As
velas do Mucuripe não vão sair para pescar. Pelo menos hoje. A comunidade pesqueira
está de luto. Os barcos, parados, tremem ao vento suas velas, num último adeus.
Morreu seu Pedro. Não. Não morreu. Foi levado em sua última viagem pelo mar
infinito, que guarda a carne dos peixes e dos pescadores, assim como o sussurro
dos amantes e a solidão do poeta.
Seu
Pedro era o último dos pescadores de sua época. Época em que o mar e a praia só
a eles pertenciam, sem a especulação imobiliária, sem essa invasão imobiliária.
Época em que o farol velho, o olho do mar, acenava para os barcos, chamando-os
à praia, indicando-lhes o rumo. Quando os coqueiros balançavam ao suas palhas e
lançavam seus troncos aos céus, como uma torre de babel, lenho a lenho. E a
areia branca, quase virgem, ainda sentia o roçar dos pés níveos de Iracema. As
casas, calhadas de branco, se estendiam nas ruas com a simplicidade de sua riqueza,
sem luz elétrica, sem geladeiras, mas com a alegria das histórias contadas à luz da lua. Quem
precisava dos neons? As crianças corriam pela praia, escondiam-se nos barcos,
namoravam na areia, e seus risos e sussurros ecoavam pelo céu negro sarapintado
de ouro. No recôndito das águas, os mistérios saiam no lombo dos peixes
pequenos e grandes e se transformavam em lendas, que os pescadores reproduziam
nas portas das casas, entre a fumaça do cigarro de palha e a dose de cachaça,
na cozinha o peixe chiava na caçarola ou se embebia na panela, sobre o fogo do
fogão a lenha. No silêncio, ouvia-se a
música dos ventos “vida, vento, leva-me”.
Seu
Pedro conhecia tudo aquilo desde pequenino, quando na jangada do pai já saía
mar a dentro. Conhecia o destino dos pescadores, quando a velhice chegava cedo,
quando a carne secava nos ossos, enrijecendo as feições. Quando o corpo sumia
nos mares e eram encontrados rasgados pelos peixes. Ou simplesmente se
encantavam, sequestrados pela mãe das águas. Conhecia as lágrimas que escorriam
dos olhos dos órfãos, das viúvas e das noivas, que ficavam por casar. Ó mar,
quanto do teu sal são lágrimas de saudade! Crescera ali e vira os seus indo um
a um, inclusive os filhos, dor maior!
Mas
a maior dor era ver seu povo expulso da praia. Os proprietários da terra
precisavam se espalhar como cobreiro, até matar o organismo. E eles, os
verdadeiros donos, tinham que sair e subir a ladeira. Formar ruelas e casebres,
onde hoje descansa o corpo de seu Pedro. Dona Raimunda ao pé do esquife não
chorava, apesar dos olhos chorosos. Lembrava de quando o conhecera, há quarenta
anos. Ele viúvo, ela moçoila, apaixonada por suas histórias, por ele desde
sempre. Lembrava de que, quando ele ia ao mar, gostava de lembrar os versos do
poeta cearense Belchior: “As velas do Mucuripe vão sair para pescar...” e ele
sempre confidenciava ela que no meio da solidão do mar, ao ver uma estrela,
cantava baixinho “aquela estrela é dela. Vida, vento, vela, leva-me daqui”!
Mas
hoje as velas do Mucuripe não vão sair para pescar. A casa de Seu Pedro está
cheia dos pescadores, dentro e fora, fumando, bebendo, rezando. Lembrando das
história reais e imaginárias que seu Pedro contava, ele, o último pescador de
sua época.
(Alves Andrade, janeiro de 2019)