancadas de madeira, que tremiam e beliscavam nossas bundas, mas nem sentíamos. Sob a má iluminação, vinha o equilibrista, andando no arame, de vez em quando desequilibrava, tirando um “UUU” da garganta da plateia, cujos olhos não desgrudavam um décimo da cena. Em seguida era a vez do atirador de facas, que maestria, que segurança; a moça, pregada na tábua, ria desafiando as pontiagudas lâminas que cortavam o ar e se colavam a milímetros do seu corpo! Diante de uma salva de palmas, entrava o homem mais forte do mundo, que antes se apresentara como equilibrista e atirador de faca. Como era forte, segurava dois carros de motor ligado e acelerador pisado! O mágico e o palhaço encerravam a noite. E íamos dormir com as mentes repletas de sonhos. Embalado por Morfeu, ainda tinha tempo de sonhar com a bela loira das facas, que era também ajudante de mágico e a trapezista.

     Quando começava a perder a graça, quando os truques do mágico já eram abertamente desvendados nos balcões dos bares, quando já se punha em xeque a força do homem mais forte do mundo, o circo levantava pano, ia embora para bem longe. Ia despertar a imaginação, alimentar os sonhos de outras crianças. Apenas uma história era verdade: Depois da partida, uma mãe aparecia chorando, sua filha fora roubada pelo desalmado do palhaço. E a velha chorava até que alguns meses depois a filha pródiga voltava à casa materna, e trazia consigo uma criança, Talvez fosse o pagamento do palhaço à mãe entristecida.

(Professor Alves)

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

EM BUSCA DA FELICIDADE


A BUSCA DA FELICIDADE

Quando era criança, não entendia direito por que as pessoas eram tão infelizes. Por que passavam mais tempo sisudas do que sorrindo. Depois compreendi que elas sorriam quando eram felizes, mas, como passavam a maior parte do tempo infelizes, passavam mais tempo casmurras. Só os loucos eram sempre felizes ou sempre resmungões.
Eu próprio me testava, e quando estava triste me perguntava por quê, na medida em que não havia acontecido nada de entristecedor. Quando era feliz sabia exatamente o motivo. Algo de bom havia ocorrido. Depois compreendi que não precisa haver motivos para a infelicidade, só o fato de não acontecer nada de novo e de bom já é motivo para sermos infelizes.
Depois li a célebre frase de Freud: “A felicidade é como uma borboleta. Se a perseguimos desenfreadamente, ela foge de nós, mas se a esperamos no cumprimento do dever, logo ela vem pousar em nosso ombro.” Mas compreendia também que borboletas voam, mudam de pouso a todo instante. Talvez por isso a felicidade é tão efêmera.
Mas foi depois de assistir ao filme À procura da Felicidade que compreendi mais ainda a estranha mania das pessoas de estarem ao lado da infelicidade. Nele a personagem Cris vive um casamento infeliz devido à falta de dinheiro. Logo a felicidade, isso ele compreende sempre, está onde se encontra a estabilidade financeira. Até que, passando em frente a uma corretora de seguros, ele vê que as pessoas saem de lá sorrindo. Ele descobre que lá reside a felicidade. E resolve trabalhar lá para também ser feliz. É de seu conhecimento também, devido ao conhecimento da Carta da Independência dos Estados Unidos, escrita por Tomas Jéferson, que a felicidade é efêmera. Jéferson diz na referida carta que, entre os direitos dos americanos, há o direito à busca da felicidade. Não o direito à Felicidade, mas à prerrogativa de procurá-la. Quando finalmente consegue entrar para o quadro efetivo da seguradora, Cris diz “essa parte da minha vida chama-se felicidade”. Ele sabia que não seria eternamente feliz a partir daquele momento. Estava feliz e isso é diferente.
O que quero dizer é que a nossa missão aqui na terra é buscar a felicidade e sabermos aproveitá-la sempre que ela surgir. Por isso é preciso entender que logo após o primeiro momento, o da euforia que se segue a uma conquista, precisamos ir em busca de novas realizações. Precisamos compreender que não podemos passar a vida toda “curtindo” um momento, pois logo o sabor irá saturar, e o gosto que nos ficará será um leve amargo. A angústia logo será nossa vizinha. É preciso comemorar sorrir, mas logo levantarmos a cabeça e seguirmos nossa eterna busca da FELICIDADE.
(Professor Alves)

terça-feira, 29 de julho de 2008

NÃO PRECISAMOS VOTAR




O VERDADEIRO ANALFABETO POLÍTICO

O verdadeiro analfabeto político
É entendido, segue os ditames de Bretch,
Abre o peito para dizer:
─ Eu voto, o voto é minha arma,
Sem ele as prostitutas se multiplicam,
A Saúde está morta,
A Educação não existe,
Meu povo não tem redenção.
Ou é ignaro para balbuciar:
─ Voto no candidato da mãe que vai me dar uma dentadura,
Um copo de cerveja e um prato de feijoada.

Desconhecem eles, míseros eleitores,
Que o verdadeiro analfabeto é o que vota,
É o que coloca a raposa no galinheiro.

A política é a resina que molda a volúpia por poder.
A política, unifica todo ser, mais que a morte.
Torna a todos escravos da ganância,
E lhes instala no peito o vírus da corrupção,
Que embota as mentes, antes honestas(?)
Individualiza interesses coletivos,
E como uma pandemia se espalha
Escolas, fábricas, sindicatos, bairros, cidades, países, galáxias.
Não há política nem politicalha, como queria Rui.
O que há é a ciência do descaso, da mentira, da usura.

E o povo?
Torna-se vítima desses interesses.
E aí sim surgem mais miseráveis
Que se multiplicam feito tapurus na carne podre,
Prostitutas desfilam suas almas enviesadas nas vielas da solidão,
Professores mal pagos destroem horizontes infantis,
Morre-se, é irônico, nas filas dos hospitais.
E quando vem a chuva arrasta consigo destinos
E se é tempo de seca, sinas são tragadas pela terra.

E os petistas, tucanos, pefelistas, bispos, verdes, comunistas
Estalam o açoite nos palacetes da devassidão
Entre risos, lagostas e uísques.
Enquanto a turba pede esmolas, educação, saúde.
A quem de seus votos se fartara,
Tudo graças ao verdadeiro analfabeto, político.
(Professor Alves)

PARA AUGUSTO CÉSAR




PARA AUGUSTO CÉSAR, COM UM POUCO DE ATRASO
(sacratíssimo imperador, filho do amigo Erasmo Belarmino)

           "Filhos! melhor não tê-los
                    Mas se não os temos
                    Como sabê-los!?"  (Vinícius)
Amigo Erasmo, há algum tempo ponho as roldanas da minha cabeça para funcionar com o objetivo de homenagear seu sacratíssimo filho com um texto. Desisti de buscar metáforas que não sejam clichês, antíteses e sinédoques. Não tendo talento para fazer um texto à altura do seu rebento, resolvi fazer apenas a homenagem. Afinal quem chega precisa de receber um bom-dia, um boa-tarde, ou um boa-noite. É falta de educação da parte de quem já está aqui não fazê-lo. Desenvolvi então as idéias que seguem, perdão se é apenas um texto medíocre.

Filhos são interessantes! Chegam e nem sequer nos cumprimentam. Pelo contrário, nos olham como se não nos estivessem vendo e nos olham com cara de “o que foi”. E a gente se derrama todo, fica feliz, ri à toa, bate foto e chama os vizinhos: “Não é a cara do pai?” Não. Filhos não se parecem com ninguém. Bebês então é que não se parecem mesmo. Parecem-se só uns com os outros, como se fossem todos gêmeos. E são todos lindos. Até os bebês dinossauros são belos como os nossos. Especialistas dizem que são artimanhas para se protegerem de nós. É, mas infelizmente alguns não conseguem.
Filhos são interessantes! E crescem sempre. Um dia você chega do trabalho, pensando em encontrar um bebezinho no berço, e toma um susto. Tem um menino, olhando para você com cara de “o que foi”? Do dia para a noite estão andando dentro de casa, ditando modas e modos. A casa passa a estar como eles querem, ou seja, desarrumada, brinquedo pra tudo quanto é lado, sofá rasgado, parede riscada. Para nós nos restam as saudades da arrumação.
Filhos são interessantes! De repente perdemos nossa identidade, e a casa! Passamos a ser apenas o pai e a mãe de fulano. Nossa casa, antes tão nossa, agora é a casa de fulano, nossos pertences agora não nos pertencem, para usar o computador, por exemplo, temos que pedir emprestado. E nossas férias já não são nossas. São eles que decidem o que vamos fazer. E haja escultura na beira da praia, correr atrás da bola que o vento teima em jogar para frente, enquanto a cerveja esquenta na mesa. E sentimos saudades do tempo em que aproveitávamos as férias para curtir uma gelada, enquanto mirávamos pernas com o canto do olhos! Lembra? São só lembranças.
Mas filhos são realmente interessantes! Principalmente quando começam a estudar. Perdemos a hora do almoço só para esperá-los na porta da escola todos os dias. E quando vêm (todo breado, a farda mais parece pano de chão) lembramos de nós, do futuro. Se somos professores, então, resolvemos que não vamos incorrer no mesmo erro. Ele vai ser astronauta, arqueólogo, no mínimo médico.
É, filhos são realmente interessantes! Além de nos deixar órfão de esposa, de pais (nossos pais agora são avós dele, esqueceram!) e objetos, tão pessoais, nós o amamos e damos a vida por eles. A vida não, todas ! Um amigo, quando o filho pegou uma pneumonia, fez uma promessa de que se ele ficasse bom, ele (o pai) não precisaria mais nascer. Sério. Pois é, amamos a ponto de fazermos coisas antes inimagináveis. E tudo para sermos pais, e em agosto comemorarmos o dia dos pais, e recebermos presentes, que nós mesmos pagamos.
Filhos são realmente muito interessantes.
(julho de 2008)

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Amigo não é jogo de azar


AMIGO


“Como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos.”
(Exupéry)

Amigos são assim! Não é prêmio de jogo de azar, mas também não são escolhidos. Vêm-nos como que atraídos por nós, por nossa esfera astral, ou pela química resultante do acúmulo de ansiedades, valores e realizações de cada um. Quando se vão, ou quando se-nos esquecem deixam um vazio que, para citar Djavan, nem que bebêssemos o mar encheria o temos de fundo.

E por que os amigos se vão ou nos viram as costas? Os motivos não sabemos, podem ser vários. Uma palavra mal dita, um gesto desavisado, um pedido, uma deprecação. Depois é que nos vem a lembrança de que amigos não gostam de exigências, de solicitações, apesar das palavras de Exupéry (“És eternamente responsável por aquilo que cativas.”).

Só nos resta então sofrer o abandono e buscar a razão da ausência, inimiga. E quanto mais buscamos o motivo, mais esquecemos os verdadeiros porquês. E o vazio continua aumentando a cada momento. Quem já teve um amigo para depois vê-lo apenas na distância da memória sabe do que estou falando.

Não importa quão cheia a nossa casa esteja. Ela está sempre carente da presença do amigo fujão, e quando todos se vão ou espontaneamente ou cortesmente convidados, o que nos fica rememorando não são os diálogos interessantes nem as gafes inexoráveis, são as lembranças do amigo “pródigo” que não estava presente.

Hoje senti saudades de você. Minha casa está cheia, porém falta você, falta sua palavra comum, porém imprescindível, seu sorriso meigo, seus olhos viajantes, sua voz silenciosa.
(Professor Alves, 04/07/2008)

domingo, 13 de julho de 2008

A AGONIA DO FUMANTE


A AGONIA DO FUMANTE - Prof. Alves 12/05/2007
Nada mais angustiante que a agonia do fumante quando quer se livrar do vício.
Entretanto essa agonia começa junto com o vício, quando os pais dizem “não, não pode ser”.
E o indivíduo os desafia achando que está fazendo a coisa mais certa, que enfim está se libertando. Sem saber de quê!
Não sabe o ainda projeto de imbecil que está armando os grilhões de que será eterno escravo.
Com a evolução do mal hábito, vêm os constrangimentos a que se exporá o adolescente, como não ter dinheiro para alimentar o “luxo”, pequenos furtos ao bolso do pai, as descobertas desse ato, tudo isso aliado à debilitação física da idade adulta iminente.
Aí vem o pior: a vontade de se livrar do cigarro.
O que fazer?
A resolução é peremptória: não quero mais, pronto!
Acompanhada dessa decisão vem a empolgação, a euforia, a satisfação, a alegria de encontrar a porta de saída da prisão.
propaga-se a decisão então aos quatro ventos e partilha-se essa vontade com os entes mais próximos.
Mas o tinhoso é capcioso, astuto e espera o momento certo para reagir.
Acabada aquela Euforia inicial, lá vem ele se insinuando de fininho, fazendo-se vítima. Não, ele não foi culpado por nada, pelo contrário, só queria ajudar, era o único companheiro e foi jogado fora.
Suas intenções são manifestas de várias formas:
Pra que me largar se precisamos um do outro, não é feio fumar.
“Desconfia dos que não fumam, eles não têm sentimento”
Aos poucos o coitado fumante começa a ver graça em estar com o dito entre os dedos e se esquece dos motivos que o levaram a buscar a liberdade.
Não vê prisão, as grades viraram fumaça, Cego novamente encontra-se com seu “amigo”, às escondidas, só um trago de vez em quando.
até que alguém o flagra sorvendo alegre a fumaça embotadora de sua mente.
passada a vergonha inicial ele volta à antiga prisão. Sem pejo de desfilar com seu destruidor e só vai se dar conta da besteira que fez quando os motivos que o levaram a buscar a liberdade estiverem-no atormentando novamente.
E a angústia parece sua única aliada, companheira.
Essa angústia, esse sofrimento vai-se repetir até o dia em que finalmente o tabaco cumprir sua missão: a ruína total daquele que não teve força o tsuficiente para se livrar dele.
***
a mesma angústia que acomete ao fumante, ocorre àqueles que de certa forma possuem grilhões dos quais não conseguem se livrar.
qual é a sua prisão, a sua angústia?
livre-se dele o mais urgente, antes que a ruína seja a única visão que se deslumbrará no caminho já embotado.

(Professor alves)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

SONETO DA BELEZA

SONETO DA BELEZA
(Para Vanessa, uma beleza ainda arisca )


A beleza não está no que defronta,
Mas na alma plena que se manifesta.
Não está na roupa com que se apronta,
Mas no sorriso que se abre em festa.

É um esplendor que o dedo não aponta,
É um detalhe que um muxoxo empresta.
Todos dizem: linda! Demais da conta!
Se faceira, o mundo todo a requesta.

Porém se o belo não se faz notar,
Não se mostra em linhas sinuosas,
Se fica assim a formosura latente,

Não se vai desta forma realçar,
Não serão as graças então formosas,
A alma fria não estará contente.
(Professor Alves, junho de 2008)

quinta-feira, 10 de julho de 2008

APOLOGIA À CANÇÃO DO MUNDO


(para Vanessa no seu aniversário de doze anos)

Desconfia do silêncio
Sorri, bate palmas, faze barulho
O silêncio é tão insuportável que deu origem ao som
Como à luz a escuridão
O silêncio está sempre carregado de mistério, de sombra
(Mas sempre não é todo dia)

Não te iludas
Quando a cidade dorme, não dorme
É nesse silêncio profundo que amantes se dão
Revira-se pelas camas, e redes, e chãos, em busca de se achar
Não te iludas com o silêncio
Foi silenciosamente com três beijos que Judas cumpriu sua sina
Foi no silêncio de Ouro Preto que se confidenciou e se coseu uma nova bandeira
(ainda que tarde)
Foi nesse mesmo silêncio que um tal Joaquim a traiu
Foi também em silêncio, que os vermes roeram as frias carnes de Machado, Augusto...
E foi no silêncio da asfixia química que o holocausto se consumou

Não te iludas.

Cultua um só tipo de silêncio: o benéfico
O silêncio do ler:
É nos mínimos intervalos entre as palavras que se descobre o mundo
Que se vislumbra a fantasia, e a realidade...
O silêncio do escrever:
É no correr da caneta ou das teclas que damos asas ao silêncio da imaginação
Que se recria o pensamento.

Mesmo quando amares, não o faças em silêncio.

Desconfia do silêncio
Sorri, bate palmas, faze barulho
Deixa o silêncio aos mortos e as gargalhadas aos bobos.
Alves (julho de 2005)

AMOR E POESIA

AMOR E POESIA



Fazer versos é como fazer amor.

Em atos ambos, a pressa tem que ser desprezada,
O cuidado, inexoravelmente, enaltecido.

O ser amado como o papel cuidadosamente
Sonhado
Festejado
Mirado.

Ela te dá o prazer do gozo dia após dia
Ele a alegria de não te repetires.

Cada palavra é um beijo,
Cada verso uma carícia,
E paulatinamente o poema se vai construindo,
E calmamente os corpos se constringindo.
Até o momento máximo da poesia realizada (o poema),
Até o sublime êxtase do líquido jorrado (e recebido).

Examina teu poema...
Contempla tua amada...
E,
Sem te preocupares com a resposta de Pessoa,
Pergunta-te se vale a pena amar qualquer uma,
Indaga-te se o poema não tem hora.

Fazer verso é como fazer amor.
Alves ( 11/03 /2003)

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...