domingo, 7 de março de 2021

A MORTE DO PESCADOR

 

A MORTE DO PESCADOR

As velas do Mucuripe não vão sair para pescar. Pelo menos hoje. A comunidade pesqueira está de luto. Os barcos, parados, tremem ao vento suas velas, num último adeus. Morreu seu Pedro. Não. Não morreu. Foi levado em sua última viagem pelo mar infinito, que guarda a carne dos peixes e dos pescadores, assim como o sussurro dos amantes e a solidão do poeta.

Seu Pedro era o último dos pescadores de sua época. Época em que o mar e a praia só a eles pertenciam, sem a especulação imobiliária, sem essa invasão imobiliária. Época em que o farol velho, o olho do mar, acenava para os barcos, chamando-os à praia, indicando-lhes o rumo. Quando os coqueiros balançavam ao suas palhas e lançavam seus troncos aos céus, como uma torre de babel, lenho a lenho. E a areia branca, quase virgem, ainda sentia o roçar dos pés níveos de Iracema. As casas, caiadas, se estendiam nas ruas com a simplicidade de sua riqueza, sem luz elétrica, sem geladeiras, mas com a alegria das histórias contadas à luz da lua. Quem precisava dos neons? As crianças corriam pela praia, escondiam-se nos barcos, namoravam na areia, e seus risos e sussurros ecoavam pelo céu negro sarapintado de ouro. No recôndito das águas, os mistérios saiam no lombo dos peixes pequenos e grandes e se transformavam em lendas, que os pescadores reproduziam nas portas das casas, entre a fumaça do cigarro de palha e a dose de cachaça, na cozinha o peixe chiava na caçarola ou se embebia na panela, sobre o fogo do fogão a lenha. No silêncio, ouvia-se a música dos ventos “vida, vento, leva-me”.

Seu Pedro conhecia tudo aquilo desde pequenino, quando na jangada do pai já saía mar a dentro. Conhecia o destino dos pescadores, quando a velhice chegava cedo, quando a carne secava nos ossos, enrijecendo as feições. Quando o corpo sumia nos mares e eram encontrados rasgados pelos cardumes. Ou simplesmente se encantavam, sequestrados pela mãe das águas. Conhecia as lágrimas que escorriam dos olhos dos órfãos, das viúvas e das noivas, que ficavam por casar. Ó mar, quanto do teu sal são lágrimas de saudade! Crescera ali e vira os seus indo um a um, inclusive os filhos, dor maior!

Mas a dor maior era ver seu povo expulso da praia. Os novos proprietários da terra precisavam espalhar cimento e pedra, que, como o cobreiro, que se estende até matar o organismo, se estenderam até matar a paisagem. E eles, os verdadeiros donos, tiveram de sair e subir a ladeira. Formar ruelas e casebres, onde hoje descansa o corpo de seu Pedro, numa mesa, rodeado por flores. Dona Raimunda ao pé do esquife não chora, apesar dos olhos chorosos. Lembra de quando o conhecera, há quarenta anos. Ele viúvo, ela moçoila, apaixonada por suas histórias, por ele desde sempre. Lembra que, quando ele ia ao mar, gostava de cantar os versos do poeta cearense Belchior: “As velas do Mucuripe vão sair para pescar...” e ele sempre confidenciava a ela que no meio da solidão do mar, ao ver uma estrela, cantava baixinho “aquela estrela é dela. Vida, vento, vela, leva-me daqui”!

Mas hoje as velas do Mucuripe não vão sair para pescar. A casa de Seu Pedro está cheia dos pescadores, dentro e fora, fumando, bebendo, rezando. Lembrando das histórias reais e imaginárias que seu Pedro contava, ele, o último pescador de sua época.

(Alves Andrade, janeiro de 2019)

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