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“Sobre toda estrada, sobre toda sala
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme!”
(Caetano Veloso)
Há alguns textos os quais tenho vontade de escrever, mas me falta competência; para outros, me falta disposição e para outros, coragem. Há alguns anos fiz um soneto sobre o tema ciúme. Queria mesmo era contar uma breve história que me aconteceu, felizmente ainda na adolescência, a respeito desse maléfico sentimento. Mas me faltou coragem. Deve ser assim, sempre que queremos escrever algo que denuncia um momento de fraqueza. O soneto não saiu como queria. Sou poeta fraco. Desculpem-me os leitores se teimo em fazer versos. A narrativa não sairá melhor, pois também não sou bom com as frases. Mas vá lá. Faço-o por descargo de consciência. Tinha eu dezessete anos e ela quinze. Era a minha primeira paixão. Primeira não, segunda. A primeira entra em uma outra narrativa a qual também não tive ainda coragem de abordar. Chamava-se Cristiane, era a mais linda garota que até então tinha namorado. Estava deveras apaixonado. Todo meu ser vivia para ela, por ela e com ela. Ficava-me difícil até as leituras com as quais passava os tempos vagos. As brechas que se formavam entre as palavras traziam-lhe o rosto lindo, alvo e sempre sorridente. Na igreja, as palavras do padre “Deus esteja sempre convosco” eram para mim e para ela, e eu quase podia sentir a presença do onipotente nos abençoando. As flores dos quintais eram por mim dedicadas a ela, que trazia dia após dia uma enfiada no vale, formado pelo relevo de sua geografia física, labirinto por onde vagavam meus sonâmbulos desejos. Era amor, ara paixão, era loucura, era a adolescência. Quem já foi ou é adolescente e amou ou está amando sabe do que estou falando. Todos os dias ia buscá-la na escola. Estudávamos à noite, mas não me lembro por que não estava indo à escola naquele tempo. Às nove e trinta já estava eu à sua espera, que só saía às dez e meia. É que não queria deixá-la esperando. Quando saía da escola, dava-me a mão e andávamos a passos lentos, cumprimentávamos pessoas conhecidas, falávamos abobrinhas, ríamos não sei de quê. Até chegarmos à sua casa, um beijo, um abraço. Eu ia para casa para sonhar que nosso namoro ia além daquilo.
Certo dia, estava na esquina conversando com uns amigos, esperando a hora sagrada, quando o Maurício chegou. Olhei apressado para o relógio, que marcava apenas oito horas e alguns minutos. Maurício era colega de sala de Cristiane, e isso me fez acender de pronto uma luz fosca. Indaguei-lhe sofregamente o que havia acontecido, ao que ele me informou que faltara luz na escola e os alunos foram liberados mais cedo.
— E a Cristiane!? Perguntei-lhe, tentando controlar minha ansiedade.
— Libriano, não sei não, da última vez que a vi ela estava conversando com o Francisco Antônio.
Aquele nome caiu na minha cabeça como se fosse uma marreta. Os olhos escureceram e o ar quase me faltou. Eles tinham namorado antes de nos conhecermos, diziam que ela o havia trocado por mim. Aquilo, longe de ser uma segurança, era o andaime em falso pelo qual minha mente me conduzia. O cara era o maior ganhão da paróquia, e ainda podia ocorrer-lhe uma ideia de desforra. Em nenhum momento pensei na idoneidade da menina. Crápula que fui! Ser abjeto, cujos sentimentos afluíam de súbito sem medidas e sem pudor. Peguei rápido a bicicleta que estava mais à mão, sem sequer pedir licença ao dono, e desenfreei para a escola, que ficava a três ou quatro quilômetros dali. Na minha mente torpe, passava a cena dela, Cristiane, nos braços do outro, rindo e corroborando com o que ele dizia: “otário”. Os nervos abalados não me permitiam ver nada, pois a luz fosca que me assolara há alguns instantes já se tornava roxa, que é a cor do ciúme. Dobrei a penúltima quadra na frente de um ônibus, que freou bruscamente, dando-me tempo para desviar. Não dei por isso. Meu espírito de porco tinha maior preocupação do que ser apenas atropelado por um ônibus. Meus olhos adiantaram-se aos metros que restavam. Não vi ninguém. A frente do colégio estava às escuras, o bar da esquina, onde costumava ficar quando chegava mais cedo para minha tarefa diária, estava vazio. A luz roxa enegreceu-se de vez, meu coração já não batia, pulava tão acelerado que o barulho dentro do peito me impediu de ouvir alguém me chamando. Era ela. Sentada numa cadeira da casa de uma colega, em frente da escola, sorria o mesmo sorriso lindo de sempre. O mesmo sorriso meu, que ela me dera um dia quando me beijou a primeira vez.
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Ela me disse que eu parecia um louco dobrando a esquina com aquela velocidade. E eu sabia disso, eu estava louco. Despediu-se da amiga e fomos para casa. Aos poucos com sua naturalidade habitual, me contou o que aconteceu, desde que faltara luz, o furdunço que se formou, a barulheira dos colegas, a ideia de ir para casa, o convite da colega para me esperar ali. Cada palavra era entrecortada por um breve sorriso. Era esse seu modo adolescente de falar. E cada sorriso eu tentava interromper com um beijo. A partir daquele dia descobri quão ruim, mal, crudelíssimo é o ciúme. Imaginem quantas pessoas já se destruíram e destruíram por culpa dele. Nunca mais tive ciúme. Aprendi a confiar nas pessoas, ou melhorei minha auto-estima.
Quanto a Cristiane, um dia chegou-me e disse que estava apaixonada pelo primo, recém-chegado a Fortaleza e que iria casar com ele. Rolaram-me lágrimas durante três ou quatro meses, disse-me que nunca mais me enamoraria de outra garota, jurei ser volúvel, curtir, curtir e curtir, até que conheci... Não vou dizer quem, isso já é outra história.
(Professor Alves, 19/04/2011)