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quarta-feira, 5 de abril de 2023

A NOIVA

 

(por Alves Andrade)


Reinava naquela mansão perfeita harmonia. Ao Piano, Jacques Klein, aracatiense em visita a Fortaleza, era homenageado e homenageava o seleto público, com a sonata 62 em mi bemol, de Joseph Haydn. Os convidados no preto e as convidadas em seus longos de cores variadas ouviam atentos ao aclamado pianista. Pelo salão, alguns casais mais afeitos à dança passeavam como se fossem cisnes inspirados em manso lago, como diria Varela. Garçons iam e vinham com as bandejas de bebidas e quitutes em cada mão, a passos largos.

Na biblioteca, um grupo particular conversava sobre negócios, política, jornalismo, economia e até Literatura. Esse grupo se reunia sempre às quintas-feiras à noite. Era uma espécie de clube do bolinha, formado por homens distintos. Eram ricos empresários, jornalistas, escritores, advogados, médicos etc. Curiosas, algumas esposas, passavam discretamente para tentar ouvir algum sussurro que lhes denunciasse os misteriosos diálogos ali mantidos. Entretanto, aqueles homens, além do trivial, não tinham muito segredo a esconder, apenas alguns. E esses eram lá entre eles.

Quando a lua ia alta em sua viagem noturna, o burburinho externo adentrou à biblioteca. Era o mordomo que, trajando calças e paletó vinhos, assim como camisa e gravata pretas, abria a porta para anunciar a um dos convidados, Senhor Lúcio, que ali se encontrava alguém a sua procura. Os colegas da quinta feira, menearam levemente a cabeça enquanto um sorriso breve, porém delator, desejava-lhe boa sorte. Era uma moça bem alinhada em seu salto alto, blazer e saia brancos que aguardava o distinto Senhor Lúcio.

Senhor Lúcio era jornalista e colunista de um dos grandes jornais da capital. Seu pai era italiano e sua mãe uma nobre inglesa. Os dois vieram para o Brasil, precisamente para fortaleza, ainda na década de vinte. O motivo do exílio da Europa era sempre dado com palavras pouco elucidativas, o assunto era sempre deixado de lado e logo substituído por outro “mais importante”. Pouco tempo depois, nasceu-lhes o filho único, o menino Lúcio. Educado com esmero, o garoto queria ser médico. Um de seus principais robes era dissecar animais. Diziam as más línguas inclusive que ele os matava para realizar esses procedimentos. Entretanto seus pais negavam essa atitude e diziam que os adquiriam cadáveres para “o Lucinho brincar”.

Não foi médico, mas jornalistas. Trabalhava duro na redação do jornal. Nos tempos livres, era visto no necrotério do Instituto Médico Legal, à época situado na Universidade do Ceará. Nada a se estranhar, uma vez que esses ambientes despertam extrema curiosidade entre muitas pessoas. Além do mais, Lúcio publicou grande matéria, depois transformada em livro, sobre Alexandre Lacassagne, médico e criminalista francês, cujos métodos e teorias divergiam da de seu mestre, o italiano Cesare Lombroso. Enquanto Lombroso atestava que a criminalidade é nata, Lacassagne apontava o meio como elemento capital na produção do criminoso. Ele dizia que a "Justiça escolhe, a prisão corrompe e a sociedade tem os criminosos que merece". Ainda hoje, o livro de Lúcio é amplamente enaltecido por seus pares jornalistas. Vieram depois outros livros e o tema cadavérico multiplicava-se, sempre com grande sucesso. Seus amigos médicos, alguns deles legistas, diziam que seu denodo para com os mortos era admirável. Mas de se admirar era que nunca em sua coluna diária abordou o tema da morte. Tratava de tudo. Futebol, política, Literatura e até festas sociais. Mas nunca cadáveres povoaram seus parágrafos, nem mesmo quando um nome digno de nota partia dessa para uma melhor.

Lúcio despediu-se dos amigos e dos anfitriões. Apertou calorosamente a mão do famoso pianista e dirigiu-se ao portão, onde a moça de blazer e saia brancos o aguardava, pacientemente, tragando um Astoria. Lúcio apertou-lhe a mão suavemente, quase um carinho. Ela o recompensou com um sorriso de quase volúpia. Ele esfregou as mãos e indagou-lhe quase ansioso:

– Tudo pronto?

Diante do aceno positivo, os dois dirigiram-se ao Aero-Willys. Ele, gentilmente, abriu a porta para que ela entrasse, fechou-a, dirigiu-se ao banco do motorista e o carro deslizou serenamente em direção à Beira Mar. Próximo ao Náutico Atlético Cearense, ele estacionou, entregou a ela um cheque, o qual ela, depois de analisá-lo, guardou na bolsinha branca, que trazia a tira-colo. Ela lhe entregou um molho de chaves, que ele guardou quase trêmulo no bolso do paletó. Lúcio esperou que ela tomasse um táxi para só depois Deixar o Aero-Willys. Deu uma breve olhada para a casa branca de muro baixo e telhado verde. Tirou a chave de onde tinha guardado, mirou-a, jogo-a para cima e a devolveu ao bolso. Havia pouca gente na rua, a brisa batia leve fazendo seus finos cabelos dançarem. Com as duas mão nos bolsos da calça, ele passeou, de cabeça baixa, refletindo no que estava por acontecer. Em um quiosque, ali próximo, tomou uma Brhama, calmamente, sem pressa, enquanto tragava um Minister, atrás do outro. Parecia um adolescente aguardando seu primeiro encontro.

Já eram duas da manhã, quando se dirigiu à casa, cujas chaves tilintavam no bolso do paletó. Girou uma delas na fechadura e entrou. Era uma casa simples avaranda com um pequeno jardim na frente e atrás. Sala, um quarto simples, uma suíte, cozinha, tudo muito limpo. Não era a primeira vez que ia ali. Conhecia bem os cuidados da Fátima, o zelo com que preparava o ambiente. Os lírios, as rosas, as peônias e os jasmins eram suas flores preferidas para enfeitar e perfumar a noite dos noivos. Naquele dia ela escolhera os jasmins amarelos que iam bem com o branco do vestido.

Lúcio abriu a porta do quarto de núpcias. A noiva estava sentada e o aguardava, vestida de branco, véu e grinalda. Sobre a fronte uma coroa de miosótis em botão adornava sua pele pálida. O noivo enlaçou-a pela cintura, beijando-a com certa sofreguidão. Deitou-a, cuidadosamente, fitando-a nos olhos, admirando os cílios fartos. Despiu-a, sem pressa, enquanto sussurrava para que não se assustasse. Por alguns minutos fitou sua nudez por inteiro, enquanto também se ia despindo. Enlaçou-a novamente. Já com a respiração ofegante, o coração acelerado, penetrou-a com sua virilidade, sussurrando palavras ensandecidas. Depois, apagou a luz e, lasso, dormiu abraçado à sua esposa.

No dia seguinte, acordou por volta de nove horas. Olhou sua mulher ainda despida, cobriu-a com o lençol. Foi ao banheiro, tomou banho, cantarolando uma marcha nupcial. Em seguida se vestiu, abriu a porta, respirou o ar puro que vinha do mar, desceu os degraus da casa e foi ao quiosque no qual estivera na madrugada. Pediu uma cerveja, acendeu um Minister, enquanto aguardava que Fátima chegasse. Não demorou muito para que ela surgisse. A moça se aproximou e o cumprimentou com o riso de costume. Ele lhe entregou as chaves e, de longe, viu quando ela e dois homens entraram na casa para retirar o cadáver que lá estava.

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