quarta-feira, 28 de julho de 2010

CRÔNICA DA DESCONFIANÇA OU DA VERDADE INAUDITA


O lugar era um desses sítios pequenos que há pelo sertão, cujo dono não deu asas aos hectares devido ao escaldante sol que assola essas regiões. É sempre ideia comprar um sítio, para depois plantar, irrigar, construir um balneário às margens do açude. Enfim transformar a Natureza. Mas a natureza do sertão é áspera, incontrolável, arisca. Desafia a qualquer um que pretenda transformá-la num paraíso. E logo desistem. Até porque os proprietários desses sítios não entendem nada de sertão. Entendem muito mais de cidade. São comerciantes da capital, juízes, desembargadores, médicos, que nasceram no sertão e tiveram de deixá-lo para melhorar seus dias. E quando conseguem um padrão de vida invejável, retornam a ele, adquirem um pedaço de terra com os intuitos já mencionados. Muitas vezes, em suas viagens, veem pedaços de chão verdes, plantações de dar águas nos olhos e seus donos de risos fartos. Imaginam logo ser fácil conseguir um terreno igual. Fazem planos, mas não têm tempo, suas ocupações citadinas e mundanas não lhes permitem a realização de seus ideais bucólicos. Com o tempo se resignam, e a casa se torna num simples lugar para se passar o tempo quando vem visitar os seus, para dar uma festinha de aniversário ou passar a Semana Santa. Então a natureza ao redor agradece para poder, livre, realizar sua autêntica vocação.
Era num sítio desses em que me encontrava e admirava a natureza agreste ao redor do casarão. Um barulho infernal, misto de gritos de crianças, vozes de mulheres e homens, além de uma música quase inaudível pela colisão de notas e acordes eram a trilha sonora daquele momento. Poucos eram os meus conhecidos ali, os que aasim eram estavam ocupados em suas mesas com seus amigos, copos de bebidas e garfadas de carne. Logo me vi só, observando a natureza. Quando chegou um casal que me pareceu simpático. Os dois traziam a tiracolo uma criança de aproximadamente nove anos. Estava formada a tríade familiar: pai, mãe e filha. Veio-me a ideia da imagem que o cronista Fernando Sabino tivera ao ver o casal de pretos acompanhado da filha negrinha. Passou-me pela memória rápido a história da última cônica. Bem que eu poderia aproveitar a solidão do momento para escrever algo. Não sou cronista nem contista, mesmo assim seria estranho, numa festa com barulho intenso, alguém sacar de um papel e uma caneta, ou mesmo de um "notebook" e escrever diante dos olhos pasmados de algum espectador desafortunado. Foi a inexperiência como trabalho de escritor que me levou a esse desatino. O casal acenou para os amigos, e os três ocuparam uma mesa espremida entre tantas outras. Ele tinha um ar agradável, sorridente, amigo; ela, não ficava atrás, entretanto sua simpatia era um pouco inibida pelos cuidados com a garotinha, cujos olhos furtivos buscavam alguém que tivesse sua idade, com quem pudesse brincar.
Olhei em volta, vi e ouvi as mesmas cenas de antes, com execção de algumas frases pronunciadas já com um pouco mais de intonação e veemência, efeitos do álcool provavelmente. Meus olhos então voltaram para a família, quase sem querer. Mas algo me chamou deveras a atenção. O homem antes tão simpático e sorridente adquirira de súbito um ar empalecido, seus olhos estavam espantados como se tivessem visto fantasmas, seu rosto adquiriu uma palidez quase móbida, desses que só adquire quem vê alguém que não quer ver, ou alguém que quer desesperadamente encontrar, mas não espera dar de cara de modo tão inesperado. Em minha mente vieram histórias dos mais diversos matizes. Estava deveras ensimesmado, por isso cheguei a imaginar coisas. Será que ele vira a lâmina de um amor traído; será que vira alguém que lhe roubara ou tentara lhe roubar a felicidade; será que foram os olhos da mulher de sua vida que lhe cruzaram naquele momento!? Procurei ser o mais discreto que pude, girei a cabeça em torno, e não percebi ninguém, naquele espaço onde estávamos, digno de tamanho desconforto, pelo menos não que eu tenha visto. De volta ao rapaz, notei que o susto havia passado, mas o desconcerto não. Vi que tentava aparentar calma, mas não lhe era possível, respirava fundo, como quem busca o ar necessário para se manter de pé. Nesse momento a companheira saiu para procurar a pequena que lhe sumira das vistas. Ele levantou-se, com o pretexto de cumprimentar um amigo, acenou para outros. Nesse moemnto vi sua mão esquerda procurar e encontrar discreta e propositadamente uma outra, que apertou-a com a mesma discrição. Tomei um susto, olhei em volta, tive, porém, a impressão de que ninguém notara o gesto. Só eu, que estava desapercebido de tudo, vi, ou pensei ver, o que vi. Qundo ele passou daquele ponto, notei um par de olhos tão surpresos quanto os dele segui-lo, com o rosto tão lívido como os dele. Meio desconcertado fiquei diante do insólito. Daí a pouco ele retornou e tentando demonstrar tranquilidade, debruçou-se sobre uma mesa, riu amarelo, até tomou um pouco da cerveja que um amigo lhe serviu e voltou para a sua. Ao passar pelo alguém que lhe causara tanto rebuliço na alma, estacou mais uma vez e tocou-lhe a mão, desta feita num cumprimento, como os amigos que se dizem “há quanto tempo, por onde tens andado”, em volta ninguém os olhava, pelo menos de propósito, só eu, que não tinha com quem conversar. Ele bateu no ombro do outro como a pedir licença para se retirar, e voltou a sentar-se. A mulher falava algo com a filha e ele fitava o outro, e o outro não conseguia tirar os olhos de cima dele.
Naquele momentro fui subitamente arrebatado com a chegada de um parente o qual há tempo não via. Efusivamente me abraçou, disse o que se diz quando se encontra alguém que não esperava encontrar, apontou-me a mulher, pediu permissão e sentou. Falou da música, da cerveja que estava quente e da carne meio crua. Perguntei-lhe pelo trabalho, indaguei-lhe sobre os familiares e ri de alguma piada de improviso.
Meu canto de olho porém não deixava de mexericar o que estava acontecendo naquela mesa. O outro se aproximou, sentou-se e os dois ficaram sentados, lado a lado, estando ele entre a mulher e o outro. Não havia mais traços de desconcerto. A esposa, familiarizada com o amigo recém chegado, riu de algo que ele dissera, enquanto o marido colocou de leve a mão sobre a coxa do mesmo. Aos poucos a situação foi adquirindo um tom de normalidade. Os gestos tornaram-se meros, simples, fortuitos. Mesmo quando a esposa pediu licença e lenvantou para buscar a pequena, não vi nada demais. Eu comecei a me indagar se havia visto o que me pareceu uma intimidade exacerbada entre os dois, ou se eram meus sentidos aguçados pela ociosidade que me mostraram a cena com as lentes de aumento da desconfiança e da maledicência. Voltei-me, pois, para a minha, e quase perdia o fim da piada que meu primo acabava de contar, quase perdia o riso, o que me fez lembrar de uma outra, que contei para seu deleite e da esposa, a qual ele trouxera para junto de nós.
Passado algum tempo, com o fim da cerveja e a chegada da noite, resolvi me ir. Despedi-me. Saí. Antes porém de descer os degraus do batente, olhei uma última vez e vi, por baixo da mesa, dez dedos que se tocavam com certo nervosismo.
(Professor Alves, 28/07/2010)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

ANDANDO PELOS SERTÕES





ANDANDO PELOS SERTÕES



REDONDILHAS


PARA


GONÇALO AMÉRICO SABÓIA


POR PROFESSOR ALVES



              I

Andando pelo sertão,
Vê-se muita coisa bonita,
Coisa de encher os olhos
E apertar o coração,
Como diria Gonzaga,
Aquele rei do baião.

Vê-se homem de pé no chão,
Trazendo enxada às costas,
Grande chapéu na cabeça,
A terra é a profissão,
Ambição, disso não cuida,
Nos olhos muita emoção.

Vê-se mulher sem vaidade,
Que trabalha fora e em casa,
É devota de Maria
Traz no seu peito saudade
De algo que nunca viveu,
Vive de fidelidade.

(Mas há os que andam de carrão,
Ostentam roupa e dinheiro,
Falam até línguas estranhas,
No dedo trazem anelão,
Prefeitos que o povo iludem.
Esses num cogito não.)


               II
Conheci numa cidade
Muito distante daqui
Um sertanejo, antes, forte
E de muita lealdade,
Que sempre doou amor
Aos seus e à sociedade.

Já o sabia é bem verdade,
Porém foi numa entrevista,
Que pelo rádio assisti,
Que vi a realidade
Compreendi de repente
Sua virtuosidade.



O homem de que vos falo
Mora lá em Independência
É amigo de toda gente
Bem conhece do sol o halo
Tem sobrenome Sabóia:
Eis em cena seu Gonçalo.
                
             III

Dezembro no dia dez,
O ano era dois mil e cinco,
Quando adentrou o recinto,
Olhando meio de viés
Tímido meio nervoso
Pensou nos amigos fiéis.

Era um fato inusitado,
Mesmo pra ele, corrido,
Passado na casca do alho,
Às falas acostumado,
Cumprimentou a todos
Por quem fora convidado.

Falando meio estorvado,
Nas palavras tropeçando,
Cuidando pra não errar,
A respeito do passado
Foi respondendo com calma,
Logo estava acostumado.

Dominou a situação,
Sorriu, falou de tristezas,
Alegrias e revezes,
Falou até de paixão,
Por modéstia, é bem claro,
Não falou sobre avião.

Na seqüência vou falar
Aquilo que ele falou
De modo meio impreciso
Vou procurar precisar
Vou repetir o que disse
Se engenho e arte deixar.

                  
                 IV

VIDA E PAIXÃO
                                                                              
Lndeza, foi o local,
Dia, dezesseis de junho,
O ano, mil nove três nove,
Vim de Dúlia e Pascoal,
Criador e agricultor
E de couro oficial.

Não precisei ser Jesus
(com todo respeito é claro)
Mas fui buscar minha sina,
Lá longe no alto da Cruz,
Nessas curvas encontrei
Freitinha feita de luz.

Infância se tive não sei,
Brincar não soube o que foi,
Com pai trabalhava sempre,
Não tive vida de rei,
Com irmã não podia brincar,
Labutando assim levei.

Cheguei à maioridade,
O exército fui servir
Lá a vida não era mole
Tinha mais severidade
Voltei depois para casa
Pra minha realidade.

Quando já era rapaz feito:
─ Meu pai, vou namorar
─ Vai filho – disse ele –
Depois que vier do eito.
E assim foi a juventude,
Cresci assim desse jeito.

Só tive uma paixão,
Pouco tempo namorei,
Com esta que vêem ao meu lado,
Dona do meu coração,
Mãe dos meus seis filhos...
(A voz tremeu de emoção)

  
Mas não reclamo da vida,
Foi muito melhor assim,
No mundo, muito aprendi.
É melhor seguir a lida,
E crescer pegando calo
Que família dividida.

            V

DOS AMIGOS

Amigo é como um tesouro
É uma palavra bem curta
Com pouca letra se escreve
É como uma lavra de ouro
Quem tiver um que cuide,
Por ele se venda o couro.

Dizem que estranho não há
Nem inimigos existem
O que existem são amigos
Que esqueceram de mostrar
Todos os entes do mundo
Nos amam e nos deixam amar.

Mas é outra a realidade
Que se encontra pelo mundo,
Amigo existe bem pouco,
Quase nenhum, é verdade,
Poucos que há, quando se vão,
Nos deixam muita saudade.

Às vezes penso comigo
Onde está, meu primo, morto,
O outro mora lá em Brasília,
Busco na lembrança abrigo,
Mas posso jurar a todos
Meu pai: meu herói e amigo.


Minha mãe, vou esquecer não,
As irmãs, as companheiras.
Os meus filhos: brasa e Alice,
Gileno e Pascoal, são,
Verônica e Bonifácio,
A verdadeira paixão.


               VI

E SOBRE EDUCAÇÃO

Desde cedo trabalhei,
Não tive como estudar,
Mas acredito no estudo,
Porém dele não cuidei,
Mas respeito o professor
E a cartilha que deixei.

Posso dizer por primeiro,
No que consiste à escola,
Preferi pegar cavalo,
Lá distante no Pinheiro,
Que abrir carta de abecê,
Nisso sou bem verdadeiro.

Só no meio da existência,
Instado por Altair,
Minha irmã, que Deus a tenha,
Busquei na escola a eminência,
Hoje sou alfabetizado,
Do mundo faço inferência.

Por não ter educação,
Pros meus filhos trabalhei,
Contei com ajuda da irmã
Provei que aprendi lição,
Batalhei de sol a sol
Pra eles terem profissão.

Hoje estão todos criados
E vivem bem independentes,
Em suas casas morando,
Na faculdade formados,
Tudo por amor do estudo,
Logo estou bem conformado.

                     VII

A RESPEITO DA MORTE

Sobre a certeza iminente,
Da qual não escaparemos,
Digo que nela não cria
Até que foi um parente,
Pensava ser fantasia,
Fiquei triste certamente.


Quando a gente não conhece
A face negra da morte,
Que vida é eterna achamos,
Até que um dia acontece:
Leva um, dois, três, quatro e mais,
Nunca mais desaparece.

Mas num é apenas de morte
Que a gente aos poucos some,
A terra é um grande flagelo
Que define a nossa sorte
Mata-nos ainda em vida,
Mais o pobre, de sul a norte.

                 VIII

DE FELICIDADE E ALEGRIA

São muitas as alegrias
Por que passei nesta vida:
Ver o sol nascer é uma,
Cruzar do país as vias,
Ver o sol quentar a terra,
A chuva correr por dias.

Cada filho que nasceu,
Foi grande a felicidade,
Cada um que se formou,
Gota alegre mereceu,
Pelos netos que vieram,
Rio de lágrima correu.

Estar aqui meus senhores
Me deixa bastante alegre,
Voltar para casa agora
Lhes juro não causa dores.
Obrigado estou a todos
Por falar de meus amores.

‘Brigado primeiro a Deus,
Depois a Nossa Santana.
Agradeço a minha esposa
Que aceita os humores meus.
Até breve, Abel, amigo,
Um abraço aos caros seus.

  
FRASES DITAS DURANTE A ENTREEVISTA  QUE REVELAM O CONHECIMENTO DE MUNDO DE SEU GONÇALO ALÉM DE SUA VEIA POÉTICA.

“Meu pai enquanto vivo foi o melhor amigo que tive.”

“Preferia pegar cavalo no Pinheiro que abrir carta de ABC.”

“Amigo a gente escreve com pouca letra, mas é complicado.”

“Camarada a gente tem muito, mas amigo é complicado.”

“Eu pensei que a gente não morria. Eu via os outros morrerem, mas pensei que os meus não iam morrer.”

“A terra não come a gente só quando a gente morre, ela começa a roer ainda em vida.”

“A minha infância é algo meio complicado. Entendo que infância é a vida de criança. E eu não tinha tempo não.”

“Comerciante eu não fui. Eu tinha uma merendeira. Os ricos colocam uma lanchonete e os pobres, uma merendeira. (risos)”
 03/08/2006