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quinta-feira, 14 de março de 2019

ESTRANHO MEIO DE GANHAR A VIDA


            “A vida não tá fácil pra ninguém!” Denuncia a postagem-meme nas redes sociais, em que, além da legenda, aparecem supostamente as imagens de Ronaldo (Fenômeno), Romário e Ronaldinho Gaúcho, no interior de um ônibus. Meme à parte, o negócio tá sério. Ou como diria Galvão, “tá fea a coisa”. Além do governo alardear liseira nos cofres da previdência, se preparando pra dar uma facada no bolso e na vida do pobre trabalhador, a reforma trabalhista vem com gosto de gás tirar o trabalho de quem já não trabalha, há muito. E sonhava pelo menos conseguir um.
            Falando de funcionalismo público, inimigo número um de todos os governos, estamos ferrados. Sem aumento salarial, sem sequer reposição da inflação, a galera tá tentando se virar, alguns literalmente. É o caso de uma amiga a qual confessou que, para pagar as contas no final do mês, de vez em quando está fazendo bico na profissão mais antiga do mundo. Outro colega, disse que, quando chega em casa cedo da noite, no começo do mês, arma um fogozinho na frente da casa, põe uma carninha no espeto e vende para os passantes. Às vezes, disse ele, não tem dinheiro para comprar carne, então os gatos da redondeza estão sumindo. Coitado do gato. E o povo vai se virando. Na hora do descanso, as colegas funcionárias públicas não descansam. Fazem sanduíche natural pra vender pros colegas, docinhos, brigadeiros, revista da Avon etc. tudo para completar as contas do final do mês. Os colegas pegam o carro e vruuumm, saem de UBER ou 99 pop.
            Mas o jeito mais estranho de ganhar a vida não é nenhum desses. Confessou-me um recente amigo, cabo Edmundo (realmente não tá fácil nem pro Animal). Contou-me o mesmo que num dia de profunda angústia, vendo as contas do final do mês sem paradeiro e vendo que já não dava para sortear uma e deixar as outras para o outro período, saiu de casa para pensar em algo. Na descida do viaduto, parou para ver se tinha passagem, quando alguém, um apressadinho, bateu-lhe na traseira do carro. Viu que o rapaz estava um pouco nervoso, olhou e não viu nada de mais, seu carro não tinha sido avariado. Foi então que uma luz se acendeu no final do túnel de sua mente, recheada de contas pra pagar. Explicou então para o rapaz que seu carro era novo e que qualquer arranhão o entristecia. O rapaz então lhe perguntou quanto seria para reparar o dano que supostamente teria causado... A conta de luz estava paga!
            O cabo contou-me isso sem rir, não era de sua índole extorquir dinheiro de ninguém. Mas não era bonito, não era sequer mulher, não sabia vender Avon, era amante de animais principalmente de gato, nem tinha coragem de dirigir à noite, nesta cidade tão insegura, até mesmo para um policial. Essa foi a maneira que encontrou para minimizar as contas do fim do mês, descer o viaduto, esperar a leve pancada atrás (sem trocadilhos) e receber cem, duzentos e até quinhentos, dependendo da condição financeira do abalroador.
            Eu também estou procurando meu estranho meio de me virar (metaforicamente falando). Além de ter aprendido apenas a dar aulas, ou vendê-las muito baratas, não sei fazer mais nada, pelo menos que dê para ganhar algum extra.
(Alves Andrade, refletindo sobre o futuro das contas)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O CACHORRO E O MOTOQUEIRO





Desde a infância, uma história me chama a atenção pela distopia, pelo alerta que representa para a humanidade. Trata-se de O Planeta dos Macacos, livro de Pierre Boulle, transportado para o cinema e televisão do mundo todo. Nessa história, que todos conhecem, por isso não vou contá-la aqui, um astronauta acaba entre os macacos de um planeta dominado por raças simianas. Ao final, o leitor ou aqueles que assistiram aos filmes ou às séries compreenderão que na verdade trata-se do planeta terra, dominado pelos macacos.  
O que me fez lembrar agora dessa história foi uma cena no mínimo curiosa. Foi o seguinte. Por volta das seis da noite de segunda-feira, quando me dirigia ao trabalho, parando em um semáforo amarelo, chamou-me a atenção um cachorro (sempre fiz a distinção entre cão e cachorro. Cães são aqueles animais mimados que vivem fazendo estripulias no facebook. Cachorro são aqueles desamparados, que vivem na rua). Pois bem, o cachorro estava parado na faixa de pedestres, com a finalidade de cruzar a Avenida Paulino Rocha, aguardando o sinal ficar verde para ele. Antes, porém, pude observar que alguns humanos se arriscavam, tentando passar fora da faixa e com o sinal ainda vermelho. O cão, entretanto, impávido, esperava sua vez. Quando o sinal ficou verde, o mesmo pisou a faixa de pedestres e se dirigiu ao outro lado da avenida, tendo ainda que transpor o canteiro, certo de que estava com sua vida fora de risco.
Mas isso ainda não é o curioso da cena, pois o fato de cachorros agirem assim não é inédito, á ninguém, tampouco para mim. Há alguns anos, no dia 24 de dezembro, por volta das nove da noite, voltando da casa da sogra, onde fui buscá-la para passar o natal conosco, presenciei uma fila formada por aproximadamente dez cachorros aguardando, na faixa de pedestres, para atravessar a avenida Luciano Carneiro, no cruzamento com a Borges de Melo. Os animais não só o fizeram com o sinal verde, como aguardaram da mesma forma para cruzarem à referida Borges de melo, sem pressa, sem queixumes, apenas esperaram sua vez de agir. Iam, possivelmente, atrás do seus restos de um peru de Natal.
Voltemos, pois, à cena inicial. O curioso do ocorrido é que quando o cachorrinho, cruzando à Avenida Paulino Rocha, já deixava o canteiro, veio um motoqueiro, que avançou o sinal,  e quase o atropelou. O acidente só não aconteceu, porque o animal inteligentemente, conhecendo a burrice humana, já previa o que poderia acontecer e se safou. Deu uma olhada no homem que quase se tornara seu algoz e rosnou para o mesmo. Mas não foi um rosnado em forma de palavrão, foi muito mais um rosnadinho de desdém e de perdão.
Depois dessa cena, lembrei-me da História de O Planeta dos Macacos e me pus a refletir sobre o que acontecerá com a humanidade se continuar tão desumana e inconsequente.
(Francisco Alves de Andrade, janeiro de 2017)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

ATÉ ISSO PASSARÁ

            

Hoje a piscina estava vazia. Não que estivesse sem água. Pelo contrário, a água transbordava ao sopro do vento matinal. Não que não houvesse pessoas. Muito pelo contrário, estava repleta de cabeças, troncos e membros. Havia, entretanto, um silêncio, que a tornava vazia, com um  zumzumzum  baixinho, silente. Vez por outra,  ouvia-se um riso, porém tênue, como se houvesse um acordo para que se mantivesse apenas o som do silêncio.
            Não, não fiquem consternados. Ninguém morreu, ninguém com enfermidade grave. Mas é sempre assim quando seu Joaquim não aparece por aqui. Ninguém sabe por quê, de repente ele não compareceu. Possivelmente algum compromisso fortuito, desses que chegam sem aviso e nos tiram dos compromissos rotineiros. Daí o motivo daquela quase entorpecimento na aula de hidroginástica. Do meu canto vislumbrei alguns olhares indecisos, arapongas na direção do portão. O professor quebrou o silêncio, quase sem querer, indagando pelo cliente faltoso. As amigas ficaram órfãs por hoje. Não estavam tristes, apenas não estavam à vontade, como que sentindo que a manhã estaria incompleta, com a ausência do amigo.
            Mas sabemos que daqui a dois dias, logo cedo, Seu Joaquim adentrará o portão, já sorridente, indagador, cumprimentador. E logo a água da piscina sorrirá ao embalo do vento mais solto. O professor Metusalem, com seus trocadilhos à vovó, indagará sobre os netos, sobre a obra, sobre a garrafada alemã, pseudo motivo de toda aquela virilidade. Com respostas rápidas e sem papas, Seu Joaquim irá respondendo e acrescentando tantas outras pilhérias, levando muitos à descontração. Outros clientes, um pouco ingratos, torcerão a face a esse mundo de brincadeiras, tecendo comentários, mas, no fundo, rindo  de todo aquele bom humor. E as amigas perdoarão a ausência passada e voltarão a sorrir, com a plenitude daquela manhã.
            Entretanto haverá uma manhã em que a piscina estará vazia. Não por falta d’água, não porque não tenha gente. Mas porque tudo nessa vida é efêmero, tudo é passageiro, inclusive o trocador e o motorista. E toda essa alegria também um dia passará e ficará apenas na lembrança daqueles que convivem com seu Joaquim.
(Agosto de 2013)

            

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A PROFESSORA NOVA


          
      Trinta anos de profissão, sala de aula, dura lida com aqueles meninos e meninas, mais aqueles que estas, esculpindo-a paulatinamente. Chegou então o grande dia, já fora de hora: a aposentadoria. Os meninos estavam tão risonhos e felizes que até contrariavam a velha mestra. Mas essa ideia contrastava com a festa de despedida. Durante dias os meninos e as meninas se revezaram num esforço contínuo, às escondidas, segredo de lesa-turma. Ninguém podia saber da festa. A despedida. Pediram discurso, os pequenos. Ela com lágrimas nos olhos quase desistiu de vestir a camisola. Mas foi. Abraçou um a uma, e eles o fizeram, como nunca tinham feito.
            Havia, porém, uma incógnita: quem substituiria Professora Maria, na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever àqueles pestinha? Logo que se iniciou a semana seguinte ao afastamento, os pequenos, e principalmente os pequenos, exigiram uma professora nova. A ponto de irem até o gabinete da diretora para falar a ela que queriam uma professora nova. A diretora, durante o intervalo, comentou com os professores e as professoras sobre os meninos:
          — Ora vejam só, a gente pensa que esses pestinhas não gostam de estudar! Mas foi só a Maria se aposentar, já vieram à minha sala exigir uma professora nova. Bem ajuizados são eles. Benza-os, Deus!

          A semana se prolongou com dona Fátima solicitando à Secretaria de Educação uma professora nova para substituir Maria, alegando que, além de estarem com o aprendizado prejudicado, os pequenos gostavam muito de estudar e não podiam perder o gosto pelas aulas. O dilema, felizmente, durou pouco. Duas semanas após os acontecimentos narrados, chegou à escola dona Lúcia. Vinha da própria Secretaria. Além de exímia professora era considerada uma das mais experientes técnicas em educação infantil. Faltava a ela cinco anos para a aposentadoria, e era seu desejo terminar sua carreira em sala de aula. Quando dona Fátima recebeu essa notícia, um sorriso lhe alargou a boca de orelha a orelha. “nossa! como os meninos vão ficar felizes”. E foi ela pessoalmente apresentar a nova mesta aos pequenos estudiosos. Entretanto, para sua surpresa, não houve nenhuma atitude que denotasse a alegria dos pequenos, sobretudo dos pequenos. E o sobressalto foi maior quando um dos bem pequenos levantou-se em protesto para dizer em nome da turma:
             — Diretora, nós queremos é uma professora nova, novinha estralando!

(Professor Alves, baseado em um fato ocorrido na EEFM Gonzaga Mota, em Messejana)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

CRÔNICA DA DESCONFIANÇA OU DA VERDADE INAUDITA


O lugar era um desses sítios pequenos que há pelo sertão, cujo dono não deu asas aos hectares devido ao escaldante sol que assola essas regiões. É sempre ideia comprar um sítio, para depois plantar, irrigar, construir um balneário às margens do açude. Enfim transformar a Natureza. Mas a natureza do sertão é áspera, incontrolável, arisca. Desafia a qualquer um que pretenda transformá-la num paraíso. E logo desistem. Até porque os proprietários desses sítios não entendem nada de sertão. Entendem muito mais de cidade. São comerciantes da capital, juízes, desembargadores, médicos, que nasceram no sertão e tiveram de deixá-lo para melhorar seus dias. E quando conseguem um padrão de vida invejável, retornam a ele, adquirem um pedaço de terra com os intuitos já mencionados. Muitas vezes, em suas viagens, veem pedaços de chão verdes, plantações de dar águas nos olhos e seus donos de risos fartos. Imaginam logo ser fácil conseguir um terreno igual. Fazem planos, mas não têm tempo, suas ocupações citadinas e mundanas não lhes permitem a realização de seus ideais bucólicos. Com o tempo se resignam, e a casa se torna num simples lugar para se passar o tempo quando vem visitar os seus, para dar uma festinha de aniversário ou passar a Semana Santa. Então a natureza ao redor agradece para poder, livre, realizar sua autêntica vocação.
Era num sítio desses em que me encontrava e admirava a natureza agreste ao redor do casarão. Um barulho infernal, misto de gritos de crianças, vozes de mulheres e homens, além de uma música quase inaudível pela colisão de notas e acordes eram a trilha sonora daquele momento. Poucos eram os meus conhecidos ali, os que aasim eram estavam ocupados em suas mesas com seus amigos, copos de bebidas e garfadas de carne. Logo me vi só, observando a natureza. Quando chegou um casal que me pareceu simpático. Os dois traziam a tiracolo uma criança de aproximadamente nove anos. Estava formada a tríade familiar: pai, mãe e filha. Veio-me a ideia da imagem que o cronista Fernando Sabino tivera ao ver o casal de pretos acompanhado da filha negrinha. Passou-me pela memória rápido a história da última cônica. Bem que eu poderia aproveitar a solidão do momento para escrever algo. Não sou cronista nem contista, mesmo assim seria estranho, numa festa com barulho intenso, alguém sacar de um papel e uma caneta, ou mesmo de um "notebook" e escrever diante dos olhos pasmados de algum espectador desafortunado. Foi a inexperiência como trabalho de escritor que me levou a esse desatino. O casal acenou para os amigos, e os três ocuparam uma mesa espremida entre tantas outras. Ele tinha um ar agradável, sorridente, amigo; ela, não ficava atrás, entretanto sua simpatia era um pouco inibida pelos cuidados com a garotinha, cujos olhos furtivos buscavam alguém que tivesse sua idade, com quem pudesse brincar.
Olhei em volta, vi e ouvi as mesmas cenas de antes, com execção de algumas frases pronunciadas já com um pouco mais de intonação e veemência, efeitos do álcool provavelmente. Meus olhos então voltaram para a família, quase sem querer. Mas algo me chamou deveras a atenção. O homem antes tão simpático e sorridente adquirira de súbito um ar empalecido, seus olhos estavam espantados como se tivessem visto fantasmas, seu rosto adquiriu uma palidez quase móbida, desses que só adquire quem vê alguém que não quer ver, ou alguém que quer desesperadamente encontrar, mas não espera dar de cara de modo tão inesperado. Em minha mente vieram histórias dos mais diversos matizes. Estava deveras ensimesmado, por isso cheguei a imaginar coisas. Será que ele vira a lâmina de um amor traído; será que vira alguém que lhe roubara ou tentara lhe roubar a felicidade; será que foram os olhos da mulher de sua vida que lhe cruzaram naquele momento!? Procurei ser o mais discreto que pude, girei a cabeça em torno, e não percebi ninguém, naquele espaço onde estávamos, digno de tamanho desconforto, pelo menos não que eu tenha visto. De volta ao rapaz, notei que o susto havia passado, mas o desconcerto não. Vi que tentava aparentar calma, mas não lhe era possível, respirava fundo, como quem busca o ar necessário para se manter de pé. Nesse momento a companheira saiu para procurar a pequena que lhe sumira das vistas. Ele levantou-se, com o pretexto de cumprimentar um amigo, acenou para outros. Nesse moemnto vi sua mão esquerda procurar e encontrar discreta e propositadamente uma outra, que apertou-a com a mesma discrição. Tomei um susto, olhei em volta, tive, porém, a impressão de que ninguém notara o gesto. Só eu, que estava desapercebido de tudo, vi, ou pensei ver, o que vi. Qundo ele passou daquele ponto, notei um par de olhos tão surpresos quanto os dele segui-lo, com o rosto tão lívido como os dele. Meio desconcertado fiquei diante do insólito. Daí a pouco ele retornou e tentando demonstrar tranquilidade, debruçou-se sobre uma mesa, riu amarelo, até tomou um pouco da cerveja que um amigo lhe serviu e voltou para a sua. Ao passar pelo alguém que lhe causara tanto rebuliço na alma, estacou mais uma vez e tocou-lhe a mão, desta feita num cumprimento, como os amigos que se dizem “há quanto tempo, por onde tens andado”, em volta ninguém os olhava, pelo menos de propósito, só eu, que não tinha com quem conversar. Ele bateu no ombro do outro como a pedir licença para se retirar, e voltou a sentar-se. A mulher falava algo com a filha e ele fitava o outro, e o outro não conseguia tirar os olhos de cima dele.
Naquele momentro fui subitamente arrebatado com a chegada de um parente o qual há tempo não via. Efusivamente me abraçou, disse o que se diz quando se encontra alguém que não esperava encontrar, apontou-me a mulher, pediu permissão e sentou. Falou da música, da cerveja que estava quente e da carne meio crua. Perguntei-lhe pelo trabalho, indaguei-lhe sobre os familiares e ri de alguma piada de improviso.
Meu canto de olho porém não deixava de mexericar o que estava acontecendo naquela mesa. O outro se aproximou, sentou-se e os dois ficaram sentados, lado a lado, estando ele entre a mulher e o outro. Não havia mais traços de desconcerto. A esposa, familiarizada com o amigo recém chegado, riu de algo que ele dissera, enquanto o marido colocou de leve a mão sobre a coxa do mesmo. Aos poucos a situação foi adquirindo um tom de normalidade. Os gestos tornaram-se meros, simples, fortuitos. Mesmo quando a esposa pediu licença e lenvantou para buscar a pequena, não vi nada demais. Eu comecei a me indagar se havia visto o que me pareceu uma intimidade exacerbada entre os dois, ou se eram meus sentidos aguçados pela ociosidade que me mostraram a cena com as lentes de aumento da desconfiança e da maledicência. Voltei-me, pois, para a minha, e quase perdia o fim da piada que meu primo acabava de contar, quase perdia o riso, o que me fez lembrar de uma outra, que contei para seu deleite e da esposa, a qual ele trouxera para junto de nós.
Passado algum tempo, com o fim da cerveja e a chegada da noite, resolvi me ir. Despedi-me. Saí. Antes porém de descer os degraus do batente, olhei uma última vez e vi, por baixo da mesa, dez dedos que se tocavam com certo nervosismo.
(Professor Alves, 28/07/2010)

terça-feira, 15 de junho de 2010

DONA VERA E SUAS IDIOSSINCRASIAS

 DONA VERA E SUAS IDIOSSINCRASIA
Recém-chegada do interior, que dizer neófita na capital, veio trabalhar em minha casa, digo apartamento, como secretária do lar, terminologia utilizada como eufemismo para empregada doméstica. Não sei porque alguns termos não combinam com aquilo que tentam representar, são termos cunhados por infelizes que não atinaram para a dinamicidade da língua. Deve ter sido isso que aconteceu com o desfamigerado termo “ludopédio”, inventado pelos xenófobos da língua para substituir o insubstituível futebol.
Pois bem. Então veio trabalhar de empregada doméstica, com todo orgulho. Mas tinha suas idiossincrasias, para não dizer particularidades. Não me perguntem por que preferi a primeira a esta, talvez por fome de vocábulos. Dona Vera, como dei de chamar, por respeito, não tinha afeição por nenhum objeto que viesse substituir os que já conhecia. Vassoura para ela tinha de ser de palha, se eu comprava panos de chão no supermercado, ela os guardava carinhosamente na gaveta do armário e os engomava sempre. E buscava entre as roupas velhas sobremaneira camisetas, também conhecidas por camisas de malha, não sei por quê, e ia passar o pano, ou melhor, a camisa no chão. Se reclamava, como muito jeito, ela redarguia de pronto: “seu Alves parece que é doido, usar pano bem novim no chão. Quando ficarem velhos eu passo.” Embasbacava-me sem ter o que dizer , pois apesar da voz mansa quase cantada, ela era peremptória. Esta última veio-me de um saudoso professor de latim. Apaixonei-me por ela, pela palavra, não por dona Vera, e nem procurei-lhe o sentido. Afinal peremptório só pode significar peremptório, ora essa. As palavras são aquilo que são, não adianta querer lhe emprestar outro sentido. Até hoje só fui traído por uma palavra: BRANDO. Toda vez que lia numa receita, “deixar coser em fogo brando”, minha voz forçava a leitura e eu não pensava duas vezes, aumentava o fogo para seu limite máximo, se é que existe limite mínimo. Para minha desfeita o prato nunca saía conforme o esperado. Até que compreendi o significado de “brando”, sem ir ao dicionário, mas depois de muitas receitas perdidas.
Pois bem, para finalizar esta crônica, pois crônica, para parafrasear Mário de Andrade, é aquilo que escrevemos e dizemos que é uma crônica, vamos voltar à Dona Vera. Estava eu na escola em que trabalho quando apareceu um desses vendedores de tudo. Esses caras são mais psicólogos do que vendedores. Colocou os olhos nos meus e os dele brilharam. Devo concordar: sou presa fácil. Ele nos apresentava um produto que seria o sonho de qualquer empregada doméstica: um rodo com um cabo longo para que o usuário ou a usuária, para evitar sexismo de linguagem, não forçasse a coluna e um absorvedor de água fabuloso. Tinha um dispositivo com o qual você espreme a esponja absorvedora da extremidade para secá-la e depois tornar a passá-la no chão deixando-o incrivelmente seco. Qualquer um ou qualquer uma levaria menos da metade do tempo normal para deixar uma casa limpa com aquele instrumento. Qualquer um ou qualquer uma, mas não Dona Vera, que foi logo pegando o objeto e guardando no mais recôndito lugar da despensa, dizendo “Seu Alves parece que num tem juízo, de querer que eu passe um negócio desse bem novim no chão”. E foi se curvando com o velho rodo e seu cabo roído para limpar o hall. E eu a partir desse dia, desisti do propósito de comprar uma linda cafeteira que vira numa loja de eletrodomésticos.
(13/06/2010, Professor Alves)