CAPÍTULO XVI
“A encarnação é necessária ao duplo progresso moral e intelectual do espírito(...). a vida social é a pedra de toque das boas ou más qualidades.”
(Alan Kardec)
As aulas na faculdade se iniciaram no começo de fevereiro, portanto nesse mês não tive tempo para nada. Era mais ou menos pelo dia vinte quando Ernani me telefonou para dizer que o tal psiquiatra americano já estava em Fortaleza e que marcara o início das sessões de regressão para o sábado. Nos dois dias que antecederam a essa data eu me desdobrei para não deixar nenhuma atividade acadêmica para esse final de semana. Dessa forma sábado chegou, e nos reunimos na casa de Ernani para a já famigerada sessão. O médico explicou os procedimentos a serem executados e os problemas que poderiam ocorrer. Disse que mesmo nunca tendo presenciado ou tido notícias de efeitos negativos nos pacientes, era possível que eles ocorressem. Por isso o marido de Aliel teve de assinar um termo de compromisso, que foi guardado metodicamente pelo homem que se chamava Bob, apelido de Robert. Ele ainda perguntou a Aliel sobre seus traumas, suas fobias. Ela fez referência ao medo de tomar comprimido, “pois eles sempre ficam atravessados na garganta.” E colocou as duas mãos no pescoço e pôs a língua pra fora, fingindo estar sendo enforcada. Todos riram de sua atitude. Disse por fim um pouco séria sobre o principal motivo de estarmos ali, que era sua obsessão em achar que muitas pessoas as quais nunca vira parecerem-lhe familiares.
Depois dessa conversa que se deu de forma bem descontraída, o homem ligou o gravador e, em seguida, levou Aliel ao estado de hipnose. Aos poucos ela foi relatando o que via. Como se assistisse a um filme de trás pra frente. Chegou a idade de cinco anos e nos relatou alguns maus tratos infligidos pela mãe, que numa tentativa de mostrar às pessoas que a filha era normal, dava-lhe beliscões por baixo das mesas ou bicava suas pernas com a ponta da sandália. Nesses momentos Aliel parecia estar consciente e não hipnotizada, demonstrou bastante tristeza ao se referir aos fatos. Depois ela encolheu-se toda e ficou em posição fetal e pôs o dedo médio na boca. Aos poucos foi-se estirando novamente e em seus lábios apareceu um breve sorriso, que desapareceu dando lugar a uma expressão séria. E começou a falar:
“Eu ando por uma rua estreita, iluminada à luz de lampiões. Eu sou um homem, estou vestindo um terno azul, trago um chapéu na cabeça e tenho uma enorme barba. Entro por uma porta estreita e vejo meus camaradas, que me esperam. Estão todos taciturnos, preocupados. Todos me chamam de “o Escolhido” e também atendem por pseudônimos análogos. Há o Redentor, o Pensador e outros. O lugar onde me encontro é um espécie de bar e alguns gritam alto em espanhol “ ¿En este bar no hay nadie para servirnos?” E riem sem muita explicação. Do interior aparece uma mulher atarracada com algumas garrafas de vinho que distribui pelas mesas. Ao passar por nós ela diz algo como “Éste es vino de la medianoche”. É um código secreto. Agora eu me lembro, somos todos seguidores de Simon Bolívar e temos um plano de nos unirmos ao seu exército em Caracas. Entretanto há um mal estar, entre o grupo. Temos que esperar a meia-noite. Temos que aguardar com naturalidade para não despertar suspeitas nos outros freqüentadores do ambiente. Um dos camaradas retira do paletó um jogo de cartas e jogamos, outros bebem, mas pouco, mesmo assim a tensão não passa. Agora a porta se abre com violência e homens fardados e armados com carabinas entram no salão. Todos vamos presos. Fomos traídos pela taberneira que vai mostrando ao chefe dos fardados quem faz parte do grupo e quem não faz. Ficamos então sabendo que Simon já está refugiado em um país vizinho. Os soldados se aproximam de nós e com suas adagas cortam-nos a garganta. É grande o transtorno dos outros colegas vendo nossos corpos estrebucharem pelo chão coberto de sangue...”
Nesse instante Aliel tornou-se ofegante, com grande dificuldade de respirar. Ela por algumas vezes levou a mão em direção ao pescoço, mas seu ofego foi diminuindo, seu rosto se iluminando. Ela nos contou que fora levada por uma luz e que permaneceu nela um tempo que julgava infinito. Depois começou a espernear como fazem os bebês e nos narrou mais uma de suas vidas. Nesta ela era uma religiosa em missão de caridade numa comunidade pobre no sul da áfrica. Lá sua grande inimiga era a fome que consigo trazia toda sorte de moléstias físicas e morais, narrou-nos seu sofrimento ao ver o semblante da miséria estampada nos olhos e corpos daquelas criaturas desgraçadas. Contou-nos também de sua morte aos oitenta anos rodeada pelas pessoas que tanto ajudara, uma morte, como ela mesma descreveu, feliz.
Nos dias que se seguiram, as sessões se repetiram. Esse trabalho durou exatamente dez meses e aliel regrediu a mais de cinqüenta encarnações. Umas sem grande importância, outras contribuíram de forma decisiva para que ela e nós entendêssemos todos os males que a afligiam, todas suas angústias e temores foram desvendados nessas regressões. Entretanto para mim a mais significativa foi quando ela regrediu há aproximadamente mil anos e se viu como Ranjicniami. Nesse período eu estudava fora de horário e até de madrugada para não perder essas sessões, que depois eram cuidadosamente analisadas por nós e pelo psiquiatra, e das fitas eram tiradas, com o consentimento do casal, cópias, para, segundo ele, quando tivesse coragem, publicar um livro com essas experiências e assim enfrentar a comunidade cientifica.
Foi possivelmente, não lembro bem, na décima quinta sessão que Aliel lembrou pela primeira sua vida como Ranjicniami. Falou do nascimento, da infância, das ameaças do pai, das angústias, do medo que todos na ilha tinham das ondas gigantes. Na segunda vez ela relatou o nosso encontro e novamente lembrou seu nascimento e as ameaças do pai. Foi com grande aflição que, em uma outra sessão, relatou nossa morte causada pelas ondas gigantes que nos arremessaram contra as pedras. Às vezes ela passava inúmeras sessões sem lembrar dessa encarnação, seu ser se voltava para momentos sem grande importância como brincadeiras de infância ou simples discussões familiares. Depois ela voltava a lembrar-se de quando era Miciane e eu Daniel. E já nas últimas reuniões ela só regredia a duas vidas: como Ranjicniami e como Miciane. Essas duas existências de aliel eram os elos que nos ligavam, formavam aquilo que antes era o mistério de nossas vidas. Nós nos amávamos de duas formas diferentes, mas que se completavam. Eu a amava e a protegia enquanto ela era Miciane, e a amava, queria-lhe como um louco enquanto Ranjicniami. Entretanto não pude concluir aquilo que poderíamos chamar de nossa missão. Há mil anos fomos arrebatados pelas águas do oceano e tivemos nosso destino interrompido. Como seu irmão, coincidentemente com o mesmo nome que tenho agora, Daniel, não pude protegê-la das maldades perpetradas pela nossa tia, pois morri precocemente em um acidente de trem. Agora era diferente. Nesta vida tínhamos toda a oportunidade de nos realizarmos, de concluirmos aquilo que talvez seja o motivo de nossa estada aqui na terra: amarmos um ao outro em toda sua plenitude. Somos almas gêmeas que precisamos nos completar, somos as metades da laranja separadas pelo fio da faca do destino e que precisamos nos unir para que nossas almas tenham finalmente paz.
No mês de novembro, encerraram-se as reuniões. O americano deu seu trabalho por concluído. As vidas de Aliel haviam sido dissecadas, se havia uma ou outra que não vieram à tona eram sem grande importância. O próprio médico fez referência ao fato de o mistério de nossas existências estar na análise dessas duas vidas. Ernani sabia disso, mas sabia também que seu destino não o havia colocado diante de aliel por acaso, inclusive ele aparecia mais em suas outras vidas do que eu, era sempre seu pai, amigo, avô, confidente. Ele sabia da importância de seu papel na consecução do destino da esposa. Ele a amava e não abriria mão de seu amor. Ela compreendia agora todo o carinho que nutria pelo marido, com quem se dava muito bem. E isso é amor. Além do mais, conhecia seus compromissos como pessoa socialmente comprometida, não podia abdicar de seu matrimônio. Além de tudo isso, havia entre todos nós o Destino como mediador, diante do que foi visto durante todo esse tempo, nós sabíamos que infringir as suas leis era quebrar uma corrente que fora elada há milhões de anos e que, portanto, não havia nada que pudesse ser feito. Tudo devia continuar como estava: Aliel casada e amando seu marido; eu amando-a e respeitando sua condição; Ernani amando a mulher e sendo amada por ela, sendo meu amigo e crendo na minha fidelidade. Só uma coisa mudara, aliás duas: a cura definitiva de todos os males que acometiam Aliel e a nossa compreensão de tudo o que nos cercava. E só uma coisa não sabíamos: em que teias o futuro, que enreda destinos silenciosamente, nos iria jogar.
CAPÍTULO XVII
“Nasce o sol e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.”
( Gregório de Matos)
E assim o tempo passou. A faculdade absorveu todos os meus dias e parte de minhas noites. O tempo que me sobrava, quase nenhum, era dedicado a uma visita e outra a Aliel e seu marido. Ela passara, depois das sessões, por uma mudança impressionante. Tornara-se mais adulta, mais cônscia de sua existência material e mais ligada à sua realidade espiritual. Cursava Turismo na Escola Técnica e em seus momentos livres, dedicava-se a atividades beneficentes, como voluntária em uma creche na periferia e a fazer visitas periódicas a hospitais e presídios. Uma vez por mês passou a participar das reuniões no Centro Espírita Paulo e Estevão, no qual se tornou referência entre os colegas. Uma vez por outra eu ia junto. As reuniões e a consciência definitiva da existência desse mundo paralelo me confortavam e me alegravam. Entretanto o que eu esperava que acontecesse comigo não aconteceu. Eu esperava que a partir dali eu me transformasse num médium, psicógrafo ou coisa parecida, mas nada disso se deu, eu era apenas mais um freqüentante do Centro. Certa vez o regente da sessão percebeu meu desapontamento, chamou-me ao jardim e me disse:
─ O mundo dos espíritos ainda nos é muito inacessível, meu caro Daniel. É preciso muita paciência para compreendê-lo. O próprio Chico Xavier disse em determinado momento que não tinha conhecimento total de sua missão, que era apenas um instrumento nas mãos divinas. Por isso algumas vezes se pegava chorando, não de tristeza, mas por falta de compreensão, carência desse entendimento pleno. Possivelmente, apesar de tudo por que passou e vivenciou, as visões de encarnações passadas, a consciência que você tem de tudo isso, não esteja pronto ainda para assumir uma missão abstrata, espiritual. Sua missão ainda é entre os mortais, entre os vivos e não entre os espíritos.
Ele tinha razão! O meu trabalho agora era entre os vivos ou pelo menos entre os quase vivos. Devido às boas notas eu fora convidado a fazer um estágio no Hospital São José, estando ainda a três anos do final do curso, nossa como o tempo voa! Coincidentemente o mesmo hospital no qual me curei do mal-do-século XIX. Lá estava agora eu como médico residente. Lá, deparei-me novamente com a humanidade em frangalhos. Homens e mulheres mutilados pelas enfermidades mais cruéis que existem, a AIDS, Tuberculose, Meningite, entre outras. O pior é que a maioria das pessoas que lá chegavam além da moléstia que os derrotavam paulatinamente havia ainda a derrocada moral. Eles chegavam, em grande parte, com o moral tão em baixa que muitas vezes a morte antecipava sua chegada. A AIDS e a Tuberculose eram as piores na medida em que os pacientes na maioria das vezes eram os principais culpados pela sua estada ali e não há nada mais punitivo do que a culpa. Os gays e prostitutas compunham a maioria dos doentes de AIDS e outras DSTs. Quando a gente se aproximava deles sentia em seus semblantes quase um pedido de desculpas: “desculpa, eu não sabia o que estava fazendo, não me preveni como devia, foi a queda moral que me levou ao álcool, às drogas e ao completo descuido”. Entretanto quando a gente tentava um diálogo para confortá-los, o que ouvíamos eram palavras de insulto. No fundo se eles não davam fim a própria existência era por falta de coragem e não de vontade. Daí o nosso trabalho vinha em dobro, pois além de lutarmos pela cura daqueles indivíduos, tínhamos que resgatar a auto-estima deles, tirá-los do fundo do poço no qual haviam caído e sozinhos não tinham como sair. Nesse momento eu me lembrava de Wellington e de suas palavras sobre culpa. E as compreendia à medida que via certa resignação naqueles que não tinham culpa pela sua condição, o que não ocorria com os outros. Compreendia minha missão entre os vivos. E dia e noite estava ao lado deles, trocando fraudas, aplicando soros, medindo temperatura e conversando, contando minhas experiências de vidas passadas. Levava livros para eles, quando não podiam ler, eu mesmo o fazia em voz alta para que todos pudessem compartilhar os enredos, que deveriam ter conhecido na infância, mas que não puderam porque em muitos casos esse período foi-lhes roubado ou adulterado em proveito de outrem. Aliel passou também a freqüentar uma vez por semana o hospital, e eu ficava feliz por vê-la, pois era bom tê-la junto a mim.
Certa vez o diretor do hospital me chamou a sala dele e por muito tempo me falou da energia que os jovens têm da disposição que lhe é peculiar, e do idealismo que rege suas ações. Depois falou que com o tempo esse dinamismo se vai e trabalha-se com menos fervor. Tudo isso para me falar a respeito do risco que eu estaria correndo me envolvendo tanto com os pacientes. Eu me lembrei de um professor da faculdade que já deveria estar aposentado, entretanto o trabalhava com o mesmo interesse de quando iniciara no magistério, e refleti que é sempre assim: aqueles que não trabalham com amor, não importa em que área, sempre justificam a falta de compromisso, a ausência de denodo para enfrentar os desafios da profissão utilizando o argumentos da idade e da experiência. Pobres mortais não sabem que escolheram a área de atuação errada, seja médico, professor, padre e que estão ocupando o lugar de alguém que, com certeza, realizariam melhor a atividade.
Era sábado à noite e eu estava de plantão quando fui chamado para realizar os procedimentos iniciais de uma paciente recém chegada Como era praxe minha, não observei o nome que estava no formulário. Preferia perguntar ao enfermo para poder iniciar um diálogo enquanto fazia os procedimentos iniciais. Ao chegar à porta vislumbrei exânime sobre o leito, com a respiração por um fio, o corpo de Ângela. Sim, aquela que fora responsável pela minha estada ali, que quase me levara à cidade proibida, estava agora no meu lugar. Foi então que olhei o formulário e constatei o diagnóstico: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; situação da moléstia: estado avançado. Mais do que depressa, realizamos todos os procedimentos necessários e quando o titular me pediu que cuidasse de outros pacientes, que Ângela ficaria sob seus cuidados, quase me desesperei. Felizmente ele compreendeu, bom homem, sem que eu falasse, que aquele caso era particular e me deixou cuidar dela. À noite toda não preguei olho e nem o tirei dela, depois de administrado o medicamento que fazia milagre entre os aidéticos. Consultava a todo instante sua temperatura, enxugava-lhe o suor do rosto e ouvi pela madrugada seus delírios. Eram sons monocórdios, misturados a risos e intercalados por ofegos. Já era dia quando fui convencido pela enfermeira a me retirar para casa. Ângela estava fora de perigo, pelo menos por enquanto.
À tarde, depois de assentadas cinco horas de sono, banho, barba feita e boa alimentação, retornei ao palco de desespero para me defrontar com Ângela. Quando cheguei ao quarto, fiquei sabendo que a minha paciente já estava conversando e sentando. Já havia almoçado normalmente junto com os outros. Fui então ter com ela. Encontrei-a sentada de costas para a porta, aproximei-me dela e falei:
─ Oi, está se sentindo melhor?
Ela quase saltou da cama ao reconhecer minha voz, mas logo recuperou o ar habitual e, como se nada de anormal estivesse acontecendo, falou:
─ Oi, que bom te ver!
Eu já esperava por aquela frase, ri por dentro e continuei:
─ Que bom que você está aqui – mas percebi a gafe e consertei – que bom que posso cuidar de você, apesar de preferir não fazê-lo.
Ela também riu por dentro, ao perceber que quanto mais eu tentasse corrigir, mais eu me complicaria. Deu-me a mão que eu solenemente beijei. Alguns pacientes me olharam, eles não entendiam como eu tinha coragem de colocar meus lábios naquela pele enfeitada pelos sarcomas de kaposi, pois eles tinham aprendido com a própria experiência e indiferença com que são tratados, que aidéticos são a escória, ainda existe o preconceito de que a AIDS é doença de veado, de prostituta, de macaco. Ângela, então, pediu para que eu sentasse ao seu lado para me contar sua história, a qual eu já sabia ser mentira. “Ela jamais me contará a verdade, quem sabe um dia aprenda a ser franca e resolva falar sobre o que acontece e não o que ela quer ou acha que acontece.” – pensei. Entretanto ao mover os lábios para me fazer seu relato, baixou a cabeça e me falou de seus desatinos, suas incoerências. Contou-me de sua alma inquieta e de seu vazio interior, o qual quanto mais tentava preencher, mais oco lhe parecia. Falou-me do que houve em seu passado recente, de suas orgias desenfreadas, da troca de parceiros como se fosse uma muda de roupa. Quando alguém falava para que ela se prevenisse de doenças como a AIDS ela ria, “pois não cria que isso pudesse acontecer comigo”. Em determinado momento de sua narração, ergueu os olhos para mim, e eles estavam cheios de lágrimas. Falou-me a verdade sobre o nosso relacionamento e me pediu desculpas por me ter feito passar por tudo pelo qual eu passei. Em seguida, abraçou-se a mim e soluçou. Eu lhe prometi que ela não iria morrer, que eu faria tudo para que logo ela estivesse boa.
Nos dias que se seguiram, chegou um grande lote de um novo medicamento que substituiria o AZT e assim alegrar aqueles que conviviam com a síndrome, se antes com o AZT eles tinham pouca sobrevida, agora eles poderiam comemorar o retorno a uma vida normal. Era o coquetel anti-retrovirais que reduz até 99 por centos dos vírus no organismo e deixa a doença sob controle, apesar de não eliminá-la, pois o 1 por cento que fica, se não observado e domesticado, pode destruir o paciente. Durante o período em que Ângela esteve no hospital, eu ia visitá-la com freqüência e ia percebendo a mudança física, os sarcomas já haviam desaparecido e o peso recuperado. Mas me impressionava mais sua mudança psicológica. Ela cuidava dos pacientes, confortava-os, coisa que ela não faria em outros tempos, dado o seu egoísmo. É incrível o poder de uma adversidade! Quanto orgulho já foi ralo abaixo após um grande sufoco imposto pela vida. Nesse momento eu abandono o hospital e as mudanças ocorridas em Ângela, para narrar um outro caso de transformação.
Era uma sexta-feira e Ernani havia me pedido para acompanhar Aliel à inauguração de uma instituição beneficente, que ocorreria no Centro Espírita Paula e Estevão. Eu fora, é claro, com todo prazer. Tratava-se de uma organização irlandesa que estava fundando sua sede aqui no Ceará. Seu objetivo era trabalhar junto às escolas públicas de periferia, para fomentar a consciência política e criar pessoas politicamente alfabetizadas para inibir a compra de votos e ações análogas, por parte de políticos inescrupulosos. Ao sair por volta de dez da noite, um fato me chamou a atenção: um carro estava parado numa esquina e um homem servia sopa em diversos pratos descartáveis a uma porção de gente faminta. Eram jovens, crianças, velhos e envelhecidos. O fato em si não me era totalmente estranho, pois existem muitos registros de pessoas que praticam essa atividade de compaixão ao próximo necessitado. O que me despertou o interesse pela cena era seu protagonista: Pedro César. Era exatamente ele, o homem que, rico, menoscabara os amigos e até familiares; pobre, fora desprezado por todos e se arrependera. Peguei Aliel pelo braço e me aproximei do grupo. O homem, reconhecendo-me, falou em tom jocoso:
─ Vai dois pratos de sopa aí, meu?
─ Por que não? Se é dado com amor!
Ele riu e me estendeu, sob os olhares ciumentos dos famintos, dois pratos, um para mim outro para Aliel, que lutava por entender o que estava acontecendo. Depois de todos os “clientes” com os pratos nas mãos se afastarem para saborear a refeição, a qual para muitos era a única do dia, ele me apertou a mão e disse:
─ Pois é parceiro, a vida me deu uma nova chance.
E em poucas palavras me contou sobre os últimos acontecimentos de sua vida. Falou-me do emprego que havia conseguido, sua rápida ascensão, as economias que fizera, as privações pelas quais passara e a aposta ao montar uma pequena lanchonete, que logo se transformara numa rede de restaurantes. Agora estava bem, não apenas porque recuperara seu padrão financeiro de antes, mas porque recupera o carinho e a amizade daqueles que desdenhara. Contou-me com ar compungido que não tivera, ao visitar a terra natal, pudor de ir ter com os eis amigos, apertar-lhes a mão e lhes pedir desculpas. Falou-me também, sem grande alarde, sobre o que estava fazendo ali e de como isso o alegrava. Contou-me ainda que casara e tivera um filho agora com um ano de idade, a quem ensinaria todas as lições que aprendera a custo. Eu fiquei muito feliz e saí satisfeito em saber que a humanidade tem jeito. Naquela noite dormi tranqüilo e imaginando um mundo melhor em que todos tenham direito a ser feliz, um mundo em que as pessoas, numa imensa corrente, não permitam que ninguém passe privações tão básicas quanto o direito à alimentação.