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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

VIDA, crônica de rachel de queiroz

DO PRIMEIRO dia ao último, sempre essa ilusão, esse engano: você pensa que está vivendo - qual! - e todo tempo você está morrendo. Ninguém vive - todo mundo apenas morre. Acontece que o processo de morrer é lento, e a esse acabar-se devagarinho é que os homens chamam de viver. Nasce um menino, por exemplo. Veio roxo e mudo, é um pequeno defunto maltratado. O médico faz as manipulações clássicas, cabeça para baixo, palmada, ar no pulmão - o menino dá um grito agudo e dilacerante e o pai sorri deslumbrado: "Meu filho está vivendo, começou a viver!" viver nada, seu idiota, seu filho começou foi a morrer. sim desde aquele primeiro instante. Porque vida é um processo negativo, enquanto a morte é o processo positivo. Viver é andar para trás, é ceder terreno, é assim como um perde-ganha. A gente faz a conta da idade: quantos anos já viveu? Para que essa conta, senão por um único motivo: para fazer o cálculo provável do quanto ainda nos resta, antes de morrer. A cada ano, a cada dia, a cada hora e minuto, você tem menos vida dentro de si: menos coração, menos veia, menos músculo, menos reserva na fonte de energia. viver, para resumir, é usar-se. Lanterna de bolso com a pilha que não se substitui. Acabou-se a pilha, acabou-se tudo, joga fora o casco inútil, que luz não sai mais dali.
E ASSIM, portanto, não adianta ambição. Você trabalhando por um lado, a morte trabalhando pelo outro, são como duas cobras que se mordem pela cauda. você se agitando, cuidando que está construindo, enquanto ela, silenciosa, rói sem parar a  estrutura interna, deixando apenas a ilusão da superestrutura: mas é oca, já não tem nada dentro. você compra, vende, aprende alemão, constrói casa nova e faz ginástica. Tudo isso a serviço de quem se supões vivo - pelo menos por um prazo: como se o relógio parasse para você gozar um momento a paisagem e o ar bom! Porém na verdade você desde o começo é um meio morto, que aos pouco vai se entregando - todo dia um pedacinho, até à entrega definitiva.
E DEPOIS não adianta orgulho. você ergue a voz - mas sabe por acaso com  o que conta para apoiar a sua arrogância? Talvez na sua caixa do peito só reste um fole vazio. Seu passo é firme, agora, mas pode estar cambaleante dentro de dez minutos. Sabe, talvez você há anos esteja se mantendo de pé apenas por auto-sugestão.
E ESCUTE MAIS: nem o pudor adianta. Esse ciúme de si mesmo que muitos pensam que é virtude, essa valorização da carne-viva, esse mistério, que nem aos olhos amantes se devenda total, essa fração de corpo secreta e triste que todos escondemos até de nossa própria vista - talvez hoje, talvez daqui a pouco, seja tirada ao seu controle, entregue às mãos dos outros, exposta, manipulada, discutida, retratada. E aí de que serviram tantos anos de recato? para chegar a tal exibição?
E ENTÃO para que todo esse esforço? Para que glorificar o que é apenas um simples processo de desgaste e enfeitá-lo com paixões, conquistas e esperanças? Se viver é a própria negação da vida, ou  a sua destruição - para que sofrer e lutar, enfrentando esse duro caminho que não leva a lugar nenhum? É como nadar de terra para o mar alto. Adiante não há mais nada, só água funda, comedeira. Então que loucura é essa de oferecer o peito à vaga, furar a rebentação, cortar a água com os braços? Por mais que se esforce o nadador, mais hora menos hora, terá que parar, exausto, mergulhando de vez na onda amarga. Digam, digam: - para que deixar a praia, se há a certeza de que nada espera o nadador, nada, senão a asfixia final?

           (Rachel de Queiroz, in 100 Crônicas Escolhidas, josé Olimpo Editora, 3a edição, Rio 1973)