O Povo
Não posso deixar de concordar com tudo que dizem do povo. É uma posição impopular, eu sei, mas o que fazer? É a hora da verdade. O povo que me perdoe, mas ele merece tudo o que se tem dito dele. E muito mais.
As opiniões recentemente emitidas sobre ao povo até agora foram tolerantes. Disseram, por exemplo, que o povo se comporta mal em grenais. Disseram que o povo é corrupto. Por um natural escrúpulo, não quiseram ir mais longe. Pois eu não tenho escrúpulo.
O povo se comporta mal em toda parte, não apenas no futebol. O povo tem péssimas maneiras. O povo se veste mal. Não raro, cheira mal também. O povo faz xixi e cocô em escala industrial. Se não houvesse povo, não teríamos o problema ecológico. O povo não sabe comer. O povo tem um gosto deplorável. O povo é insensível. O povo é vulgar.
A chamada explosão demográfica é culpa exclusivamente do povo. O povo se reproduz numa proporção verdadeiramente suicida. O povo é promíscuo e sem-vergonha. A superpopulação nos grandes centros se deve ao povo. As lamentáveis favelas que tanto prejudicam nossa paisagem urbana foram inventadas pelo povo, que as mantém contra os preceitos da higiene e da estética.
Responda, sem meias palavras: haveria os problemas de trânsito se não fosse pelo povo? O povo é um estorvo.
É notória a incapacidade política do povo. O povo não sabe votar. Quando vota, invariavelmente vota em candidatos populares que, justamente por agradarem ao povo, não podem ser boa coisa.
O povo é pouco saudável. Há, sabidamente, 95 por cento mais cáries dentáries entre o povo. O índice de morte por má nutrição entre o povo é assustador. O povo não se cuida. Estão sempre sendo atropelados. Isto quando não se matam entre si. O banditismo campeia entre o povo. O povo é ladrão. O povo é viciado. O povo é doido. O povo é imprevisível. O povo é um perigo.
O povo não tem a mínima cultura. Muitos nem sabem ler ou escrever. O povo não viaja, não se interessa por boa música ou literatura, não vai a museus. O povo não gosta de trabalho criativo, prefere empregos ignóbeis e aviltantes. Isto quando trabalha, pois há os que preferem o ócio contemplativo, embaixo de pontes. Se não fosse o povo nossa economia funcionaria como uma máquina. Todo mundo seria mais feliz sem o povo. O povo é deprimente. O povo deveria ser eliminado.
Luis Fernando Veríssimo
Há muito tempo conheço esse texto, e ele sempre me pareceu normal, normal, normal (como diria Jessier Quirino). Nessa semana, procurando-o na internet, encontrei-o em alguns blogs. Há muitos comentários a seu respeito. Em todos eles, o autor, Veríssimo, é defenestrado, em alguns casos até menoscabado, pela sua suposta visão de povo. Quem não conhece o autor, pela obra é claro, lendo esse texto e não parar para fazer análise da figura de linguagem denominada IRONIA, com certeza vai ter atitude semelhante à daqueles que fizeram os comentários supracitados. é preciso que vejamos nele a ideia, não do autor, mas a da elite encarnada nele. Como o poeta é capaz de se travestir, de se multiplicar a si mesmo(desculpem a redundância), Veríssimo trai o seu nome (verdadeiro ao extremo) para fazer o mesmo. Essa é a visão que a elite tem do povo, das massas, para ela o causador de todos os males sociais é o povo. Quando Veríssimo enfatiza isso, surge então toda sua ironia de deboche contra a burguesia, que fede, mas que tem dinheiro pra comprar perfume.
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