(Ah, quanta saudade!)
Eu tinha por
volta de dez anos e uma vontade danada de ser jogador de futebol, de me tornar
uma celebridade, como Pelé, Rivelino e outros de minha época. Na verdade,
creio, o desejo mesmo era sair daquela mesmice, daquele subúrbio. Ou, quiçá, não
tinha desejo de nada. Era por mim só uma metamorfose ambulante, já que a música
de Raul Seixas com esse título já ecoava em meus ouvidos e se misturava com
muitas outras, instalando no meu tenro inconsciente um feixe de sons que se
contradiziam e se encontravam.
Naquele ano,
eu e meus comandados de rua tínhamos uma importante missão: ganhar o torneio de
futebol de pivetes que iria ocorrer no dia 7 de setembro. Era o ano de 1975, um
ano após o fracasso da seleção brasileira na Alemanha. Treinávamos e jogávamos
todo santo dia num campinho que havia na esquina, quando os grandões não vinham
tomar nosso espaço. Estávamos deveras mobilizados. Nosso time não era o melhor,
não era sequer bom, mas era o mais esforçado. Muitas vezes ficávamos até as
luzes do sol se apagarem, esperando que o campo ficasse livre para ensaiarmos
passes, chutes e defesas, no escuro.
Mas também
éramos motivo de risos, uma vez que no ano anterior perdemos logo na primeira
partida, e de goleada. Ninguém queria colaborar com nosso time, nem para o dindim
depois dos treinos sob forte sol do meio dia, aos domingos. Realmente não
tínhamos um bom time, apenas esforço. Marcílio só sabia gritar e reclamar;
Júnior Coruja passava mais tempo ajeitando os óculos do que jogando; Galera, um
negrinho parrudo, só estava no time porque era o mais forte e jurava bater em
quem o tirasse da equipe; Tim, filho do peixeiro, jogava bem, éramos nós dois
que carregávamos o time; e Ivan, nosso goleiro, tinha optado por caminhos
distorcidos e estava em fuga, tivemos, portanto, de colocar em seu posto Pedro César,
que ria e brincava, mas não entendia muito de pegar bolas. Nosso reserva (só
havia um) era Deoclécio, virou grande humorista, ainda bem que tinha essa
verve. Além do mais, tínhamos baixa estatura, éramos entanguidos, como se dizia
à época.
Os outros
meninos, que participavam desses torneios, tinham o tamanho de sua idade, batiam
na bola direitinho e eram donos do campo da rua onde moravam. Nessa época, quem
viveu-a deve lembrar, havia sempre querelas entre meninos de ruas diferentes.
Não como hoje, quando se formam gangues ou facções. À época éramos ingênuos,
porém confusãozeiros. Dávamos um dedo por boa briga. Os outros não ficavam
atrás. Assim a disputa na bola ficava mais acirrada. Mas como na nossa rua só
havia o nosso time e por não termos apoio dos adultos de lá, só nos sobrava
apupos e raiva.
Depois de conseguirmos, a muito
custo, numa lojinha de artigos baratos, comprar umas camisas verdes com o
emblema do Ceará, inscrevemos nosso time com o nome de Ceará Verde. Mais motivos
para galhofas. Entretanto estávamos e era muito felizes, pois no ano anterior
jogamos sem uniforme. Quando fomos fazer a inscrição, naquele ano, indagados
sobre o uniforme, aos afirmarmos que íamos jogar sem camisa, o responsável
colocou na ficha de inscrição: “descamisados”. Foi a primeira vez que ouvi o
termo.
No dia 7 de
setembro daquele ano, 1975, estávamos a postos, não prontos, para o torneio.
Naquela época, o 7 de setembro era um feriado bastante festejado, era o
verdadeiro dia da pátria, ou dos “patriotas” que estavam no poder. O país
inteiro se vestia de verde amarelo, com bandeiras nas mãos para festejar, pois
o que ocorria nas salas de interrogatórios das diversas polícias oficiais não
era sabido pela população comum. Talvez por isso alguns da minha idade ou mais
velhos tenham saudades da época. Parecia realmente um período de estabilidade
econômica e política. Mas não era. Por trás da faixada presidencial, a
corrupção e a tortura corriam soltas, e escondidas do cidadão comum.
Pois bem,
estávamos a postos e prontos. A primeira partida foi vencida por nós, nos
pênaltis. O outro time era ruim, e o goleiro deles pior que o nosso. Na segunda
partida, já nas quartas de final, o time que seria nosso adversário, foi
desclassificado por ter armado grande confusão. Motivo para falarmos para o
Marcílio não criar nenhuma. Já estávamos na semifinal. Os outros diziam que
estávamos com sorte, mas que dali não passaríamos. Passamos, e com méritos. Na
partida contra os garotos da rua Rio Solimões, deu uma doida no Pedro César que
ele defendeu todas as bolas perigosas chutadas contra ele, mesmo de forma
atabalhoada. E coube a mim, o craque do time, fazer de cabeça o gol da vitória.
Enquanto no pingo do meio dia esperávamos para fazer a final contra os meninos
da rua Rio Tocantins, o time da outra rua, já mencionada em outra crônica, recebemos
de um cidadão sorvetes, e de graça. Este, depois de nos entregar os gelados,
pegou na mão de cada um e disse que nós éramos bravos e por isso precisávamos
de apoio. Não entendemos bem, pois estávamos de olho no juiz, que chamava os
times para assinar a súmula. Acho que era isso. Só quando o jogo começou, foi
que percebemos que o outro lado estava desfalcado. Faltavam seu goleador e o
goleiro. Olhei em volta e os vi sentados, um com a mão no joelho e o outro com
gelo no olho. Agradeci então pela confusão arrumada pelos nossos adversários
anteriores.
Não é que a
partida foi disputadíssima! Júnior coruja retirou os óculos e, sem se preocupar
em repô-los, jogou como ninguém. Pedi para o Galera ficar sempre na frente do
nosso goleiro para rebater as bolas e fiquei no meio do campo para jogar bola
para o Tim. Nosso primeiro gol foi um passe perfeito do muro para o Tim. Quem
já participou desse tipo de torneio realizado nos campim compreendeu que “muro”
trata-se de um dos melhores armadores de um time. Pois é. Esses espaços para a
prática do futebol estão sempre situados entre dois muros, ou um muro e uma
cerca. Esse nosso era ladeado por uma cerca, da casa da Dona Maria, para onde a
bola teimava em evadir-se, e o muro da casa de seu Zé Louro. Pois foi esse muro
que deu perfeito passe para o Tim fazer o primeiro gol. Primeiro porque veio o
segundo o terceiro e o quarto. Foi goleada. Mas é bom lembrar que depois do
primeiro, os pivetes da rua Tocantins endoidaram e quiseram bater no juiz. Este
abandonou a partida e correu para casa, um adulto (aqueles dos gelados) assumiu
o apito, expulsou dois garotos do outro time, aí foi só moleza.
Mesmo assim, ou
por esse assim, fomos campeões. A alegria contaminou todos nós, demos até
entrevista para uma rádio improvisada com microfone de carne de lata. Recebemos,
da organização do torneio, cada um uma medalha. O time, além de uma taça bonitinha, ganhou um uniforme completo
de camisas da seleção brasileira. Pena que nem as medalhas, nem a taça, nem o uniforme
ficou conosco por muito tempo. O cidadão que nos havia presenteado com os
sorvetes e com as expulsões se aproximou dizendo que iria nos apoiar e que era
preciso guardar aquela conquista muito bem guardada. Informou que morava ali
próximo e que no dia seguinte viria para nos treinar. Éramos ingênuos e não
vimos maldade alguma. E nem houve, apenas nunca mais o vimos. Soube depois que
ele havia deixado na casa da namorada a conquista do “seu time de pivetes”.
Os anos
passaram e, ainda hoje vejo pessoas que só se aproximam de alguém ou de algum
grupo quando este ou aquele lhes pode dar alguma visibilidade. Satélites opacos,
que são, precisam da luz de um sol para fazer fulgurar ao mundo seu lado obnublado.
(Alves
Andrade, outubro de 2019)