Chamava-se Antônio Raimundo e era feio. Não, eu não sou daqueles que acham homens feios porque são homens. Para mim o belo é belo e pronto. Se vejo um homem bonito, admiro-lhe as feições e pronto. Não vejo necessidade de fazer propaganda dos outros até porque todos os homens em potencial são meus concorrentes. E não fazemos comercial da concorrência. Se digo que Antônio Raimundo era feio, é porque era feio e acabou-se. Imagine um indivíduo muito branco, baixinho, com o rosto marcado pelas espinhas da adolescência, um nariz meio esparramado, tendo ali escanchados uns óculos, que teimavam em escorregar a todo instante, levantando-os com os músculos nasais, além doa cabelos encaracolados sempre presos à cabeça. Diga-me se um ser com essas características pode ser chamado de bonito? Apregoa-se de forma errada os versos vinicianos: “As feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental”. Digo de forma errada porque Vinícius diz: “As MUITO feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental”. Faço essa correção para lembrar que não existe à priori feiura. A não ser quando ela existe com exagero. E, volto a afirmar, Antônio Raimundo era feio.
Ela, por sua vez, chamava-se Rosa, a quem todos diziam com os olhos doces: Rosinha. Era a mais linda entre as funcionárias daquele estabelecimento, onde trabalhava antônio Raimundo. Loirinha, com cabelinhos de anjo, que lhe caíam pelos ombros, brilhando feito ouro. O semblante dava prazer, pois estava sempre prestes a desabar num sorriso, que lhe deixavam os lábios, nem finos nem grossos, mais meigos ainda, com suas fileiras de dentes ebúrneos, simétricas. Quando passava, todos se inebriavam com o olor que todos seu ser emanava, todos tornavam-se maias simpáticos pela candura de seus gestos e seus passos de giz. Até a concorrência abria espaço para que passasse. Todos eram, claro, apaixonados por ela. Os homens casados e os já de idade, também. Eram gratos pela natureza ter-lhes dado o prazer de conhecer tal criatura. Os jovens queriam namorá-la, noivá-la e no futuro desposá-la. Cada um deles, com seus galanteios, procuravam uma forma de conquistá-la, com frases prontas e muitas vezes até exageradas. Enviando-lhes bilhetinhos, pois há época não havia celular, não haviam ainda inventado os torpedos modernos. Computador ainda era bicho de assombro. Quando se falavam neles, para o futuro próximo, era com temor de que lhes roubassem o emprego. A todas as cantadas, Rosinha desdenhava com um lindo sorriso, que deixava o paquerador cheio de esperança.
Antônio Raimundo também era enamorado da bela moça e com ela decidira casar-se. Era sua primeira paixão. Diferente dos colegas, seu amor era realidade. Não queria apenas namorar uma moça bonita para exibir aos colegas. Apesar de trazer esses sentimentos meio encubados, logo a plateia se deliciou em sorrisos miúdos: “O cara não se enxerga!” A própria pequena, quando se deu conta que os sorrisos de Antônio Raimundo tinham intenções superiores, fez essa mesma reflexão: “Será que esse rapaz não tem espelho em casa!?” Os outros desistiram, pois seus afetos eram meros fogos de palha. Antônio Raimundo não. Seu amor era pura convicção.
Antônio Raimundo era um dos arquivistas, profissão substituída hoje por clic no computador; e Rosa, uma das atendentes do crediário da empresa onde trabalhávamos. Quando chegava um cliente, as meninas colocavam seu nome junto ao dele num formulário e o colocavam dentro de uma caixa que tinha comunicação com a sala dos arquivos. Um de nós pegava o formulário e buscava entre as trinta e cinco mil fichas a do cliente que estava sendo atendido. Antônio Raimundo estava sempre junto à caixa, mas só buscava aquelas com o nome de Rosa. Assim os clientes da moça eram os primeiros a serem atendidos, e ela ia sobressaindo as demais. Esse era apenas um dos modus operandi do nosso amigo. Claro que Rosa sabia dessas atitudes do colega, porque apesar de sua discrição Antônio sempre deixava escapar que estava privilegiando os clientes dela. Antônio Raimundo era benquisto por todos, e, mesmo sabendo dessas suas artimanhas, todos fazíamos vista grossa. Muito embora os risinhos às escondidas permanecessem. Outra forma de galanteio que ele utilizava era dar um jeitinho de sempre estar onde ela estivesse. Na lanchonete, no restaurante na hora do almoço, na biblioteca do Sesc. Outrossim, antônio Raimundo nunca deixava de trazer para ela uma flor, um bombom tipo Sonho de Valsa, um verso escrito a lápis num papel qualquer. Sem ser intruso, aos poucos ia fazendo parte do círculo mais próximo de Rosa. Deixara de ser apenas um colega para ser promovido à condição de melhor amigo. No dia de seu aniversário, Nosso Don Juan convidou a todos para participar de um almoço na sua casa. Para espanto geral, havia uma faixa na entrada homenageando a beleza de Rosinha, sem mencionar sentimento. Quando, certa vez, ela lhe confidenciou que não tinha ainda concluído o Ensino Médio, Segundo Grau à época, ele se encarregou de convencê-la a prestar exame de suplência geral da Secretaria de Educação (supletivo), para obter o título de concludente desse nível. Não só o fez, mas também, nos dias das provas, lá estava ao seu lado, dando-lhe força e resumindo os conteúdos do dia.
Essa foi a última vez em que os vi. Saí da empresa, fui trabalhar em outra cidade. Três anos depois, retornei a Fortaleza. Passeando um dia na Ponte dos Ingleses, vejo um casal muito juntinho empurrando um carrinho de bebê. Era Antônio Raimundo e Rosinha. Haviam-se casado um ano antes. Cumprimentei-os e me disseram sorridentes que ficaram tristes quando me enviaram o convite e souberam que eu estava viajando. Era uma cena linda, os três formavam a célula máter da sociedade. E era a prova de que o amor é uma caixinha de surpresa e que se juntarmos esse sentimento à persistência conseguiremos mais do que apenas viver.
P.S. Há mais ou menos cinco anos, encontrei Antônio Raimundo no Shopping, estava só. Quando lhe indaguei sobre a família, respondeu sorrindo que estava grande: ele, Rosa mais uma escada de quatro filhos.
(Professor Alves, 05/05/2011)