Trata-se de textos escritos a partir de experiências com pessoas, jovens e/ou adultas, para levar à reflexão sobre alguns aspectos da vida, como política, literatura, História, Felicidade. DEIXE UM COMENTÁRIO
domingo, 13 de julho de 2014
sexta-feira, 11 de julho de 2014
A CARTOMANTE
A
Machado de Assis
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são
assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo
da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar
as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que
sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me
que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo,
rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se
você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não
ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e
olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos
pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor
cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente
andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita
cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda
Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas
coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber
que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e
verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a
cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila
e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas
reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e
ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a
mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair
toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse
recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em
uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia
dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal,
porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do
mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele
ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava,
mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais
que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do
encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de
Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde
residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da
cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três
nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois
primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado.
Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo
médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe
arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província,
onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir
banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a
bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita,
estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do
senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com
ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a
mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e
viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais
velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e
seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a
mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe
tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço
de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência
trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o
foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos
sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o
faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não
o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era
a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita.
Odor di femina: eis o que
ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os
mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o
xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco
menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita,
que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao
marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu
de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um
vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração;
não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há
vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em
que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o
carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir,
mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o
todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele
ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de
mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não
tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços
dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada
mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e
estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo
uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era
sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a
rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo
respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia.
As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que
entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os
obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita,
desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira
causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a
confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda
algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas,
que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente;
tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou
este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel;
só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais
sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então
sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os
sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se
alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a
algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como
desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram.
A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode
ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo
divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia.
Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os
meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com
lágrimas.
No dia seguinte, estando na
repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa
casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu
logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por
que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou
ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia
da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa;
preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da
orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na
pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para
matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso
repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a
casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou
nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe
cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria
pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A
mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto
fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e
nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos
olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao
ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso
falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de
mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A
comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que
chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir
armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era
útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o
passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou
e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou
ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo
veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o
perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua
estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o
obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda,
ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez,
e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas
fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do
incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi,
para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das
camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as
superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir
por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para
fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a
cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas;
desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu
outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua,
gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o
obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do
marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já,
já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As
pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu
opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe
repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de
Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que
sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da
porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu
a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas
ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia
de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes
latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher;
era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali
subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em
cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados
do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes
aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar
diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de
maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta
e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava,
rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma
mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e
agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que
o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um
gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela,
se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente
ele.
A cartomante não sorriu;
disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com
os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços,
uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos
nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber
uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada.
Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não
obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos.
Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava
deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz
ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da
cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo
innamorato...
E de pé, com o dedo indicador,
tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e
levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com
passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando
duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a
mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como
pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse
ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração,
respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez
mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois
mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta
muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a
escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado
a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo
despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a
cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo
achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor,
as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras
joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos
da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele
lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em
demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa,
repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a
demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de
aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os
planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara
o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não
adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas
e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o
mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si
mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a
exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da
despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com
os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia
alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de
vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora,
até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do
futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de
Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava
silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta
abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais
cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha
as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior.
Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o
canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com
dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
terça-feira, 8 de julho de 2014
QUE VENÇA O MELHOR
QUE VENÇA O MELHOR
Afligem-me as
expectativas com relação ao resultado do jogo entre Brasil e Alemanha, pelas
semifinais da copa do mundo de 2014. Me afligem e me deixam preocupado, se é
que as duas expressões não são sinônimas, porque eu não vi nem ouvi de nenhuma “personalidade” do mundo do futebol e/ou do
mundo da televisão, da política ou da
religiosidade brasileira, pessoas que são formadoras de opinião em nossos
brotos, uma resposta do tipo “QUE VENÇA O MELHOR”. Todos são unânimes: TEM QUE
DAR BRASIL! E eu me pergunto “como assim, tem que dar Brasil?”.
Pode ser que
alguém queira saber o porquê de meu espanto. E aí é que vem a reflexão.
Imaginemos que todos nós, pais, professores, mães, tias, pastores, padres, líderes
espíritas e até alguns políticos, queiramos um país de bem, um país em que se
respeitem as faixas de pedestres, a leis constitucionais, o pagamento de impostos de forma consciente, as leis de trânsito
e que se tenha até orgulho dos nossos velhinhos, aposentados que tanto têm para
ensinar aos nossos adolescentes inconsequentes. Se isso for verdade, não
podemos admitir que seja verdadeira a premissa de que o Brasil tem que vencer a
qualquer custo. Com gol de pênalti mal marcado aos 49 do segundo tempo, como
ouvi de comentaristas esportivo. É preciso, pois, que se pregue para nossas
crianças e adolescentes: QUE VENÇA O MELHOR.
Recentemente
assisti a uma palestra (e dela participei) cujo tema era exatamente a maior
perda de todas: a morte. E eu então faço a seguinte pergunta: como podemos
querer que nossas crianças e nossos adolescentes se preparem para perdas grandes
se não as educamos para a perda de um mínimo campeonato de futebol, quem não
vale nada? Como queremos que nossos adolescentes, grande preocupação de pais e
educadores, respeitem as leis naturais e as leis criadas pelos homens; como
podemos querer que o Brasil no futuro seja um país grande com pessoas sensatas,
honestas; como podemos querer que nossas crianças sejam, no futuro, políticos
honestos que conduzam o Brasil ao primeiro mundo, se nós adultos dizemos em
alto e bom som: temos que ganhar de qualquer maneira? Quão imbecis somos, não?
Quando escrevi
a respeito de Brasil 3 X 1 Croata e aquele pênalti mal marcado, recebi algumas
críticas. Compreendi então que me achavam tremendo idiota, imbecil. É
preferível ganhar, mesmo que seja desonestamente. Assim os políticos que
colocamos no poder eleições após eleições, estão isentos de qualquer punição,
pois somos nós que damos a eles o aval: é preciso lucrar, ganhar, não importa
como. Mas sei que não. As pessoas, coitadas, embriagadas pelo vinho
entorpecedor do materialismo, do imediatismo é que estão equivocadas, porque a
euforia da vitória passará, mas a lição de que é preferível vencer a qualquer
preço ficará na mente de nossas crianças e adolescentes, até que se tornem
adultos e achem normal, roubar, traficar, sonegar, desrespeitar. É por isso que
digo ao meu filho QUE VENÇA O MELHOR!
(Francisco
Alves de Andrade, 08 de julho de 2014, 14:24 h)
domingo, 6 de julho de 2014
sexta-feira, 4 de julho de 2014
terça-feira, 17 de junho de 2014
ESCRITO PELAS ESTRELAS
Não existem estranhos.
O que há são amigos
que ainda não nos foram
apresentados.
(Charlie Chaplin)
Velha História,
de Mário Quintana, o eterno poeta de alegrete, nos conta a provável história
entre um homem sério, que se vestia de negro e tinha um ar preocupado, e um
peixinho pequenino, de escamas azuladas e grande ar de inocência. O que torna verossimilhante
essa fantástica fábula são os mesmos fatores que tornaram possíveis duas outras
histórias extraordinárias que narro a
seguir.
A primeira vem de um romance de ficção e se reporta
à amizade entre dois adolescentes com câncer em estado terminal. O que torna inverossímil
e ao mesmo termo provável esse interminável laço é a distância que os envolve
numa aura de poesia em busca de suas últimas realizações. Enquanto pessoas
saudáveis estão nesse momento em busca da morte pelo desencanto extraqualquer
coisa, eles buscaram, não solução para seus males, irreversíveis, mas força
para viverem os últimos instantes. É, amparados um no outros, que veem suas
vidas se prolongarem por tempo indeterminado, até que, por fim, a morte os une definitivamente.
A outra é um fato
real, mas que se fosse ficção, também não causaria estranhamento. É a história
de um americano e um motoboy brasileiro, unidos por uma paixão chamada futebol.
Que magia tem esse esporte de atender aos apelos das estrelas e então se
realizar para que destinos possam se encontrar! Como diria Caetano, “é incrível
a força que as coisas parecem ter, quando precisam acontecer”. Eu não vi e não
ouvi a história por completo, mas acho que basta a ideia do aluguel de um lugar
para ficar numa comunidade humilde como Itaquera, próximo ao local de abertura
da copa, a vontade de passear, conhecer outro modus vivendi, o encontro quase
fortuito com o motoboy, o sorriso, a aproximação magnética, como dois ímãs que
se atraem pelos opostos. Imagino em outra vida, os dois destinos separados
abruptamente. Amigos, cônjuges, pai e filho? Não importa. Lá na pátria maior,
os dois se buscando. E aqui os dois se reencontrando. Parece que o americano
quis ficar na humilde moradia do novo amigo, que surpreso recebeu das mãos
daquele o ingresso tão sonhado para assistir à estreia do evento maior do
futebol. Não por pagamento, mas por coroamento do contrato feito na outra
pátria, a maior.
É o mesmo sentimento que tornou possível a amizade
entre o peixinho e o homem, entre a jovem e o jovem do romance de John Green, que
uniu brasileiro e americano. É o mesmo sentimento que torna possível o que não
tem explicação. Isso se chama AMOR. Esse sentimento maior, que a todo instante
é confundido com outros menores. É o AMOR imensurável, divino, sublime, coordenado
do alto pelas estrelas pela diafaneidade do invisível que envia à terra, a todo
instante, a energia de que precisa a humanidade para sua evolução.
(Francisco Alves, junho de 2014)
segunda-feira, 16 de junho de 2014
OUTRA NEGA FULÔ
O sinhô foi
açoitar
A outra nega
Fulô
– ou será
que era a mesma?
A nega tirou
a saia,
A blusa e se
pelou ,
O sinhô
ficou tarado,
Largou o
relho e se engraçou.
A nega em
vez de deitar
Pegou um pau
e sampou
Nas guampas
do sinhô.
– Essa nega
Fulô!
Esta nossa
Fulô!,
Dizia
intimamente satisfeito
O velho pai
João
Para escândalo
do bom Jorge de Lima,
Seminegro e
cristão.
E a mãe
preta chegou bem cretina
Fingindo uma
dor no coração.
– Fulô!
Fulô! Fulô!
A sinhá
burra e besta perguntou
Onde é que
tava o sinhô
Que o diabo lhe
mandou.
– Ah, foi
você que matou!
– É sim, fui
eu que matou –
Disse bem
longe a nega Fulô
Pro seu
nego, que levou
Ela pro
mato, e com ele
Aí sim ela
deitou.
Essa nega
Fulô!
Esta nossa
Fulô!
(Oliveira Siveira)
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