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sexta-feira, 21 de março de 2014

O QUE HÁ NUM BEIJO?



 

A letra da música, tema da novela Baila Comigo, indagava  “What’s in a kiss?”. Em tradução, deve-se ler “o que há num beijo?” ou “O que tem de mais num beijo?”.  Realmente, aparentemente não há nada de mais em uma bicota ou selinho, como queria a dinossáurica Hebe Camargo. Entretanto não é bem o que vemos nove meses após o fim do carnaval, regado a muita bebida e a muito “axé music”, com Ivete e Bel exagerando nas receitas de curtição:
“Quando você passa eu sinto seu cheiro
               Aguça meu faro e disparo em sua caça, iaiá
 (...)
Me abraça e me beija
                Me chama de meu amor
                Me abraça e deseja
               Vem mostrar pra mim o seu calor”


               
                Não vim aqui falar de beijos, tampouco de ivetes e bels. Mas é que observando algumas atitudes, aparentemente inofensivas, me lembrei da música de O’Sullivan e me arremeti aos temas carnavalescos e, por que não dizer, animalescos. Recentemente estava numa fila de um desses postos da Caixa espalhados pelo país, nas casas lotéricas, quando vi uma senhora se aproximar de outra que estava bem encaminhada e solicitar-lhe que  lhe pagasse as contas. A outra sem nenhuma cerimônia aceitou a missão. E as pessoas que estavam na fila também não se importaram. Uma moça na minha frente fez, silenciosa, um comentário de desagravo. Ao que eu retruquei que ela, a senhora-fura-fila, não tinha nenhuma noção do que estava fazendo. Ela simplesmente acha normal. Não vê ali nenhuma transgressão à ética social.
E continuei com minhas reflexões, enquanto presenciava  mais uma ocorrência do gênero. Desta feita uma senhora antes de adentrar o supermercado, colado a essa agência,  deixou a mãe, possivelmente octogenária, caquética, na fila preferencial. Quando voltou, assumiu o lugar da velhinha, deixando-a confortavelmente sentada num banco de madeira, do lado de fora. Quando estava na boca do caixa, chamou a mãe para não ser contrária aos bons procedimentos. Ouvi alguns outros comentários contra aquela filha desalmada, mas só quando a mesma se retirou. Desta vez fiquei calado.
Mas a surpresa maior estava por vir. Depois de quarenta minutos de fila, sem nenhum estresse, pois acho a fila a única instituição realmente democrática, pois, mais do que a morte, ela nos nivela, sem nenhuma discriminação, não obstante essa democracia ser constantemente vilipendiada, como a outra, a falsa. Pois bem, após quarenta minutos, estou eu na boca do caixa. E foi aí que me veio a maior decepção que um educador pode ter. Uma colega de profissão, supostamente minha amiga, aparece-me como um fantasma, com as mãos cheias de contas, após um longo suspiro me, entrega a carga, ou melhor, tenta me entregar dizendo “que bom encontrar você aqui”. Dei uma rápida olhada para trás, vi que a fila estava bem maior do que quando cheguei, olhei-a meio atordoado, mas tive coragem e lhe disse “vamos respeitar as pessoas que estão na fila”. A mesma ficou lívida, sua face quase se afoga num esgar de surpresa. Virou o rosto e sem se despedir, foi para o final da fila, sem me deixar externar a única saída para a situação que era oferecer-lhe o meu lugar.
Próximo ao condomínio onde moro há uma padaria a qual frequento esporadicamente. Sempre que lá me encontro, sempre pela manhã, vejo policiais do (quase extinto) Ronda do quarteirão merendando uma merenda nada frugal. Após o lanchinho eles saem sem pagar. Qualquer um infeliz que por ventura esteja lendo esta crônica, com certeza, já deve ter presenciado cenas desse tipo em padarias, lanchonetes, churrascarias, restaurantes. Os donos dos estabelecimentos não reclamam, pois recebem uma “proteçãozinha” extra. Certa vez em um supermercado, vi um cidadão, com o perdão da palavra, tomando calmamente uma cerveja no interior do estabelecimento. Nada de mais, pois muitos o fazem, e os gerentes também não se importam. É uma forma de manter o cliente no interior da loja por mais tempo.  O caso é que o homem se dirigiu ao balcão de frios, pediu uma fatia de presunto para provar. Após saboreá-lo, deixou discretamente o vasilhame de cerveja, vazio, sobre embalagens de salsichas e saiu tranquilamente. Ele deve ter pensado consigo: “como eu sou esperto, bebi e ainda tirei o gosto”, e deve ter ajuntado a esse pensamento o seguinte: “os supermercados são ricos, tiram de nós, mas eu tiro deles”. Santa ignorância, Batman!
Sei que todos sabem, mas eu vou lembrar: todas essas atitudes são atos de corrupção, tão graves quanto desviar 40 milhões de dólares da Previdência Social, como pagar aos deputados para que esses beneficiem o governo.   Então não adianta sairmos por aí falando mal dos políticos, das autoridades corruptas, que nos envergonham com mensalões e mensalinhos, se praticamos os mesmos atos que corrompem a ética de convivência. Que país estamos querendo construir, que cidadãos queremos formar em nossos alunos e em nossos filhos? Acho que essa deveria ser a pergunta que devemos fazer antes de furar uma fila, comer um bombom escondido em um supermercado ou desviarmos a verba da merenda escolar.

(Professor Alves, março de 2014)