Atividade do grupo Caminhos da Leitura, realizado em sábado, dia 22 de abril de 2017
Esta Tarde a Trovoada Caiu
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chovia do céu
E enegreceu os caminhos ...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
pus-me a rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranqüilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
Sentia-me alguém que nossa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
É Deus, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós ...
Ali, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega.
(O guardador de Rebanhos)
Alberto Caeiro, nascido em Lisboa, era o mais objetivo dos heterônimos.
Buscava o objetivismo absoluto, eliminando todos os vestígios da
subjetividade. É o poeta que busca "as sensações das coisas tais como
são". Opõe-se radicalmente ao intelectualismo, à abstração, à
especulação metafísica e ao misticismo. É o menos "culto" dos
heterônimos, o que menos conhece a Gramática e a Literatura.
Podemos observar pelo poema em discussão que há alguns desvios gramaticais: Sacode uma toalha de mesa (verso 5); Não sei porquê (verso 13); Eu sentia-me ainda mais simples (verso17)...
Logo
na primeira estrofe, o poeta nos surpreende, a ponto de eu ter feito o
seguinte comentário: Nessa estrofe o eu-lírico se reporta à chuva com
direito a trovoadas. entretanto com o verso reticenciado "E enegreceu os
caminhos..." nos dá uma pista do que leremos a seguir.
Entretanto,
o eu-lírico não sai do tom. Mantém a mesma postura de observador
simples do fenômeno. Seu repertório não possui grandes metáforas, como
julguei pelas reticências e e pela palavra "caminhos". Ele
nos remete à simplicidade da vida, como uma tia de alguém se põe a
rezar para Santa Bárbara, santa venerada pela igreja católica e pela
umbanda.
Mas por que para essa santa? É o próprio eu-lírico que tem a resposta: "Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou..."
Ora, Como ele é uma pessoa simples que passou a vida "como o muro do quintal" que não faz esforço para pensar, sentia-se uma pessoa apta a crer em Santa Bárbara.
Mas
´exatamente essa possibilidade, de crer e de pensar em Santa Bárbara,
que o entristece. Porque pensar e existir para coisas simples lhe dá uma
medida do quão pequeno ele é. Isso mostra ainda o dilema vivido pelo eu-lírico: viver simples ou se intelectualizar; continuar telúrico ou buscar o conhecimento dos livros?
Se
no poema anterior, Ao Entardecer, ele sente pena de Cesário Verde,
devido ao fato de este poeta ser um prisioneiro da vida na cidade sendo
camponês, ele mesmo, o eu lírico/Caeiro, sente pena de si, pelo excesso
de simplicidade de sua alma por isso ele se torna, diante de todo aquele
espectro natural que se desenrola ante seus olhos e de suas meras
reflexões, em suas próprias palavras:
"E eu, pensando em tudo isto,Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno"