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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

PESADELO DE CONSUMO

Dona Isabelle era um misto de nervosa e constrangida, pois no fundo sentia-se humilhada. Não conseguia ainda acreditar que estivesse ali. As pessoas olhavam-na aparentemente com curiosidade, mas na verdade estavam solidárias com seu sofrimento, uma vez que passavam pelo mesmo problema. Só na cabeça dela era que havia aquele desprezo.
               Após o orador falar um pouco sobre a situação de cada um, sobre os avanços de uns e os retrocessos de outros, Dona Isabelle foi convidada a falar. Ela olhou para todos e começou a contar sua história, a princípio meio trêmula, mas pouco tempo depois já estava à vontade...
               — Eu não sei bem quando isso começou. Talvez ainda na minha infância, ou na juventude. Só sei que aos poucos fui perdendo o controle. Lembro-me bem que quando ainda era adolescente eu ficava muito triste quando minha mãe não podia comprar algo que eu via na vitrine de uma loja. Causava-me isso um desânimo tão grande que minha mãe pensava que eu estava doente, e até eu mesma achava isso. Certa vez uma colega de escola me apresentou um estojozinho de botar canetas, novo, que a mãe lhe havia dado. Ela apresentou o objeto para todo mundo. Eu senti uma inveja tão grande, uma vontade de ter um igual... Quando cheguei em casa, logo depois do almoço fui lavar a louça, antes mesmo de minha mãe mandar. Assim que terminei, fui fazer as atividades da escola. Era assim que eu agia quando queria pedir algo à minha mãe. Logo ela desconfiou e me perguntou o que eu tinha. Sorri meio amarelo e lhe falei sobre o estojo da Laura. Minha mãe olhou bem para mim e me disse, “mas eu comprei um novo não faz um mês!”, ao que aleguei que já estava meio puído e já sem graça. Minha mãe riu de mim. Isso me deixou muito triste e chateada. E no meu íntimo prometi que um dia compraria tudo que eu quisesse.
               Logo que terminei o ensino médio fui procurar emprego. Meu sonho infantil de um dia me formar em Medicina foi para o espaço, pois me guiava o gosto pelas compras. Quando recebi meu primeiro salário, fiz uma farra. Passei num “shopinzinho” que tinha perto de onde eu trabalhava e arrazei. Comprei tudo que eu via, pulseiras, brincos, colares, todo tipo de bijuterias que mais tarde ficaram esquecidas no fundo da gaveta; blusinhas, coletes, xortes, saias, roupas que no mês seguinte seriam trocadas por outras... Cheguei em casa com as mãos cheias de bolsas, sem um centavo, mas com um imenso sorriso que bem retratava como eu me sentia, uma alegria incontrolável. Nem mesmo quando minha mãe me lembrou que eu ficara de pagar a  conta de luz, minimizou minha felicidade.
               E assim se deu. Durante os trinta dias eu passava nas lojas e namorava os itens que compraria no final do mês. Quando recebia meu salário adentrava esses ambientes e só saía quando não tinha mais um centavo. Nem me importavam as reclamações de minha mãe pelo fato de ter de me dar dinheiro para eu pagar o ônibus e almoçar. Entretanto não houve na minha vida alegria maior do que quando recebi meu cartão de crédito. Esperei por ele durante quase um mês, eu o gestei como uma mãe gesta um filho. Quando o segurei nas mãos não pude controlar um grito de felicidade, acho que duas lágrimas rolaram de êxtase. Nos três dias seguintes comprei. Só parei quando a moça da loja me pronunciou as palavras mais cruéis que eu podia ouvir: “não autorizada...”. Não entendia. Fiquei muito abalada e naquela noite chorei, e nos meus sonhos nadava num mar de sacolas, cheias de objetos que eu nunca ia usar.  
               Minha juventude escafedeu-se sem que eu percebesse. Não tinha amigas, amigos, namorados. Mesmo assim casei-me com um homem maravilhoso, honesto, trabalhador, fiel. Entretanto minha mania de comprar tudo que eu via aos pouco foi nos afastando, e eu não compreendia suas reclamações, até que nos separamos. Comigo ficou a casa, uma  pequena pensão e uma filha, Dienny. Agora eu tinha dois motivos por que comprar, ela e eu.  O dinheiro que adentrava nossa residência ia-se embora em artigos para minha filha. Às vezes comprava mesmo sabendo que ela não iria usar. A pensão dava para as despesas básicas e para alimentar a barriga, mas não alimentava meus sonhos de consumo, que eram insaciáveis. Tive de voltar a trabalhar para voltar a gastar. Uma vez uma amiga de trabalho que estava me visitando estranhou a quantidade de aparelhos celulares que eu tinha, expliquei rapidamente que não serviam, mas pela primeira vez refleti sobre o assunto. Eu tinha exatamente doze aparelhos que eu não utilizava. Todos em perfeito estado. O que me fazia adquiri-los era a ilusão de que um fosse diferente do outro, e todos eram exatamente iguais. Quando comprava um novo, passava umas duas horas agarrada a ele até que descobria que não havia novidades, que suas funções eram iguais, nem os jogos de um diferia do outro. Isso me causava uma angústia tão grande, um vazio tomava conta do meu ser, mas logo me alimentava a ideia de que as indústrias estavam lançando novos modelos. Minha vontade era comprar todos os modelos caros que apareciam, mas meu salário não dava e eu me contentava com os modelos mais baratos. Quando caía em minhas mãos um desses encartes com “promoções”, a avidez me tomava conta, pois eu era vítima fácil dessas ofertas. Certa vez minha amiga sem querer deixou cair um cartão da bolsa, apanhei-o e lhe entreguei. Era um cartão do plano de saúde, ela me explicou que iria levar a filha ao médico e me perguntou que plano eu pagava. Nada lhe disse. Dei o silêncio por resposta. Mas no íntimo eu ri. Como eu iria pagar algo que eu não podia ostentar, algo que deveria deixar escondido na bolsa, algo que eu não iria utilizar!
               Uma tarde, eu passeava pelo “shopping”, quando entrei numa loja de eletrodoméstico a fim de ver os aparelhos de tevê. O moço, muito gentil, me mostrou os últimos modelos e suas vantagens. Lembrei-me de que havia um aparelho na sala, um no meu quarto e outro no quarto da Dienny. Quase não ouvia as palavras do vendedor. Dentro de mim eu lutava buscando uma justificativa para comprar aquele aparelho de televisão. Até que convenci a mim mesma de que o aparelho da sala já estava fora de moda, que minha sala precisava de algo mais moderno. E assim cheguei em casa feliz. Mas a cada dia que passava a felicidade durava menos, a saciedade que eu sentia logo se ia, e logo eu precisava inventar algo para comprar. Como um bêbado eu andava por entre as vitrines em busca de algo que me desse prazer. Meu cartão de crédito estava sempre com o limite estourado, e eu dava sempre um jeitinho de acrescentar uma dívida a mais, afinal tudo era tão barato! Um celular, dez de trinta e cinco; um dvd, dez de onze e noventa; a tevê, doze de sessenta...
               Mas o golpe maior veio. Era mais ou menos meia noite. Dienny acordou aos gritos com a mão na barriga. Dizia que sentia uma dor muito grande. Fiz-lhe um chá, mas não adiantou, a dor aumentava a cada minuto. Corri para o celular para chamar alguém para me ajudar, não havia créditos. Naquele mês não sobraram os doze reais da promoção OI. Corri a casa da vizinha, cujo marido era taxista e pedi que me levasse ao hospital mais próximo que depois lhe pagaria, ele foi, mesmo desconfiado de que não receberia o preço da corrida. Parei no hospital da UNIMED. Minha filha já estava quase desmaiada e eu tinha de acordá-la de quando em vez. A moça da recepção foi logo pedindo o cartão. Quando disse que não tinha, ela balançou a cabeça negativamente. Lembrei-me do cartão de crédito. Minha filha gemia ao meu lado, branca como se não tivesse uma gota de sangue. A moça, impassível, enquanto passava o cartão, conversava com a colega do lado e ria como se nada estivesse acontecendo. Depois meneou a cabeça e me disse  “sinto muitos, mas o cartão não tinha saldo”. Tentei ainda argumentar, mas seu Gledson, me puxou e disse que iríamos ao hospital público. Dienny já não gemia, apenas arfava com certa dificuldade. Na Emergência do Gonzaguinha, a fila era grande. Tive de pegar uma senha. Estava desesperada, minha filha agonizando e as enfermeiras passavam e fingiam que nada estava acontecendo. Quando vociferei, clamando por atendimento, uma delas apenas me apontou a multidão que lá estava, também para ser atendida. Quando faltavam dois números para chegar nossa vez de ser atendidas, Dienny abriu os olhos e chamou por mim, mas sua voz já era muito fraca, e ela morreu com a cabaça nas minhas pernas, sem ser atendida.
               A dor que eu senti ninguém pode imaginar. Era uma dor de quem perdeu o bem mais precioso que Deus pode lhe dar, um filho, e a dor de quem se sente culpado por essa perda. Enquanto chorava desesperada, cercada por pessoas estranhas, toda a minha vida passava como em “flash-back”, até que desmaiei. Acordei dias depois. Minha mãe disse que eu precisava ser sedada toda vez que despertava.
               Hoje faz dois meses que aconteceu essa tragédia. Deus me deu uma nova chance de viver. De acreditar que existem muitas coisas que podem tornar uma pessoa feliz. Descobri que todas aquelas coisas que superlotam minha casa, meu guarda-roupa, minhas gavetas não valem a pena. Quando passo perto de uma loja, tenho que me controlar para não entrar. Deus me ajudou, por isso hoje eu não comprei.
                    (Professor Alves, 25/11/2010)        

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