terça-feira, 8 de janeiro de 2019

A DIVINA COMÉDIA HUMANA



(Crônica incidental)
                Era natal, ano novo ou qualquer outra data, mesmo as menos especiais, lá estava ele com seu sorriso a tiracolo e a bolsa sempre recheada. Os amigos, todos o rodeavam e as amigas o amavam. E não eram poucas. Esses momentos se multiplicavam, entre doses de uísque ou cervejas importadas, não importava, o importante era beber se divertir e comer. O trabalho era diversão, a toda hora era visto de prancheta nas mãos e caneta nos lábios, reflexivo. Em casa os filhos tinham conforto, a esposa, vivia confortavelmente, o único desconforto eram as línguas da maledicência. Não se importava. Por que o faria, se tudo estava bem, e ele sempre regressava para os braços de seu perdão? E a vida seguia. Antes fora menino estudioso, as notas altas em Matemática o credenciaram a também ser o mestre das meninas, as mais bonitas, as mais fúteis. Formado, logrou ser o primeiro da turma, mas não havia concorrência, havia colegas de trabalho. Era, portanto, feliz, e assim era a sua vida, sua comédia.
                Certo dia, era outubro, e ele fez aniversário, deixou para trás a curva da segurança, entrou num tempo em que tudo é frágil. E o que era apenas brincadeira se tornou avassalador. Era a paixão que finalmente o arrebatava, ficou cego, de tanto vê-la e querer ser visto por ela, a clareza de visão da realidade, as animações, os boleros foram descartados. As amigas sentiram a troca, se afastaram, já não lhe tinham a atenção. Os filhos e a companheira foram desprezados. Que sentimento era aquele, que lhe obnubilara a razão, que o transformara tão radicalmente. Agora ele vivia por ela, para ela, dela. Que não era dele. O outro, enciumado pela iminência da perda, foi às vias de fato. Um tiro resolveria tudo. Não resolveu. Mas o entrevou-o uma cama, sem visitas, sem amigos, sem amigas e sem ela. O pouco de dinheiro que lhe restara, os remédios o consumiram, vorazmente, como os ratos de Dionélio. Sem hospital, sem médicos, restou-lhe a indigência. A casa agora era um quarto, a cama, sempre tão confortável, era umas palhas, os alegres companheiros agora era um cão vira-latas que o vinha visitar de quando em vez. As lágrimas, somente elas, eram abundantes quando lembrava dos momentos de outrora. Compreendeu o sentido de sua comédia humana, não dava pra rir, mas era assim sua humana comédia.
                Mas o destino nos mostra o caminho. E, assim, cada anel daquele inferno transposto era uma luz que se abria na sua realidade, na sua consciência. A lembrança dos banquetes, das risadas dos que lhe rodeavam pela anedota mais sem graça, das orgias regadas a bebida farta o entristecia, entretanto aclaravam sua atual visão das coisas, apesar de quase cego. A cada dia os efeitos dos remédios dados pelo Estado iam-lhe molestando mais e mais o já debilitado organismo. Enquanto as migalhas negadas aos necessitados, às crianças, aos mendigos o convertiam paulatinamente numa pessoa, se não melhor, mas cônscia da lei da ação e reação. E a aceitação daquela nova situação o deixava sóbrio. Abriu-lhe os olhos, e fê-lo perceber que mesmo a solidão, sua companheira inseparável, era uma mera ilusão, como tudo sempre fora. Dessa forma, o que de início era assombroso, aterrador, agora era aprendizado. Não procurou ninguém, perdoou-se e foi perdoado. E, no momento em que o rompeu-se a fibra que o enlaçava àquela dor vivente, ninguém veio chorar, nem ele o queria. Aos restos, a prefeitura se encarregou de dar termo. Do outro lado, não foi molestado, nem molestou. Já recuperado, refeito, buscou os seus para preparar uma nova experiência na carne. E nesse momento, compreendeu a comédia divina. Fora assim sua divina comédia humana.
(Alves Andrade, janeiro de 2019)
               

A MORTE DO PESCADOR



                As velas do Mucuripe não vão sair para pescar. Pelo menos hoje. A comunidade pesqueira está de luto. Os barcos, parados, tremem ao vento suas velas, num último adeus. Morreu seu Pedro. Não. Não morreu. Foi levado em sua última viagem pelo mar infinito, que guarda a carne dos peixes e dos pescadores, assim como o sussurro dos amantes e a solidão do poeta.
                Seu Pedro era o último dos pescadores de sua época. Época em que o mar e a praia só a eles pertenciam, sem a especulação imobiliária, sem essa invasão imobiliária. Época em que o farol velho, o olho do mar, acenava para os barcos, chamando-os à praia, indicando-lhes o rumo. Quando os coqueiros balançavam ao suas palhas e lançavam seus troncos aos céus, como uma torre de babel, lenho a lenho. E a areia branca, quase virgem, ainda sentia o roçar dos pés níveos de Iracema. As casas, calhadas de branco, se estendiam nas ruas com a simplicidade de sua riqueza, sem luz elétrica, sem geladeiras, mas com a alegria das  histórias contadas à luz da lua. Quem precisava dos neons? As crianças corriam pela praia, escondiam-se nos barcos, namoravam na areia, e seus risos e sussurros ecoavam pelo céu negro sarapintado de ouro. No recôndito das águas, os mistérios saiam no lombo dos peixes pequenos e grandes e se transformavam em lendas, que os pescadores reproduziam nas portas das casas, entre a fumaça do cigarro de palha e a dose de cachaça, na cozinha o peixe chiava na caçarola ou se embebia na panela, sobre o fogo do fogão a lenha.  No silêncio, ouvia-se a música dos ventos “vida, vento, leva-me”.
                Seu Pedro conhecia tudo aquilo desde pequenino, quando na jangada do pai já saía mar a dentro. Conhecia o destino dos pescadores, quando a velhice chegava cedo, quando a carne secava nos ossos, enrijecendo as feições. Quando o corpo sumia nos mares e eram encontrados rasgados pelos peixes. Ou simplesmente se encantavam, sequestrados pela mãe das águas. Conhecia as lágrimas que escorriam dos olhos dos órfãos, das viúvas e das noivas, que ficavam por casar. Ó mar, quanto do teu sal são lágrimas de saudade! Crescera ali e vira os seus indo um a um, inclusive os filhos, dor maior!
                Mas a maior dor era ver seu povo expulso da praia. Os proprietários da terra precisavam se espalhar como cobreiro, até matar o organismo. E eles, os verdadeiros donos, tinham que sair e subir a ladeira. Formar ruelas e casebres, onde hoje descansa o corpo de seu Pedro. Dona Raimunda ao pé do esquife não chorava, apesar dos olhos chorosos. Lembrava de quando o conhecera, há quarenta anos. Ele viúvo, ela moçoila, apaixonada por suas histórias, por ele desde sempre. Lembrava de que, quando ele ia ao mar, gostava de lembrar os versos do poeta cearense Belchior: “As velas do Mucuripe vão sair para pescar...” e ele sempre confidenciava ela que no meio da solidão do mar, ao ver uma estrela, cantava baixinho “aquela estrela é dela. Vida, vento, vela, leva-me daqui”!
                Mas hoje as velas do Mucuripe não vão sair para pescar. A casa de Seu Pedro está cheia dos pescadores, dentro e fora, fumando, bebendo, rezando. Lembrando das história reais e imaginárias que seu Pedro contava, ele, o último pescador de sua época.
(Alves Andrade, janeiro de 2019)

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...