sábado, 15 de novembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE RENCONTROS

CAPÍTULO III
“Tudo tem o seu
tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
(Eclesiastes: Tempo para Tudo)


A partir de então o sonho continuou a se repetir setembro após setembro tal qual se revelara da primeira vez quando eu tinha oito anos. Minha vida seguia seu curso natural. No íntimo eu sabia que tudo viria com o tempo. O tempo é meu grande aliado. Nada de bom me veio que não fosse de forma natural, com o tempo. Há quem diga que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Mas eu acredito mais no provérbio que diz que a felicidade é como uma borboleta, se a perseguimos, ela foge de nós; mas se a esperamos, no cumprimento do dever, ela virá pousar em nosso ombro inexoravelmente. Assim não há problema pelo qual eu tenha passado até hoje que o tempo não tenha resolvido. Está claro que não devemos correr atrás de problemas para deixá-los às expensas do tempo. Mas diante de um, por mais grave que pareça, não devemos arrancar os cabelos nem pensar em suicídio. A paciência, a calma e a busca de uma solução adequada é a melhor saída. Lembro-me de que certa vez minha mãe me dera o dinheiro para eu pagar o colégio, e eu o gastei, primeiro um pouquinho, esperando repor essa quantia depois. Mas, com nosso espírito consumista latejando, toquei fogo no restante. Quando me dei conta do ocorrido, fiquei desesperado. “E agora, o que vou fazer?” Perguntava-me atônito, tentando imaginar como agiria minha genitora ao saber que o filho gastara o dinheiro da mensalidade da escola. O que fiz para enganá-la, me envergonha até hoje. Confiando em sua deficiência, destaquei a folha do talão e guardei-a num compartimento escondidinho da minha carteira de cédulas. Ela, que era portadora de miopia, não se esforçaria para ver no canhoto o carimbo da tesouraria da escola. No entanto passei quase todo o dia aperreado para encontrar uma saída. Foi quando de repente me veio a idéia da efemeridade das coisas. Nada dura para sempre, nesta vida tudo é passageiro. O que eu leria posteriormente em filósofos e poetas me era claro como as águas de um rio cristalino. Em Pe. Antônio Vieira, posteriormente eu leria: “O tempo se atreve a colunas de mármore...” Alguém outro também disse: “O futuro será uma eterna tormenta, até que um dia o tempo o torne passado.” E daquele momento em diante, essa idéia passou a me confortar sempre que algum problema tenta me tirar a paz. Até mesmo uma dor de dente, eu a curo com o tempo. Claro está que o problema deverá depois a seu tempo ser eliminado. No caso do dinheiro do pagamento da mensalidade escolar, eu fiz uma caixinha e todos os dias colocava uma ou mais moedas, que pedia a um tio e a meu pai sem dizer para quê. E grande foi minha felicidade, quando no final do ano tinha recuperado quase todo o capital extraviado. E a idéia de que as coisas são fugazes sedimentou-se em mim, pois como disse o profeta: “Passarão céu e terra, só minhas palavras não passarão.”

sábado, 8 de novembro de 2008

CAPÍTULO II

CAPÍTULO II

“Se lembra do jardim, ó maninha,
coberto de flor?
Pois hoje só da erva daninha,
depois que ele chegou.”
(Maninha, Chico Buarque)


Era julho de 1982, portanto quase um ano após a repetição de meu sonho. Nós estávamos de férias na praia de Canoa Quebrada, no Ceará. Nessa época a especulação turística ainda não havia modificado a beleza natural daquele paraíso. Eu jogava futebol com alguns garotos da minha idade, num esforço fenomenal para conter a bola em função da velocidade do vento, esforço esse só justificado pela realização da copa do mundo, evento que transforma um país inteiro em jogadores e técnicos de futebol.
Cansado, esbaforido pelo esforço inútil, sentei-me na areia, à espera de minha mãe, que deveria estar atrás de mim com uma água ou coisa que o valha, quando se aproximou de mim uma garotinha de mais ou menos quatro anos, sentou-se ao meu lado e disse com uma voz de falsete o mais natural possível:
─ Onde você esteve! Eu te procurei por toda parte.
Assustado eu perguntei:
─ Mas quem é você? Eu não conheço você.
─ Conhece sim, eu sou Aliel, sua irmã. Vamos, me leve até nossa mãe, ela deve estar preocupada.
Foi aí que eu percebi a semelhança física da menina com a moça que eu tentara salvar no sonho. Os olhos de um verde fascinante, envoltos por espessa sobrancelha, a boca pequena formando um M e um ar de desamparo que cativava, juntos com uma cabeleira negra contrastando com os olhos, completavam a imagem daquela moça. Como eu me demorei a responder, a menininha começou a choramingar dizendo que eu não queria voltar para casa com ela. Eu percebi então como aquela garotinha precisava de mim, tomei-a então pelo braço e, pela intuição, conduzi-a pela praia. Nesse momento vinha, como louca, correndo, uma mulher que, ao nos ver, abraçou a menina, que era sua filha.
─ Muito obrigada, garoto, por ter encontrado minha filha. – Disse segurando a menininha e fitando meu rosto – ela nunca se afastou da gente, mas hoje sumiu de repente. Ainda bem que apareceu você, meu anjo.
A menina olhou para a mãe e com a mesma naturalidade como se dirigira a mim falou:
─ Mas, Mamãe, eu não lhe disse que ia procurar meu irmão!
─ Desculpe – disse a mãe, voltando-se na minha direção – ela sempre fala nesse irmão que não tem.
Passou a mão no meu rosto, deu-me um beijo e se afastou arrastando com um pouco de violência, pelo braço, a pequena Aliel, que teimosamente andava com a cabeça voltada para mim. Fiquei só, pensando no que havia acontecido. Era realmente tudo muito singular, a familiaridade daquela criança me assustava. Eu tinha apenas dez anos e me deparava com um mistério que me poderia ser revelador ou se tornar por demais doloroso. À minha mente, para me salvar, veio a lembrança de que quando se é filho único, criam-se ilusões de amigos ou irmãos invisíveis. Minha mãe mesma me contara que, quando eu era bem pequeno, passava os dias todos brincando com um amigo, que ninguém via. Contra fatos não há argumentos. E isso me consolou.
Eu ando por uma rua de piçarra e ao longe ouço o marulho, o que me indica estar próximo à praia. Ao contrário das outras vezes, está anoitecendo. Para chegar à praia, é necessário saltar sobre muitas pedras, que formam os diques, vistos nas vezes anteriores. Só que eu não desço. Caminho ao longo do espigão deitado que ladeia toda a praia. Mais à frente sento-me e me ponho a admirar a lua, que surge no além. A praia não existe, a água do mar ocupa toda sua extensão e eu posso tocá-la e brincar com as algas que bóiam. Nesse momento aproxima-se de mim uma mulher, vestida com um roupão marrom e um véu escuro sobre a cabeça. Senta-se à minha frente, retira o véu. É a mesma moça dos outros sonhos. Eu a amo, ela é linda, de uma beleza que não se pode descrever porque ela só é perceptível à luz do coração. Eu miro o seu rosto e no fundo dos seus olhos eu vejo a impossibilidade de ficarmos juntos, algo conspira contra nós, e eu a amo, amo-a tanto que sinto dores, e as lágrimas me correm pelas faces. Ela abraça-me e ficamos assim por um tempo indefinido.
Quando minha mãe me chamou eu já estava acordado e chorava por não ter Aliel ao meu lado. Era ela. A moça do sonho era a mesma garotinha da praia. Eu não sabia explicar o que estava ocorrendo, mas eu sabia que tinha de encontrar aquela menina. A minha existência estava, de uma forma ou de outra, ligada à dela, e isso me parecia inexorável.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CAPÍTULO I

“ Mas onde se achará a sabedoria?
E onde está o lugar do entendimento?
O homem não conhece o valor dela,
Nem se acha ela na terra dos viventes.”
(Jó: 28, 12 e 13)



Não me lembro bem da primeira vez que tive aquele sonho. Mas sei que era muito pequeno. Talvez tivesse menos de oito anos. As marcas que ele me deixou na época, entretanto, me são lembradas até hoje. Até porque ele se repetiu indefinidamente, até que um dia sumiu; suas lembranças, porém, ficaram registradas, e eu, na rua, chegava a identificar pessoas as quais não conhecia, mas que estavam lá, povoando esses momentos oníricos.
Mas o que na verdade é o sonho, que magia é essa que nos acompanha durante nossa existência e para qual não temos explicação, enquanto seres materiais? É realmente uma incógnita esse estado de espírito. Para alguns é a realização de um desejo. Mas como se pode desejar a morte de um ente querido, como um filho ou os pais? Seria então uma projeção do futuro ou uma memória do passado? Ou será tudo isso, dependendo do estágio de nosso pensamento e de nossa alma? Vamos, pois, ao sonho que me impressionou a infância e que me abriria finalmente as portas da compreensão da existência.
Como havia afirmado anteriormente, à primeira vez que tive esse sonho deveria ter por volta dos oito anos. Até então nenhum sonho me havia chegado com tanta clareza, não que eu me lembre. Esse sim. Posso ainda sentir o cheiro da maresia e a cor do céu. Eu estou numa praia nunca vista antes por mim, a cor da terra é escura e há enormes diques de pedras, e há muitas pedras por toda parte, como se estivéssemos sempre esperando uma invasão do mar. Eu caminho pela praia catando conchas as quais deposito numa sacola feita de couro que trazia à tira colo. Próximo e um pouco além muitas pessoas caminham, pescam ou admiram o mar. De repente ouço um barulho semelhante ao rugido de um leão. Ao levantar a cabeça, vejo uma enorme onda, despontando no horizonte, vindo em direção à praia. Apesar do grande susto, olho em volta para ver se posso fazer algo pelas pessoas, e sem pensar corro na direção de umas crianças que brincam inocentemente e procuro afastá-las para o ponto mais alto possível. Com uma mão transporto algumas delas dali, enquanto com a outra escalo as pedras. Ajo rápido porque a onda se aproxima da praia com uma ira destruidora. Desesperado, vejo uma moça com os cabelos cobertos por um véu marrom tentando subir as pedras, entretanto sua roupa longa a impede de fazê-lo. Com pouco esforço, consigo alcançá-la. Mas é tarde! A onda com sua fúria indescritível nos arremessa contra o rochedo.
E eu acordei, mas não apavorado como quem tem um pesadelo, era como se eu apenas recordasse de um acontecimento de um passado remoto. Afinal, aquilo fora um sonho, não um pesadelo.
Durante os dias que se seguiram, eu não conseguia me livrar da imagem daquela moça. Seu rosto moreno e olhos assustados, no momento em que a peguei nos braços, fitaram meu rosto com um ar de gratidão e isso me abalou os nervos. Aquele rosto não me era estranho, por esse motivo eu o busquei em todas as pessoas adultas que cruzavam o meu caminho, até que cansei e voltei a ser criança. Passados alguns meses não me lembrava mais do sonho.
Não posso afirmar com precisão quanto tempo, mas um ano depois, aproximadamente, o sonho se repetiu. Era o mês de setembro. Depois eu me perguntaria se tinha algo a ver com o mês do meu aniversário, outubro. O certo é que nesse ano e nos outros que viriam o sonho me vinha sempre no mês de setembro. Não era o mesmo sonho ipse image, mas era parecido. Às vezes eu penso ser o mesmo sonho apenas com algumas alterações da minha imaginação, como se eu quisesse refazê-lo para adequá-lo a uma situação contemporânea.
Dessa feita eu não estou na praia, e sim no mar, no entanto o ambiente é o mesmo, a cor do céu, a tez escura das rochas e o verde da água. Eu estou insulado numa pedra, pescando. A minha fisionomia é a mesma da vez anterior. Minha pele escura, curtida pelo sol não contrasta com meus cabelos da mesma cor. Da vez anterior eu não lembrava de meus sentimentos, mas agora eu os tenho bem claros, meus sentidos estão alerta como se meu espírito captasse algo de anormal por acontecer, ou se estivesse ansioso por algo prestes a se realizar. Assim eu ouço o rugido do leão enfurecido, é a onda gigante que desponta no horizonte. Como da outra, vez viro-me para a praia e vejo pessoas correndo, dirijo-me com fortes braçadas até a areia e lá consigo salvar as três crianças, mas meu pensamento está na mulher que eu pretendo desesperadamente tirar do perigo. Desta vez salto para a praia numa busca quase insana daquela minha protegida, vejo-a correndo para mim de braços abertos, mas antes que a abrace a onda nos atinge novamente, sinto, então, uma dor profunda no peito, mas não sei se é dor física ou se é meu coração que dói por falhar novamente na minha missão.
E mais uma vez, como uma imagem de tevê é cortada quando há falta de energia, o sonho se apagou. Eu acordei.
Novamente minha curta existência se transformou numa busca daquele rosto, até que a infância e tudo que a compõem me chamaram novamente à vadiagem, as imagens daquele sonho tornaram-se latentes.






NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...