LIVRO DE CRÔNICAS: A LIÇÃO FINAL

RAPUNZEL E A PROCURA DA FELICIDADE
                    A animação Enrolados da Disney, (Tangled, no original), conta uma versão bem interessante do conto Rapunzel, imortalizado pelos irmãos Grimm. Nessa película em forma de desenho animado, Rapunzel é tirada dos pais e presa pela mesma Bruxa, que, através do feitiço dos cabelos da menina, recupera a beleza da sua juventude. A menina será salva, não por um príncipe, mas por um ladrão, que fugia de seus comparsas. Esse malandro a levará num barco até às proximidades do castelo, onde o rei, uma vez por ano, sempre no aniversário da filha, Rapunzel, coloria o céu com uma infinidade de balões, no que era seguido pelos súditos.
                Durante seu cativeiro na torre em que a bruxa a pusera, uma vez por ano, Rapunzel presenciava o espetáculo dos balões. Desde então seu sonho, seu objetivo de vida, passou a ser presenciar pessoalmente o espetáculo de luzes e cores.
                Longe do claustro em que fora posta, Rapunzel e o namorado chegam ao meio do lago, de onde assistem ao maravilhoso espetáculo dos balões. Eis aí o momento que quero frisar aqui nestas poucas linhas. Após realizar seu grande objetivo de vida, a princesa exclama ao rapaz sobre seu susto por agora não ter outra coisa que fazer na vida. Ou seja, uma vez que realizou seu objetivo, seu sonho ela não tem mais razão de existir. O ladrão, que será transformado em príncipe no final da película, lhe diz então que o melhor de alcançar um objetivo é porque podemos ter novos objetivos.
                Sempre pensei que nossa vida é uma eterna busca de objetivos, e que a cada um que realizamos outros aparecem para perseguirmos. Essa é a tal felicidade: momentos felizes. E esses momentos existem quando alcançamos aquilo de que corremos atrás. Essa procura da Felicidade não pode cessar, deve estar na nossa essência, movendo nossas atitudes, plenificando-se em cada sorriso.
                Rapunzel vai encontrar seu pai e sua mãe, rei e princesa, vai casar-se com seu grande amor e ser feliz, não para sempre, mas será sempre feliz, pois virão realizações que os colocarão sempre em busca da Felicidade.
(Alves Andrade, julho de 2018)

OBJETIVOS X SONHOS

                  Me pego refletindo sobre sonhos e objetivos. Isso se deu durante a assistência a um vídeo de uma competição de patinação no gelo. O que me levou a pensar sobre o sonho não foi a graça da moça ao deslizar pela pista, com seu vestido branco e seu sorriso impune; não foi a beleza da música que a acompanhava, cuja sonoridade emudecia a plateia e fazia prender a respiração; não foram os movimentos precisos, ritmados e encantadores.
                O que me levou a refletir sobre o sonho e o objetivo é a pobreza deste. Como são pequenos os objetivos! Passar num vestibular, tornar-se médico ou professor, fazer um bom casamento. Os objetivos não levam a nada, pelo contrário, são levados por planejamentos tão pequenos quanto eles. Planejar uma profissão, um casamento, uma viagem é tão banal quanto ir ao supermercado, ou concluir um curso de mestrado.
              Mas o que me entristece e me chateia é que, hodiernamente, muitas pessoas sequer tem um objetivo. Então como ter, parir e alimentar um sonho!!! Pessoas que não têm um objetivo de vida não vivem, apenas existem. São como as baratas, que sobreviveram a todas as catástrofes que assolaram este infeliz planeta, mas cuja evolução não andou um centímetro.  A verdade triste é que nossos jovens atualmente não sabem sequer o que é isso, objetivo de vida. A preguiça mental em que os envolveram as redes sociais e, consequentemente, a falta de leitura determinou o surgimento de uma geração nada. Não fazem nada, não querem nada, não sabem nada e não leem nada. Não tem sequer um objetivo. O máximo que fazem é almejar, e isso é muito menos do que objetivar. Almejam tão pouco, uma notazinha acima de zero na escola, umas pancadas no violão e umas vozezinhas desafinadas. Seu apogeu é o sexo, banal, um orgasmozinho de nada, muitas vezes, quase moda,  com outro indivíduo do mesmo sexo, o que aumenta, creio, o vazio da imcompletude.
            Sonhar é algo sublime, da esfera espiritual. É inerente aos seres superiores, que atingiram uma completude de alma e carne, atingiram o limite entre o ser mortal e o divinal, com um passo na eternidade. Quando vejo Cristiano Ronaldo jogando, não vejo em seu semblante a busca de um objetivo, vejo-o voando, volitando sobre os mortais, superando-se e ensinando a superação. Lindo, quase robô, sem emoções, só sonho. Perfeito, soberano, deste mundo, mas não da mediocridade deste mundo, superior, da essência superior. É o mesmo sentimento que sentia quando via Airton Sena desafiar os limites da velocidade, para superar os centímetros que permitiam a ultrapassagem. Ali, era sonho que transbordava em sua realização. Quando via Hortência respirando e eliminando, de seu corpo, tudo que era físico, para atingir a perfeição no arremessar a bola em direção a sexta. Foi este o sentimento que tive quando vi a patinadora voar, alçada pela melodia e externar toda a alegria que habitava seu belo ser num sorriso encantador.
           Que Deus continue abençoando todas as pessoas deste pobre orbe. As que têm objetivos e as que ainda não se tornaram viventes. E que continue iluminando essa plêiade de sonhadores, para que possam edificar a poesia que ainda existe, para inspira os músicos que têm a mão na mão de Deus, que tem nos pés a luz divina e no riso a graça divina.
(Professor Alves; junho, de 2018)

EXPECTATIVA

             Hoje queria fazer uma breve reflexão sobre expectativa. Muitas pessoas veem a existência como se algo extraordinário fosse acontecer. Isso ocorre, por exemplo, com um adolescente quando na iminência de um passeio, uma festa ou um mero encontro extra com os amigos. Claro que esse sentimento não é privilégio dos jovens, mas das pessoas de um modo geral.
                Creio em que isso ocorra porque o ser humano é muito ansioso e acredita que as coisas boas da vida, pelo menos as que ele assim concebe, deveriam acontecer todas de uma só vez, ou que elas estão à espreita de um momento diferente para que se realizem. Ledo engano. As coisas acontecem porque precisam acontecer e não porque  queremos que ocorram. É como diz Caetano Veloso: “é incrível a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer”. Entretanto elas nos dão pistas, elas nos avisam. Precisamos apenas ficar atentos para perceber esses sinais.
                O problema da expectativa é que quando passa aquele período tão esperado e as novidades não vêm, o que aparece é a frustração, com sua leva de amigos, como a auto-estima baixa, melancolia, e às vezes, até certa impaciência para com a vida. Mas é bom lembrar que o acontecimento mais extraordinário de nossa existência já aconteceu: o nosso nascimento. Tudo o mais que acontecer conosco é apenas uma resultante deste momento maravilhoso. Valorizemos, pois, este momento e aproveitemos a oportunidade que nos foi dada de estarmos aqui, respirando sobre a Terra.
(Setembro de 2017)

SUICÍDIOS E ASSASSINATOS DE SONHOS

Todos os anos morrem no estado do Ceará cerca de 600 pessoas vítimas de suicídio, segundo dados do Jornal O Estado, de 5 de setembro deste ano. E na maioria dos casos as pessoas que tiram a própria vida são jovens. Esses números elevam nosso estado ao terceiro lugar no ranking do país. Em contrapartida, o número de assassinatos de jovens e adolescentes eleva o estado do Ceará ao primeiro lugar do país. Mas o que me trouxe às teclas foi a preocupação com outro tipo de suicídio e de assassinato: a destruição do que deveria ter sido e não é; e do que deveria ser e não foi.
                Explico. Imaginemos que o nosso estado possui uma quantidade muito grande de sonhos destruídos pela infeliz falta de coragem e/ou falta de empenho dos pais para que pudessem ser concretizados.  Os shoppings estão repletos de jovens trabalhando em lojas, lanchonetes; as ruas estão cheias de jovens carregando carrinhos de reciclagens; os sinais abarrotados de jovens vendedores de água, laranja ou coisa que o valha. Todos mortos! Um funeral de sonhos imensurável! Quantos médicos, engenheiros, juízes, jornalistas, inventores que deveriam ser e não foram. Mortos todos ainda na juventude, pela falta de empenho individual, ou pela falta de empenho dos pais. Quantos pais colocam seus filhos em grandes escolas, com mensalidades exorbitantes, certos de que a escola irá transformá-los em grandes homens e grandes mulheres. Como estão enganados. Quem transforma os filhos em engenheiros, advogados, jornalistas, escritores, inventores não são as escolas, mas os pais, com sua doação, dia após dia, incomodando e incomodados.
Aí quando chegamos à escola pública, os suicídios e assassinatos se multiplicam, pela lerda ilusão de que a escola é responsável pelos filhos. Não, a escola é responsável por desenvolver projetos pedagógicos. Quem transforma os sonhos dos filhos em realidade é a família. Quando perguntamos aos garotinhos e às garotinhas o que vão ser quando crescerem, ouvimos palavras bonitas projetadas em sonhos profissionais, todos imbuídos no desejo de crescerem e verem seus castelos grandes e fortes, sonhos realizados, mudando a família, a comunidade, a sociedade. Aí eles crescem e não dão em nada. Praticaram o suicídio do que deveriam ser, e para auxiliá-los contaram, na maioria esmagadora dos casos com o concurso dos pais e/ou dos responsáveis, homicidas de destinos!
Certa vez vi uma criança deixar uma repórter da Tevê Verdes Mares muda. A mesma fazia uma matéria sobre uma escolinha de futebol numa comunidade. O garotinho, bom de bola, foi interrogado pela repórter sobre o que queria ser quando crescesse. A repórter esperava que o garotinho dissesse que queria ser jogador de futebol, mas o mesmo respondeu-lhe peremptório: “médico”. A moça ficou sem saber o que dizer e encerou a matéria. Será que esse garoto, dentre tantos que querem ser jogador, que sonhava ser médico realizou seu sonho e se transformou em um grande doutor? Essa resposta não tenho. Mas tenho a certeza de que, como ele, muitos outros sonham com o jaleco branco e o estetoscópio, ou com a régua do engenheiro, ou com os papeis da jurisprudência, ou com o microfone da repórter.
E onde vão para todos esses profissionais? No cemitério, na vala comum dos sonhos destruídos suicidados ou assassinados. Na lápide de cada um está escrito: “aqui jaz doutor fulano de tal, morto aos 13 anos e substituído por um funcionário no balcão da exploração trabalhista, ou pela calçada da comunidade onde foi criado, latente em memórias úmidas descansando em um copo de cachaça”.
O grande estudioso do destino dos jovens brasileiros, Darcy Ribeiro, disse certa vez que a crise da educação brasileira não é uma crise, mas um projeto. Tudo muito bem urdido pelas elites e pelos governos, de esquerda ou de direita. Tudo muito bem planejado para manter a elite no poder e os pobres cada vez mais pobres, submissos aos salários irrisórios que são pagos, para que se paguem contas e nunca se abandone o destino que lhes foi traçado nas maternidades das periferias. É o eterno retorno contínuo. Filho de pedreiro pedreiro deverá ser; filho de arquiteto, sê-lo-á sempre. É que me lembrei de um episódio interessante. Enquanto aqui no Ceará, na construção do Castelão, em 1971, um filho trabalhava com o pai, este pedreiro, aquele, servente, e quarenta anos depois a mesma história se repetia; o pai pedreiro, e a filha, também. Em Belo horizonte, na reconstrução do Mineirão para a copa de 2014, um arquiteto trabalhava com o pai, que em 1971, na construção do mesmo estádio, era um dos engenheiros. Coincidência? Duvido. Nada é por acaso, tudo é planejado.
Sabemos que Darcy Ribeiro está correto quanto ao projeto urdido pelas elites de gerar  a crise na Educação. Sabemos também que os recursos destinados à Educação neste país são frágeis e podem ser retirados a qualquer instante, como o fez a ex-presidenta Dilma, ao reduzir em 8 bilhões o orçamento da Educação para 2016, inviabilizando qualquer projeto realmente social, como o Mais Educação. Mas também é verdade que os pais precisamos doar nosso tempo aos nossos filhos, incomodando-os e sendo incomodados por isso, para que seus sonhos não afundem, não sejam sepultados sob sete palmos memória abaixo, e que não se tornem, num futuro bem próximo, uma lembrança distante  e uma angústia a mais.
(Setembro de 2016)
 
INFELIZES ANOS NOVOS
Hoje acordei com uma enorme vontade de desejar feliz natal a todos os amigos, inimigos, parentes, aderentes! Pensei num monte de frases bacanas, daquelas que engrandecem o âmago e massageiam o ego, daquelas que elevam a autoestima e nos fazem acreditar que tudo é possível.
Desejar um feliz natal, com muita paz, segurança, sem ódios, sem rancores; um natal em que todos possamos sorrir com sinceridade, abraçar sem falsidade, beijar sem permissividade.
Desejar um ano feliz, sem problemas, sem constrangimentos, sem dúvidas; um ano de bons sucessos, sem barreiras que impeçam a luz divina de adentrar todos os caminhos; um ano novo sem migalhas, sem aflições, sem dívidas e sem dores.
Enfim, um natal e um ano novo diferentes, repletos de alegrias e felicidades...
Mas não posso! As pessoas estão empedernidas, transformaram em pedra o barro de que foram feitas. Barro esse que só amolece diante de uma grande tragédia, ou quando se aproxima a morte de mais um ano. Logo depois se tornam o animal de que estão vestidos. A ganância pelo poder, ainda que pobre, mesquinho, lhes domina o ano e lhes emporcalha o ânus; as fezes da hipocrisia lhes embotam as faces, e rubores de medo obnubilam os desesperos; o perdão desaparece de seus olhos e só a intriga lhes rega o sangue.  Por isso saem durante o próximo ano atropelando-se e atropelando; desistindo do que se propuseram e xingando os dias que não passam, porque só passando as esperanças perdidas se nutrem, para pedir um ano melhor.
Por isso é ao ano que chega,  tataraneto de outros que se foram cabisbaixos, xingados e humilhados, cujas mortes desde cedo, pelos homens que não chegaram, foram sugeridas e carregaram consigo o enorme peso da inépcia humana...  É a esse bebê, que nascerá daqui a alguns dias, a quem desidero que a luz divina realmente caia sobre todas as pessoas e que elas possam se esforçar para conseguir seus intentos; que o sol, o qual brilhará no primeiro dia dessa criança, brilhe nos ombros e clareie a face da humanidade para que o ódio se desvaneça, que os egos cedam ao império da bom senso. Quero desejar ao ano vindouro que as pessoas, sendo mais de Deus e menos do mau, sejam corretas nas suas atitudes, pois só assim  quererão que o tempo passe devagarinho, ficando, para que as rosas tenham seu tempo, que as frutas amadureçam, que a chuva caia, sem ser amaldiçoada, que o sol encandeça, sem ser molestado por palavras vãs. Quero desejar ao ano nascente toda felicidade do mundo, que possa nascer, crescer e findar, sorridente, sem as úlceras dolorosas que a maldição das pessoas provocou aos seus antecessores.
(Dezembro de 2016)

 PARA VICTOR HUGO NO SEU ANIVERSÁRIO DE 15 ANOS

Que homem pode dizer que o nascimento do filho não é sua grande realização? Acredito que só aqueles que não conviveram com seus frutos, pois ver o filho nascer é a maior de todas as realizações. Ver aquele pequeno ser em seus braços, ensinar-lhe os primeiros passos, as primeiras palavras, as primeiras coisinhas.
Que homem pode dizer que não há felicidade de ver seu filho completar quinze anos? Creio que nenhum, a não ser aquele que não foi ou não se esforçou para ser pai de verdade. Hoje meu filho, Victor Hugo faz 15 anos, e trata-se de um momento ímpar. É praticamente o momento em que o entregamos de vez à vida. Ciente de que tudo aquilo que eu e sua mãe lhe orientamos servirá de base para sua conduta na sociedade. É como vê-lo nascer de novo, agora grande, com a voz já grossa e as formas (quase) definidas.
Mas vou-lhe pedir desculpas, Victor, porque é como se nascesse de novo, pequeno. Meu bebê, nosso bebê, do qual precisamos ainda cuidar, como de uma planta que precisa ser regada com muito amor, para que suas folhas, seu caule e suas flores possam ainda se desenvolver.
Queria, portanto, dizer-lhe o quanto o amo, o quanto quero ver você feliz. Até já conversamos sobre isso. “A felicidade é como uma borboleta. Quando corremos atrás dela, ela foge de nós, mas se a esperamos no cumprimento do dever, logo ela vem pousar em nosso ombro”. Se tivesse ainda quatro anos, você perguntaria “e que deveres são esses, papai”. E eu lhe respondo: Fazermos aquilo que devemos fazer, amar as pessoas como elas são, fazer amigos sempre, pois como disse Chapplin “não existem estranhos, o que há são amigos que não nos foram apresentados”. Nunca discriminar nada nem ninguém, pois se tudo no mundo é criação de Deus, tudo precisa ser respeitado. Mas a principal fórmula da felicidade encontra-se no maior avatar que a humanidade já possuiu: Jesus Cristo. Ele é o modelo o qual devemos buscar, apesar de sabermos que essa envergadura moral jamais será por nós alcançada. Mas podemos repetir-lhes alguns gestos. A caridade para com os homens, a caridade para com os animais, a caridade para com nós mesmos.

É assim, filho, seu pai quando começa a escrever não tem mais paradeiro. Vou parar então por aqui, desejando tudo de bom mais alguma coisa que possa haver nessa vida para você. Que você compreenda a responsabilidade do que é ter QUINZE  e a responsabilidade de se tornar homem.
(Fevereiro de 2016)

CONTO DE RESIGNAÇÃO
Luz que me ilumina o caminho e que me ajuda a seguir
Sol que brilha à noite e a qualquer hora Me fazendo sorrir
Claridade, fonte de amor que me acalma e seduz
                                             Essa luz, Só pode ser Jesus!
(Roberto Carlos)

            Dona Maria José era uma dessas senhoras sofridas. Miúda e com os ombros meio curvados, que indicavam seus dias de dureza. Casada com um homem da mesma estirpe, trabalhador sofrido, tinham cinco filhos, três homens e duas mulheres, que vieram como os degraus de uma escada, um atrás do outro. Durante aqueles primeiros vinte anos de vida conjugal, nunca reclamaram das agruras da vida. Dona Mazé, sempre sorrindo, nunca destilou seus momentos de penúria. Católica, era na igreja que, de joelhos, contava seus dias a Deus, como se este não soubesse. Agradecia pela sina, perceptiva que ali estava seu degrau de evolução. Certa vez uma vizinha menos discreta perguntou sobre seu sorriso franco e sua disposição para servir ao próximo. Sem desmanchar o riso dos lábios, inquiriu à outra o que deveria fazer, chorar, se lamuriar e para arrematar:
            – Quem chora, minha filha, baixa a cabeça, verga à terra e perde a coragem de enfrentar os dias que ainda vêm.
            Mas o que ela não sabia era que ainda viriam dias mais nublados, com chinfras de tempestade. Em 1989 seu Chico faleceu subitamente. Era hemofílico o homem. Numa dessas transfusões desastradas a encargo dos hemocentros contraiu micróbios que o mataram de repente. Consternação da família, consternação dos amigos e vizinhos. Dona Mazé com seu xale enxovalhado, seu terço na mão despediu-se do companheiro sem lágrima. Tinha preocupação com o futuro, ele urge, é eterna tormenta. Não para ela, que mesmo conhecendo os improvisos do tempo, sabia que a marcha é árdua e precisa ser retomada.
            A vida se ajeitou. Seu Chico era funcionário público, e a pensão mirrada ainda  dava para a família, agora aumentada pela chegada do neto, sem genro. A filha mais nova, com apenas 15 anos, se enrabichara por um homem casado, que a iludira com a promessa de deixar família. Ficou assim. O homem sumiu com família e tudo. Abandonada, a menina com o filho se ajeitaram no quarto de casal, enquanto Dona Mazé foi dormir no corredor. No outro quarto dormia a Vera, que se preparava para ingressar na faculdade e precisava de um pouco de privacidade. Na sala, os três rapazes, dos quais apenas o mais velho trabalhava, de empacotador, dividiam um beliche e um lugar no sofá. Às cinco da manhã, aquela mulher com seu sorriso costumeiro era a primeira a sair da mercearia com as mãos ocupadas de pão e outros itens com que a família manteria o corpo de pé.
            No terceiro ano desta história, um fato novo veio sacudir os ossos magros da nossa amiga: o diagnóstico de soropositivopara HIV. Os três filhos, também hemofílicos, estavam com o vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida. Durante toda sua vida os rapazes fizeram transfusões. E mesmo pela ameaça da AIDS, arrombando as portas dos lares brasileiros, entrando por todos os lados, os hemocentros ainda transfundiam sangue sem a devida cautela. Henfil já morrera, e seu irmão Betinho já sabia ser soropositivo, mas os cuidados só viriam na década de 90. O diagnóstico dos rapazes viera no mesmo mês em que a namorada de Júnior, o mais velho, recebera a notícia da gravidez. O rapaz enlouquecera. Logo agora que acabava de receber a promoção no supermercado onde trabalhava. As noites naquela casa eram de sofrimento, de dor. Inconformado, o futuro pai só dormia quando sua mãe lhe dava um calmante. A doença cruel e o desespero o debilitaram rapidamente. Nós, da vizinhança, só soubemos do desastre pouco antes de sua morte, poucos dias antes do nascimento da filha. Dona Mazé mais uma vez segurou com altivez aquela barra pesada que Deus lhe dera, não dava para lamentar, a vida seguia, com dois filhos para tratar. Para sorte, a netinha deu negativo.
            Mas os infortúnios se seguiram. Felipe, teve agravado seu estado de saúde, após um diagnóstico de leptospirose. Não sofreu, pelo menos não demonstrou. Tinha o sangue paciente e conformado da mãe. No dia que foi para hospital pela derradeira vez, sabendo que não voltaria, despediu-se dos mais próximos, com um sorriso magro e  olhos fitos no futuro. Dizem que quando chegou ao hospital não padeceu. Consolou os desolados e desencarnou ciente do dever cumprido. O choro mais uma vez não teve abrigo nos olhos de Dona Mazé. Resignada, buscou a ajuda do poder municipal. Era preciso ajeitar a casa, pois o terceiro neto já vinha a caminho. Era a mensagem de que a vida continua e ali estava ela, disposta a não se dar cabo, a não se entregar.
            E foi com os olhos, agora presos em grossas lentes, com seu sorriso magro e ombros mais curvados que deu a notícia de que a filha mais velha, a Vera, deixara a família para morar com uma dona que trabalhava de cantineira na escola municipal próxima. Eram, agora, apenas ela, o filho com hiv e dois netos, que a outra filha deixara, antes de sumir com um caminhoneiro. A nora fora embora com a netinha. Os dias que se seguiram foram de poucas mais importantes alegrias. Alexandre o único filho que lhe restara se dera bem com os novos tratamentos e sorria por Deus lhe dar mais alguns anos sobre a Terra. A casinha humilde continuou assim. Mas quem passasse por lá e desse uma ligeira olhada para seu interior, veria uma alegre luz que vinha de algum ponto que não se sabia ao certo de onde. Possivelmente essa luz nascia no seio daquela pobre mulher, para se irradiar em forma de alegria e resignação.
( Outubro de 2014)

OI, COMO VAI... SIMPLES ASSIM
Todo ser humano precisa de carinho, de atenção. Se Cristo dizia para que amássemos uns aos outros, era porque sabia dessa necessidade humana. Sempre que conhecemos alguém, e se temos um pouco de sensibilidade, notamos sua fragilidade, sua ansiedade por ser amado. Esse amor a que Cristo aludia é um sentimento simples, como a atenção dispensada a alguém, uma palavra de conforto, um aperto de mão, um “tudo bem!”, um elogio, uma validação.
            Há alguns dias, enquanto acompanhava meu filho ao treino da escolinha de futebol, fiquei observando um cidadão conversando com outro, um amigo particular, a respeito de seu cãozinho, na verdade uma cadela,  que desaparecera. Ele falava da tristeza do filho e da filha, e em seu semblante eu percebi que lhe fazia bem ser ouvido, pois além de servir de lenitivo para a sua angústia de não poder resolver esse problema  familiar,  dava-lhe o amparo de que precisava para seguir sua rotina habitual e forças para continuar essa busca.
            Acompanhei sempre esses diálogos à distância. Até que um dia o amigo não veio. Percebi que o homem procurava por ele, imaginando que estava demorando, mas que logo chegaria. De súbito, percebi que o amigo daquele homem não viria e que nele ficaria o vácuo daquela ausência. Resolvi substituí-lo. Aproximei-me do homem e abordei-o sobre se havia encontrado o animal de estimação da família. Informei-lhe que havia escutado seu diálogo há alguns dias a respeito do sumiço do animal. Perguntei-lhe sobre os filhos... O semblante do homem desconhecido se iluminou, seus olhos brilhavam de tal forma que me senti feliz. Ele estava enormemente agradecido pelo fato de eu me importar com seu sofrimento. Em poucas palavras, me pôs a par do que estava acontecendo, e no final, antes de ir embora, me agradeceu com um efusivo aperto de mão.
            Assim todos os dias que nos encontrávamos, ele me chamavas para perto de si e do amigo, que voltou aos encontros rotineiros, e  nos punha a par de como estavam as buscas. Até que um dia a angústia acabou. Ele chegou, cumprimentou o amigo, chamou-me para perto de si, abraçou primeiro o amigo, depois a mim e, enxugando uma lágrima teimosa, contou que havia encontrado a cadelinha e que a família estava novamente completa.
            Depois desse dia, o homem sempre me tratou como amigo, me cumprimenta, pergunta como está minha família, conta sobre suas coisas. Se me encontra no supermercado, vai até mim, mantém um rápido diálogo e me convida para ir a sua casa para um churrasco. Infelizmente adio esse momento por motivos vários, mas um dia o farei, pois creio em que ele faz esse convite, não apenas por cortesia, mas porque me considera de fato seu amigo.   
(Professor Alves, há alguns anos.)

 

 

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