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quinta-feira, 14 de março de 2019

A MOÇA DA PONTE



          



Faz muito tempo
que eu não vejo
o verde daquele mar quebrar
nas longarinas da ponte velha
que ainda não caiu
(Ednardo, Longarinas)

            Vocês veem aquela moça, sentada no final da ponte? Claro que não, pois sequer a ponte existe mais. Só seus escombros ainda enfeitam a paisagem e remexem as recordações de quem esteve lá. Entretanto, se alguém olhar bem, não olhar querendo ver, mas olhar, imaginado que ali no final da ponte, que não mais existe, há uma jovem morena com as pernas cruzadas, fitando o mar, como se quisesse tragá-lo, talvez inundá-lo com sua cor, talvez devolver-se a ele, como se dele adviesse. Ela chega, senta-se, cruza vagarosamente as pernas e fita o mar. Ele, por sua vez, enfurecido, parece acalmar-se, como se necessitasse deveras daquela presença, igual a mim. Como se todo o perfume que emanasse dela fizesse um bem maior ao grande Netuno, e sua essência trouxesse calma ao espírito dos oceanos. Ela chega, senta-se, cruza as pernas, fita o mar e pensa. E seu pensamento traz consigo a noite, e, como num ato de pura cumplicidade, o Sol se vai, deixando o privilégio de a ciceronear para a Lua, que, de grande alegria, vem cheia para iluminar cada movimento seu. Mas o sol se retira feliz, já que no dia seguinte volta revigorado. A mãe, deliciada com aquela estada, reina absoluta. Ela chega, senta-se, cruza as pernas, fita o mar, pensa e desfia os dedos longos, um a um. E não toma conhecimento dos meus, nervosos, que estralam de desejos. As estrelas, essas brilham, regozijam com aquele gesto. E a Sírio, como amante regozijada, tremeluz intensamente àqueles movimentos. Ela chega, senta-se, cruza as pernas, fita o mar, pensa, desfia os dedos longos e segura levemente os cabelos, que o Zéfiro teima em leva-los consigo. Mas ela não tem maldade ao não permitir, apenas não quer causar inveja ao restante da natureza.
            Hoje eu fui à ponte que não mais é. E o mar estava violento, enfurecido com as pedras, que, em vão, tentavam contê-lo. Só eu sabia o verdadeiro motivo. Ela lá não estava. Sumiu dos meus olhos, sumiu do mundo. Entretanto se olharmos bem, não com os olhos que buscam o concreto, veremos que lá estará ela, linda, misturando  rusticidez da ponte à beleza do anoitecer.
            Quando a vi pela primeira vez... Quanto tempo, não importa, mil anos, quiçá um dia, o tempo aqui não conta. Quando a vi pela primeira vez, ela ali estava, e de súbito fui arrebatado para um lugar que não há igual. Talvez eu estivesse, a partir dali, dentro de seus olhos, na saliva que transparecia de seu sorriso, nas partículas secretas de seu perfume ou nas notas dissonantes de sua melodia predileta. Lá estava eu, e não sabia onde. Daquele momento em diante, não era mais eu, era tudo que emanava dela, vivi como o insano que me tornei. A vida era um sonho louco. Nada mais me importava, somente sua presença me era interessante.
            Nos lugares mais quiméricos estivemos. Passeava no céu de sua boca, surfando  beijos intermináveis, pelos bancos das praças; emaranhava-me em seus cabelos, em devaneios etéreos, nas mesas de bares. E meu viver tornou-se um entrelaçamento de seus braços em abraços encantados, pelas orlas dos mares. Não falava. As palavras nada diziam. A única coisa que me traduzia a vida era seu nome. Qual? Não sei. Não sei mais. Nem sei se o soube algum dia. Foi-me volátil. Como Hermes, sumia vida a fora para regressar pelas madrugadas. Mas é apenas um miúdo detalhe. O certo é que esses foram os momentos mais felizes da minha estéril vida. O nome possivelmente sequer existiu. É provável que fosse apenas mulher. Era bom sentir-me em seu âmago. Como explicar? Não sei... Eu estava passeando em meu íntimo, quando ela se enterrou em ser, adentrando as veias do coração e se espalhando cérebro adentro. Ocupou todos os neurônios, emperrou-me o raciocínio, e fui feliz. A felicidade era realmente aquilo! A felicidade era amá-la!
            Antes eu era um ser normal. Trabalhava simplesmente, comia nos refeitórios e ocupava os dormitórios pelas noites mortas. Sorria para agradar e imaginava o amor sempre. Saía às noites e tornava quando a Lua ainda não cumprira a metade de seu percurso. Era um mero habitante do planeta.
            E ela então surgiu, no dia em que a vi. Pernas cruzadas, mãos entrelaçadas e olhos fitos no mar. Surgiu como os mistérios que os oceanos guardam. E, assim, vivi como os deuses, acima de todos os bens, superior a todos os males. Eu era um deus, um deus louco, um deus sobre todas as mediocridades humanas! Um deus.
            Mas...
            Aí! Como éter, desapareceu! O mundo tornou-se negro, sombrio, nu. Não existiriam mais luares, e pranteei! Procurei-a em todos os lugares, vasculhei todas as gavetas, revirei todos os papéis. Busquei-a em todos os recantos onde sabia haver uma digital sua ou a marca de um suspiro. Não era mais um homem, tampouco um deus. Sofria, como sofrem as mães que perdem seus filhos para a guerra ou para as pestes. Sofria como os mortais que um dia conheceram a eternidade. Passei então a respirar o mundo, em busca de algo que a trouxesse. Aspirei todos os perfumes, mas não senti o olor que me restituiria a glória. Olhei todos os rostos e em nenhum vi os lábios que me restituiriam o sorriso. Abri todas as portas, e em nenhuma habitava aquela que vive em meu íntimo. Cansado, estafado, senti meus olhos secarem e não mais chorei. Resignei-me à fealdade do mundo.
            Certo dia, estava sentado em uma calçada às margens da vida, quando uma leve brisa tocou meus lábios, e juntamente com ela, seu perfume, o cheiro dela. E para minha maior surpresa, lá estava ela. Sorri e chorei, depois de muito tempo. Era a vida que se-me devolvia. Toquei-a. Era ela! Beijei-a e sorri-lhe. Era ela! Retomamos o trem das emoções e vivemo-las como nunca ninguém ousou. Não, não perguntei por onde voejou. Seria infantil. Amei-a simplesmente, e as pessoas puderam me ver, eu e a ela, por praças, bares, estrelas, mundos! Eu e a moça morena!
            Um dia, ela se foi de vez. Tornei a ser uma pessoa normal. A chuva molha meus cabelos, e às noites, amo-a em sonhos. Do que mais preciso? Ela existe. E essa certeza me basta. Ela pensa em mim. E essa dúvida não carrego. Só espero que aquela brisa volte, e, com ela, a Moça da Ponte, cuja presença, ali nas longarinas, só eu percebo, enquanto a Natureza toda se revolta por não vê-la no lugar de onde nunca se ausentou: a ponte.
(Alves Andrade)


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