terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS

CAPÍTULO IX
“Mais vale o bom nome do que as muitas riquezas, e o ser estimado é melhor do que a prata e o ouro.”
(Provérbios: 22; 1)


Quando despertei daquele transe, o garotinho continuava a me olhar impassivelmente com um meio sorriso nos lábios. A mãe, em vão, puxava-o. Até que ele estendeu a mão de amigo, eu a apertei, e ele se foi com a mãe. Olhei para o relógio e vi que aquelas cenas duraram aproximadamente míseros quinze segundos. Enquanto o garçom se aproximava com a bandeja, vi que o garotinho ainda me olhava de esgueira, enquanto a mãe ralhava com ele, possivelmente dizendo-lhe algo, como “não converse com estranhos”. Logo lembrei as palavras de Charles Chaplin: “Não há estranhos, o que existem são amigos que ainda não nos foram apresentados.” Essa lembrança me fez refletir que o revés também é possível, que não há estranhos, mas inimigos em potencial. Todas as pessoas que existem no mundo são nossos amigos ou inimigos, só depende de nós. Daí a necessidade de olharmos as pessoas com benevolência, sorrirmos para elas mesmo que apresentem um semblante carregado, pois assim elas ficarão mais propensas a nos abraçar e menos a nos esmurrar.
Enquanto almoçava pensava em Juliete. Tive ímpetos de ir até a mesa onde estavam a mãe e Juliete reencarnada. Tive vontade de perguntar-lhe o nome, saber se ele se lembrava de mim, fazer amizade. Mas concluí que não devíamos nada um ao outro, pois se aquela criança, como Juliete, me dedicara tanto cuidado, eu, como seu pai, lhe havia salvado a vida, e com certeza não éramos estranhos, o destino se encarregaria de nos aproximar, ou não.
E assim o ano declinou, dia após dia entre livros. Não queria nem pensar que poderia não ser aprovado, queria recuperar o tempo perdido. Não pensava em aliel, ou melhor, pensava, mas buscava não pensar e meus pensamentos se voltavam para os bizus. Finalmente chegou o grande momento da realização das provas. A ansiedade agora era a espera do resultado. As questões iam e vinham na minha cabeça e eu me perguntava “será que marquei a alternativa correta? Será que o somatório era aquele mesmo?” E veio a grande surpresa: o nono lugar num dos cursos mais concorridos do país indicava que eu me preparara devidamente, era bem mais do que eu poderia esperar. E eu não pulei, não gritei apenas saí tranqüilamente em direção da praia e lá fiquei refletindo sobre tudo o que havia acontecido nos últimos dias. Depois de conhecer o resultado, eu sabia que entrar para uma faculdade como Medicina não era bicho de sete cabeças, mas foi bom eu ter imaginado que era o obstáculo mais difícil da minha vida, pois os obstáculos são assim quanto mais complicados os imaginamos, melhor nos preparamos para eles e mais simples se tornam Somos, pois, como Alice, que despreparada para enfrentar um rato, via-o como se fosse um rinoceronte, grande ameaçador; mas devidamente cônscia de seus atributos e de seus medos, ao ver um rinoceronte, encava-o como a um simples camundongo. No entanto não devemos temer nem a um nem a outro, aquele é imenso, porém lento e manso; este, ao contrário do que diz a fábula, não assusta nem elefante. O que devemos temer de fato são os tigres, com suas garras e dentes ameaçadores e sua eterna fome de carne, os lobos que rodeiam a presa para alimentar os filhotes. Os homens somos tigres e somos lobos sempre em busca da presa fácil, com os dentes escancarados, rindo enquanto o cordeiro jaz a nossos pés.
É incrível a força e a leveza do pensamento! Naquele momento eu refletia sobre o meu sucesso e fui aos poucos catapultado a essa reflexão sobre os homens e não sei por que eu chorei. Apesar de ser homem, de apreciar o domínio sobre coisas e até mesmo sobre outros homens, vem-me à boca um amargo por saber que numa sociedade de consumo, numa sociedade de tigres e lobos, o prazer de alguns requer o sacrifício de muitos. Eu subitamente me inquieto e as contradições afloram em meu cérebro e minha alegria é triste e meu brilho é fosco. Eu não sou um ser evoluído, e talvez nunca virei a sê-lo. Nunca serei como Ernesto Guevara, que trocou o conforto de sua família, o colo de sua esposa e o sorriso de suas filhas para se transformar no peregrino da revolução; como Gandhi, que libertou seu povo sem que para isso fosse necessário disparar um tiro; como Francisco, que abandonou uma vida de luxo e de luxúria para se dedicar aos pobres e aos animais; tampouco feito Jesus, que com o seu amor imensurável se doou num ideal de solidariedade a ponto de derramar seu sangue pela humanidade. Também não me arvoro em sê-lo. Tenho primeiramente que continuar minha tarefa aqui, e o tempo se encarregará do resto.
Em tudo isso eu pensava, quando uma mão leve como uma pluma tocou meu ombro. Não virei o rosto para mirá-lo, era como se eu já o esperasse. Um vulto de pele clara, quase transparente, sentou-se ao meu lado e me disse:
─ Chora, pois o choro é o óleo que vem untar nossos olhos para vermos com mais clareza as nossas necessidades e as dos outros e percebermos que a doação é a nossa grande missão, pois, como nós lavamos uma roupa e nos preparamos para uma festa, as lágrimas lavam nossa alma para a festa de novidades que renovarão nossos dias. Os que não choram, permanecem cegos diante do sofrimento seu e alheio, não irão a nenhum baile, no máximo dirigir-se-ão a uma bacanal, onde carregarão mais ainda suas roupas de nódoas, que lhe pesarão sobre os ombros o os vergarão para a terra, numa apoteose decadentista. Por isso chora, não tenhas pejo de fazê-lo, sozinho ou diante de outrem. Não se preocupe com a evolução. Ela é lenta, mas é gratificante e, vidas menos vidas, ela virá.
Dizendo isso, esse espírito de luz sumiu e me deixou só com minhas dúvidas que aos poucos se dissiparam e foram substituídas por uma certeza: viver é um sacrifício que devemos aceitar, não como um fardo, mas como uma tarefa a ser cumprida, e é a sua realização que nos torna feliz. A felicidade é isso é o prazer das coisas cumpridas.

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...