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sábado, 13 de maio de 2023

SAÍDE, O LATA DE ÁGUA

 


Mia Couto, Vozes Anoitecidas, 2ª edição, pag. 51 a 57

Tarde de madeira e zinco. Com telhados pendurados, a cacimba a raspar-lhe. Molhadas, as pálpebras da tarde parecem soltar morcegos.

No bairro de caniço a paisagem é beijada só pela morte. Saíde regressa a casa, tropeçando pragas. É rasteirado pela cerveja. toda a tarde entornada no seu desespero.

-Amigos? Caraças, são os primeiros a lixarem um gajo!

Estoiram risos nos umbrais das portas.

-Riam, cabrões.

Remexe os bolsos. Cigarros: nada. Fósforos: nada. As mãos impacientes interrogam o vestuário. Apetecia-lhe o fumo, precisava da força de um cigarro, da segurança dos gestos já feitos.

-Olha o Lata de água. A mulher nem sai de casa, desde que ele meteu-se na bebida.

Não era verdade. As mulheres sempre recebiam o prémio de se ter pena delas. Sacanas dos vizinhos. Só estão perto quando querem espreitar desgraças. No resto ninguém lhes conhece.

Entrou em casa e fechou a porta. A mão ficou no trinco, distraída, enquanto ele passeava os olhos naquele vazio. Lembrou-se dos tempos em que a encontrou: foram bonitos os dias de Júlia Timane!

Tinha havido muito tempo. Está sentado numa paragem à espera de nada, dessa maneira que só os bêbados esperam. Ela chegou e sentou-se ao lado. A capulana que trazia sobre os ombros parecia pouca para um frio tão comprido. Começaram de falar.

-Sou Júlia, natural de Macia.

- Não tens marido?

- Já tive. Por enquanto não tenho.

- Foram quantos os maridos?

- Muitos. Tenho filhos, também.

- Onde estão esses filhos?

- Não estão comigo. Os pais levaram.

Ele ofereceu o casaco para a cobrir de frio. Ala ajudou-o a encontrar o caminho para casa. Mas acabou por ficar aquela noite. E as outras noites também.

Quando souberam que andava com ela, condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu corpo. Ele não quis ouvir. Foi então que passaram a chamá-lo de Lata de água. Em toda a parte a alcunha substituiu o nome. A água aceita a forma de qualquer coisa, não tem a própria personalidade.

Com o tempo foi-se apercebendo de uma coisa grave: ela não lhe dava filhos. Isto ninguém podia saber. Um homem pode ter barba, não-barba. Agora filhos tem que tirar: é um documento exigido pelos respeitos.

Um dia disse-lhe:

-Temos que ter um filho.

- Não podemos, você sabe.

- Temos que arranjar maneira.

- Maneira , como? Se eu não tenho a culpa? O hospital explicou o problema: é você que não tira os filhos.

-Não estou a falar de culpa. Já estudei o problema, a solução já descobri: abastece-se lá fora, mulher.

- Não estou a perceber.

- Estou-te a dizer: dorme com outro. Eu não vou zangar. Só quero um filho, mais nada.


À noite ela saíu. Voltou muito tarde. As noites seguintes ela fez o mesmo. Foram muitas noites.

Ele perguntou:

-Uma vez não chega?

-Não quer um filhos? é bom garantir.

- Faça lá maneira que vocês sabem. Mas rápido, não quero falta de respeito.


Júlia engravidou-se. Ele festejou a notícia. Aquelas primeiras semanas foram muito felizes. Até que uma vez ela acordou-a no meio da noite:

- Júlia, quero saber: quem é o dono da grávida?

-Armando, você jurou que nunca havia de perguntar.

- Agora já quero esse nome. Não podes dar parto sem eu saber a verdade do pai dessa criança.

Júlia permaneceu calada e arrumou-se outra vez na cama. Ele sacudiu-a com violência.

- Vais dar-me porrada? assustou-se ela.

- Quando não disseres, vou-te dar.

- Não serei eu sozinha a batida. É capaz que vais aleijar o teu filho.

Ele olhou para si mesmo: estava de joelhos, parecia estar de rezas. Um homem que exige não fica na posição dos que pedem. Levantou-se e foi acender o xiphefo. Na sombra falou-lhe, já calmo:

-Dorme Júlia, eu não quero ouvir esse nome. Mesmo quando te pedir outra vez: nunca fales essa pessoa.

Ela sorriu, destapou o lençol e mostrou aquele redondo da lua na barriga.

- É seu filho, Saíde. É seu.

A criança nasceu. Ele confirmou, então, a suspeita de um sentimento: o miúdo era um estranho, um remendo na sua honra. Mas um remendo vivo, chorosa testemunha das suas fraquezas. Às vezes gostava-o e ele era seu. Outras, o bébé era um intruso que o vencia.

Na vizinhança ningém desconfiava da identidade do pai. Mas Saíde estava cada vez mais inseguro: olhava a criança e parecia que ela sabia de tudo. Quis um filho para esconder vergonha. Agora, tinha um filho que ameaçava o segredo da sua vida. Cada vez era mais difícil aquela morada. Ciumava dos cuidados que a mulher dedicava ao pequeno rival. O futuro atrapalhava-o como um caminho escuro.Mais e mais vezes batia na mulher, cada vez mais passeava nas bebidas. Nunca bateu no miúdo. As porradas que lhe queria dar destinava-as na mulher.


Sentiu a força do vento na porta e acordou da lembrança. Sempre que se recordava trabalhavam facas dentro da alma. Estava proibido de ir ao passado. E tudo por causa de Júlia, raio de mulher. Fechou a porta coma decisão da fúria.

-Sua puta !

E desatou aos pontapés. Queria feri-la, transferir para ela as dores que sentia. Caíram latas, num barulho enorme. Ele não esmoreceu: debruçado sobre a cama insultava-a, cuspia-lhe, ameaçava-a da morte derradeira. Os vizinhos, ele já sabia, não viriam acudir. E, aquela noite, a raiva era demais. Havia de lhe bater até sangrar. Puxou do cinto e usou-o com tanta vontade que o balanço o fez cair sobre a mesa. Pratos e copos caíram, rasgando outra vez o silêncio da noite.

De repente, sentiu um barulho na porta. Quando olhou esse alguém já tinha entrado.

Era Severino, o chefe do quarteirão.

-Que queres, Severino?

- Calma, Saíde. Para quê tudo isso?

Ele respirava como se alimentasse muitas almas.

- Senta-te, Saíde.

Ele obedeceu.Nos suspiros cicatrizava o fogo da alma.

-Porque você faz sempre isto? Já viu bater assim numa mulher?

Ele não respondeu. Tentava baixar aquela quentura dentro do peito. Ficou assim uns minutos, até que respondeu:

- Eu não estou a bater em ninguém.

Severino não percebeu. Deve ser está grosso, vai começar uma conversa de muitas coisas. Mas Saíde insistiu.

- Não há ninguém nesta casa. Só sou eu sózinho.

Severino olhou em volta, desconfiado. Não havia, realmente, ninguém.

-Pode ver em todo o lado. A Júlia não está, há muito tempo que foi-se embora. Eu não estou a bater contra ninguém.

- Desculpa, Saíde. Pensei...

E como não encontrasse palavras decidiu-se a sair.

Andava de costas como se a surpresa fosse uma cobra ameaçando saltar-lhe.

- Severino?

- Sim, estou a ouvir.

- Eu faço isto não sei porquê. É para vocês pensarem que ela ainda está. Ninguém pode saber que fui abandonado. Sempre que bato não é ninguém que está por baixo desse barulho. Vocês todos pensam que ela não sai porque sofre da vergonha dos vizinhos. Enquanto não...

Severino tinha pressa de sair.Saíde estava com os braços desmaiados, caídos ao lado do corpo. Parecia que a carne se mudara em madeira e que a desgraça havia esculpido nela. Severino saiu, fechando a porta com o cuidado que se guarda para o sono das crianças.

Lá fora uma multidão aguardava das notícias. O chefe do quarteirão, com um gesto vago, espalhou a sua voz:

- Já podem ir. A mamã Júlia está bem. Ela está a pedir que voltem para vossas casas, dormirem descansados.

Alguém prostetou:

-Mas Severino...Afinal, como é? Tanto barulho...

O chefe do quarteirão, com sorriso atrapalhado:

-Eh pá, você já sabe como são essas nossas mulheres."

terça-feira, 28 de outubro de 2014

CONTO DE RESIGNAÇÃO





Luz que me ilumina o caminho e que me ajuda a seguir
Sol que brilha à noite e a qualquer hora Me fazendo sorrir
Claridade, fonte de amor que me acalma e seduz
                                             Essa luz, Só pode ser Jesus!
(Roberto Carlos)

            Dona Maria José era uma dessas senhoras sofridas. Miúda e com os ombros meio curvados, que indicavam seus dias de dureza, casada com um homem da mesma estirpe, trabalhador sofrido, tinham cinco filhos, três homens e duas mulheres, que vieram como os degraus de uma escada, um atrás do outro. Durante aqueles primeiros vinte anos de vida conjugal, nunca reclamaram das agruras da vida. Dona Mazé, sempre sorrindo, nunca destilou seus momentos de penúria. Católica, era na igreja que, de joelhos, contava seus dias a Deus, como se este não soubesse. Agradecia pela sina, perceptiva que ali estava seu degrau de evolução. Certa vez uma vizinha menos discreta perguntou sobre seu sorriso franco e sua disposição para servir ao próximo. Sem desmanchar o riso dos lábios, inquiriu à outra o que deveria fazer, chorar, se lamuriar e para arrematar:
            – Quem chora, minha filha, baixa a cabeça, verga à terra e perde a coragem de enfrentar os dias que ainda vêm.
            Mas o que ela não sabia era que ainda viriam dias mais nublados, com chinfras de tempestade. Em 1989 seu Chico faleceu subitamente. Era hemofílico o homem. Numa dessas transfusões desastradas a encargo dos hemocentros contraiu micróbios que o mataram de repente. Consternação da família, consternação dos amigos e vizinhos. Dona Mazé com seu xale enxovalhado, seu terço na mão despediu-se do companheiro sem lágrima. Tinha preocupação com o futuro, ele urge, é eterna tormenta. Não para ela, que mesmo conhecendo os improvisos do tempo, sabia que a marcha é árdua e precisa ser retomada.
            A vida se ajeitou. Seu Chico era funcionário público, e a pensão mirrada ainda  dava para a família, agora aumentada pela chegada do neto, sem genro. A filha mais nova, com apenas 15 anos, se enrabichara por um homem casado, que a iludira com a promessa de deixar família. Ficou assim. O homem sumiu com família e tudo. Abandonada, a menina com o filho se ajeitaram no quarto de casal, enquanto Dona Mazé foi dormir no corredor. No outro quarto dormia a Vera, que se preparava para ingressar na faculdade e precisava de um pouco de privacidade. Na sala, os três rapazes, dos quais apenas o mais velho trabalhava de empacotador, dividiam um beliche e um lugar no sofá. Às cinco da manhã, aquela mulher com seu sorriso costumeiro era a primeira a sair da mercearia com as mãos ocupadas de pão e outros itens com que a família manteria o corpo de pé.
            No terceiro ano desta história, um fato novo veio sacudir os ossos magros da nossa amiga: o diagnóstico de hiv soropositivo. Os três filhos também hemofílicos estavam com o vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida. Durante toda sua vida os rapazes fizeram transfusões. E mesmo pela ameaça da AIDS, arrombando as portas dos lares brasileiros, entrando por todos os lados, os hemocentros ainda transfundiam sangue sem a devida cautela. Henfil já morrera, e seu irmão Betinho já sabia ser soropositivo, mas os cuidados só viriam na década de 90. O diagnóstico dos rapazes viera no mesmo mês em que a namorada de Júnior, o mais velho, recebera a notícia da gravidez. O rapaz enlouquecera. Logo agora que acabava de receber a promoção no supermercado onde trabalhava. As noites naquela casa eram de sofrimento, de dor. Inconformado, o futuro pai só dormia quando sua mãe lhe dava um calmante. A doença cruel e o desespero o debilitaram rapidamente. Nós, da vizinhança, só soubemos do desastre pouco antes de sua morte, poucos dias antes do nascimento da filha. Dona Mazé mais uma vez segurou com altivez aquela barra pesada que Deus lhe dera, não dava para lamentar, a vida seguia, com dois filhos para tratar. Para sorte, a netinha deu negativo.
            Mas os infortúnios se seguiram. Felipe, teve agravado seu estado de saúde, após um diagnóstico de leptospirose. Não sofreu, pelo menos não demonstrou. Tinha o sangue paciente e conformado da mãe. No dia que foi para hospital pela derradeira vez, sabendo que não voltaria, despediu-se dos mais próximos, com um sorriso magro e  olhos fitos no futuro. Dizem que quando chegou ao hospital não padeceu. Consolou os desolados e desencarnou ciente do dever cumprido. O choro mais uma vez não teve abrigo nos olhos de Dona Mazé. Resignada, buscou a ajuda do poder municipal. Era preciso ajeitar a casa, pois o terceiro neto já vinha a caminho. Era a mensagem de que a vida continua e ali estava ela, disposta a não se dar cabo, a não se entregar.
            E foi com os olhos, agora presos em grossas lentes, com seu sorriso magro e ombros mais curvados que deu a notícia de que a filha mais velha, a Vera, deixara a família para morar com uma dona que trabalhava de cantineira na escola municipal próxima. Eram, agora, apenas ela, o filho com hiv e dois netos, que a outra filha deixara, antes de sumir com um caminhoneiro. A nora fora embora com a netinha. Os dias que se seguiram foram de poucas mais importantes alegrias. Alexandre o único filho que lhe restara se dera bem com os novos tratamentos e sorria por Deus lhe dar mais alguns anos sobre a Terra. A casinha humilde continuou assim. Mas quem passasse por lá e desse uma ligeira olhada para seu interior, veria uma alegre luz que vinha de algum ponto que não se sabia ao certo de onde. Possivelmente essa luz nascia no seio daquela pobre mulher, para se irradiar em forma de alegria e resignação.
(Francisco Alves de Andrade, outubro de 2014)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A PROFESSORA NOVA


          
      Trinta anos de profissão, sala de aula, dura lida com aqueles meninos e meninas, mais aqueles que estas, esculpindo-a paulatinamente. Chegou então o grande dia, já fora de hora: a aposentadoria. Os meninos estavam tão risonhos e felizes que até contrariavam a velha mestra. Mas essa ideia contrastava com a festa de despedida. Durante dias os meninos e as meninas se revezaram num esforço contínuo, às escondidas, segredo de lesa-turma. Ninguém podia saber da festa. A despedida. Pediram discurso, os pequenos. Ela com lágrimas nos olhos quase desistiu de vestir a camisola. Mas foi. Abraçou um a uma, e eles o fizeram, como nunca tinham feito.
            Havia, porém, uma incógnita: quem substituiria Professora Maria, na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever àqueles pestinha? Logo que se iniciou a semana seguinte ao afastamento, os pequenos, e principalmente os pequenos, exigiram uma professora nova. A ponto de irem até o gabinete da diretora para falar a ela que queriam uma professora nova. A diretora, durante o intervalo, comentou com os professores e as professoras sobre os meninos:
          — Ora vejam só, a gente pensa que esses pestinhas não gostam de estudar! Mas foi só a Maria se aposentar, já vieram à minha sala exigir uma professora nova. Bem ajuizados são eles. Benza-os, Deus!

          A semana se prolongou com dona Fátima solicitando à Secretaria de Educação uma professora nova para substituir Maria, alegando que, além de estarem com o aprendizado prejudicado, os pequenos gostavam muito de estudar e não podiam perder o gosto pelas aulas. O dilema, felizmente, durou pouco. Duas semanas após os acontecimentos narrados, chegou à escola dona Lúcia. Vinha da própria Secretaria. Além de exímia professora era considerada uma das mais experientes técnicas em educação infantil. Faltava a ela cinco anos para a aposentadoria, e era seu desejo terminar sua carreira em sala de aula. Quando dona Fátima recebeu essa notícia, um sorriso lhe alargou a boca de orelha a orelha. “nossa! como os meninos vão ficar felizes”. E foi ela pessoalmente apresentar a nova mesta aos pequenos estudiosos. Entretanto, para sua surpresa, não houve nenhuma atitude que denotasse a alegria dos pequenos, sobretudo dos pequenos. E o sobressalto foi maior quando um dos bem pequenos levantou-se em protesto para dizer em nome da turma:
             — Diretora, nós queremos é uma professora nova, novinha estralando!

(Professor Alves, baseado em um fato ocorrido na EEFM Gonzaga Mota, em Messejana)