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terça-feira, 22 de outubro de 2019

TORNEIO NO CAMPIM



(Ah, quanta saudade!)

Eu tinha por volta de dez anos e uma vontade danada de ser jogador de futebol, de me tornar uma celebridade, como Pelé, Rivelino e outros de minha época. Na verdade, creio, o desejo mesmo era sair daquela mesmice, daquele subúrbio. Ou, quiçá, não tinha desejo de nada. Era por mim só uma metamorfose ambulante, já que a música de Raul Seixas com esse título já ecoava em meus ouvidos e se misturava com muitas outras, instalando no meu tenro inconsciente um feixe de sons que se contradiziam e se encontravam.
Naquele ano, eu e meus comandados de rua tínhamos uma importante missão: ganhar o torneio de futebol de pivetes que iria ocorrer no dia 7 de setembro. Era o ano de 1975, um ano após o fracasso da seleção brasileira na Alemanha. Treinávamos e jogávamos todo santo dia num campinho que havia na esquina, quando os grandões não vinham tomar nosso espaço. Estávamos deveras mobilizados. Nosso time não era o melhor, não era sequer bom, mas era o mais esforçado. Muitas vezes ficávamos até as luzes do sol se apagarem, esperando que o campo ficasse livre para ensaiarmos passes, chutes e defesas, no escuro.
Mas também éramos motivo de risos, uma vez que no ano anterior perdemos logo na primeira partida, e de goleada. Ninguém queria colaborar com nosso time, nem para o dindim depois dos treinos sob forte sol do meio dia, aos domingos. Realmente não tínhamos um bom time, apenas esforço. Marcílio só sabia gritar e reclamar; Júnior Coruja passava mais tempo ajeitando os óculos do que jogando; Galera, um negrinho parrudo, só estava no time porque era o mais forte e jurava bater em quem o tirasse da equipe; Tim, filho do peixeiro, jogava bem, éramos nós dois que carregávamos o time; e Ivan, nosso goleiro, tinha optado por caminhos distorcidos e estava em fuga, tivemos, portanto, de colocar em seu posto Pedro César, que ria e brincava, mas não entendia muito de pegar bolas. Nosso reserva (só havia um) era Deoclécio, virou grande humorista, ainda bem que tinha essa verve. Além do mais, tínhamos baixa estatura, éramos entanguidos, como se dizia à época.
Os outros meninos, que participavam desses torneios, tinham o tamanho de sua idade, batiam na bola direitinho e eram donos do campo da rua onde moravam. Nessa época, quem viveu-a deve lembrar, havia sempre querelas entre meninos de ruas diferentes. Não como hoje, quando se formam gangues ou facções. À época éramos ingênuos, porém confusãozeiros. Dávamos um dedo por boa briga. Os outros não ficavam atrás. Assim a disputa na bola ficava mais acirrada. Mas como na nossa rua só havia o nosso time e por não termos apoio dos adultos de lá, só nos sobrava apupos e raiva.
Depois de conseguirmos, a muito custo, numa lojinha de artigos baratos, comprar umas camisas verdes com o emblema do Ceará, inscrevemos nosso time com o nome de Ceará Verde. Mais motivos para galhofas. Entretanto estávamos e era muito felizes, pois no ano anterior jogamos sem uniforme. Quando fomos fazer a inscrição, naquele ano, indagados sobre o uniforme, aos afirmarmos que íamos jogar sem camisa, o responsável colocou na ficha de inscrição: “descamisados”. Foi a primeira vez que ouvi o termo.
No dia 7 de setembro daquele ano, 1975, estávamos a postos, não prontos, para o torneio. Naquela época, o 7 de setembro era um feriado bastante festejado, era o verdadeiro dia da pátria, ou dos “patriotas” que estavam no poder. O país inteiro se vestia de verde amarelo, com bandeiras nas mãos para festejar, pois o que ocorria nas salas de interrogatórios das diversas polícias oficiais não era sabido pela população comum. Talvez por isso alguns da minha idade ou mais velhos tenham saudades da época. Parecia realmente um período de estabilidade econômica e política. Mas não era. Por trás da faixada presidencial, a corrupção e a tortura corriam soltas, e escondidas do cidadão comum.
Pois bem, estávamos a postos e prontos. A primeira partida foi vencida por nós, nos pênaltis. O outro time era ruim, e o goleiro deles pior que o nosso. Na segunda partida, já nas quartas de final, o time que seria nosso adversário, foi desclassificado por ter armado grande confusão. Motivo para falarmos para o Marcílio não criar nenhuma. Já estávamos na semifinal. Os outros diziam que estávamos com sorte, mas que dali não passaríamos. Passamos, e com méritos. Na partida contra os garotos da rua Rio Solimões, deu uma doida no Pedro César que ele defendeu todas as bolas perigosas chutadas contra ele, mesmo de forma atabalhoada. E coube a mim, o craque do time, fazer de cabeça o gol da vitória. Enquanto no pingo do meio dia esperávamos para fazer a final contra os meninos da rua Rio Tocantins, o time da outra rua, já mencionada em outra crônica, recebemos de um cidadão sorvetes, e de graça. Este, depois de nos entregar os gelados, pegou na mão de cada um e disse que nós éramos bravos e por isso precisávamos de apoio. Não entendemos bem, pois estávamos de olho no juiz, que chamava os times para assinar a súmula. Acho que era isso. Só quando o jogo começou, foi que percebemos que o outro lado estava desfalcado. Faltavam seu goleador e o goleiro. Olhei em volta e os vi sentados, um com a mão no joelho e o outro com gelo no olho. Agradeci então pela confusão arrumada pelos nossos adversários anteriores.
Não é que a partida foi disputadíssima! Júnior coruja retirou os óculos e, sem se preocupar em repô-los, jogou como ninguém. Pedi para o Galera ficar sempre na frente do nosso goleiro para rebater as bolas e fiquei no meio do campo para jogar bola para o Tim. Nosso primeiro gol foi um passe perfeito do muro para o Tim. Quem já participou desse tipo de torneio realizado nos campim compreendeu que “muro” trata-se de um dos melhores armadores de um time. Pois é. Esses espaços para a prática do futebol estão sempre situados entre dois muros, ou um muro e uma cerca. Esse nosso era ladeado por uma cerca, da casa da Dona Maria, para onde a bola teimava em evadir-se, e o muro da casa de seu Zé Louro. Pois foi esse muro que deu perfeito passe para o Tim fazer o primeiro gol. Primeiro porque veio o segundo o terceiro e o quarto. Foi goleada. Mas é bom lembrar que depois do primeiro, os pivetes da rua Tocantins endoidaram e quiseram bater no juiz. Este abandonou a partida e correu para casa, um adulto (aqueles dos gelados) assumiu o apito, expulsou dois garotos do outro time, aí foi só moleza.
Mesmo assim, ou por esse assim, fomos campeões. A alegria contaminou todos nós, demos até entrevista para uma rádio improvisada com microfone de carne de lata. Recebemos, da organização do torneio, cada um uma medalha. O time,  além de  uma taça bonitinha, ganhou um uniforme completo de camisas da seleção brasileira. Pena que nem as medalhas, nem a taça, nem o uniforme ficou conosco por muito tempo. O cidadão que nos havia presenteado com os sorvetes e com as expulsões se aproximou dizendo que iria nos apoiar e que era preciso guardar aquela conquista muito bem guardada. Informou que morava ali próximo e que no dia seguinte viria para nos treinar. Éramos ingênuos e não vimos maldade alguma. E nem houve, apenas nunca mais o vimos. Soube depois que ele havia deixado na casa da namorada a conquista do “seu time de pivetes”.
Os anos passaram e, ainda hoje vejo pessoas que só se aproximam de alguém ou de algum grupo quando este ou aquele lhes pode dar alguma visibilidade. Satélites opacos, que são, precisam da luz de um sol para fazer fulgurar ao mundo seu lado obnublado.
(Alves Andrade, outubro de 2019)