quarta-feira, 24 de setembro de 2025

JOÃO E MARIA - IRMÃOS GRIMM

 

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Em frente a uma grande floresta morava um pobre lenhador com a mulher e dois filhinhos: João e Maria. Tinham pouco com que se alimentar e na cidade tudo estava caro, nem mesmo o pão de cada dia conseguiam mais comprar.Numa dessas noites, o lenhador atormentado pelas preocupações não conseguia dormir e ficava se revirando inquieto na cama e, entre um suspiro e outro, perguntou à mulher, que era madrasta das crianças:

— Que será de nós? Como alimentaremos nossos filhinhos, se nada temos nem para nós?

— Escuta aqui, meu caro marido — respondeu ela —, amanhã cedo os levaremos para o meio da floresta. Lá acenderemos uma fogueira e lhes daremos um pedaço de pão para que se alimentem. Depois iremos para o nosso trabalho e os deixaremos lá sozinhos. Eles não conseguirão encontrar o caminho de casa e assim ficaremos livres deles.

— Não, mulher, não posso fazer isso. Se abandonar meus filhos sozinhos na floresta, não tardarão as feras a devorá-los, como poderei viver depois?

— És um tolo, isso sim. Teremos de morrer os quatro de fome e nada te resta se não aplainar as tábuas para os nossos caixões.

Contudo, não deu sossego ao pobre marido até ele concordar. — Mas as pobres crianças causam-me uma pena imensa! — repetia ele.

As crianças, de tanta fome, também não conseguiam dormir. Por isso, ouviram tudo o que a madrasta dizia ao pai. Chorando copiosamente, Maria disse ao irmão:

— Estamos perdidos!

— Não se preocupe — respondeu João —, não tenha medo, eu sei o que fazer.

Assim que os velhos adormeceram, João levantou-se bem de mansinho, vestiu o paletó, abriu a porta da frente e saiu. A lua resplandecia e as pedras branquinhas cintilavam diante da casa. O menino as apanhou e meteu nos bolsos quantas pôde. Depois voltou para casa e disse a Maria:— Fique tranquila, querida irmãzinha, e dorme sossegada. Deus não nos abandonará.

E deitou-se novamente.

Ao amanhecer, antes ainda do sol raiar, a mulher acordou as crianças, dizendo:

— Levantem-se, seus preguiçosos. Vamos catar lenha na floresta. Deu um pedaço de pão a cada um e disse:

— Isto é para o almoço, mas não deveis comê-lo antes do meio-dia, se não nada mais tereis que comer depois.

Maria guardou o pão no avental pois João estava com os bolsos cheios de pedras. Em seguida, foram todos rumo à floresta. Tendo caminhado um certo trecho, João parou e voltou-se a olhar para a casa. Fez isso repetidas vezes, até que o pai, intrigado, lhe perguntou:

— Que tanto olhas, meu filho, e por que ficas sempre para trás? Vamos, apressa-te.

— Ah, papai — disse o menino —, estou olhando para o meu gatinho branco que, de cima do telhado, está acenando para mim.

— Tolo, não é o teu gato — interveio a mulher. — Não vês que é o sol da manhã brilhando na chaminé?

Mas João não olhava para gato nenhum, era apenas um pretexto para, todas as vezes, deixar cair no caminho uma das pedrinhas brilhantes que trazia no bolso.

Quando, finalmente, chegaram ao meio da floresta, disse-lhes o pai:

— Juntemos um pouco de lenha, meninos, vou acender uma fogueira para que não fiquem com frio.

João e Maria juntaram uma boa quantidade de gravetos e ramos secos, com os quais acenderam a fogueira. Assim que as chamas se elevaram, disse-lhes a mulher:

— Deitai-vos junto ao fogo, meninos, enquanto nós vamos rachar lenha.

Quando terminarmos o nosso trabalho, viremos buscar-vos.

João e Maria sentaram-se perto do fogo e, ao meio-dia, cada qual comeu o seu pedaço de pão. Ouvindo os golpes do machado, julgaram que o pai estivesse ali por perto, mas não era o machado, era simplesmente um galho que ele havia amarrado a uma árvore seca e que batia sacudido pelo vento. Ficaram muito tempo sentados junto do fogo; depois, por conta do cansaço, adormeceram profundamente. Quando despertaram, já era noite avançada. Maria começou a chorar com medo.

— Como sairemos da floresta?

— Espera um pouco — disse-lhe João para consolá-la —, espera até surgir a lua, aí encontraremos o caminho.

Não tardou, apareceu a lua resplandecente. João tomou a irmãzinha pela mão e juntos foram seguindo as pedrinhas, que brilhavam como moedas novas e lhes indicavam o caminho. Andaram a noite toda. Ao amanhecer, chegaram à casa do pai. Bateram à porta e, quando a mulher abriu, vendo os dois na sua frente, disse, muito zangada:

— Crianças preguiçosas, por que dormiram tanto na floresta? Até pensamos que não queriam mais voltar para casa.

O pai, ao contrário, alegrou-se ao vê-los, pois tinha remorso por tê-los abandonado lá sozinhos.

Assim passou certo tempo. Depois a miséria tornou a invadir a casa e, uma noite, quando estavam deitados, os meninos ouviram a madrasta dizer ao pai:

— Já comemos tudo o que havia em casa, só nos resta meio pão. É preciso levá-las embora. Desta vez, porém, para o fundo da floresta, para que não encontrem o caminho de volta. Não nos resta outra solução.

O homem sentiu o coração apertar e ia pensando: "Seria melhor dividir teu último pão com teus filhos", e relutava em concordar. A mulher, porém, não queria dar-lhe ouvido e censurava-o asperamente. Mas como havia cedido da primeira vez, viu-se forçado a ceder novamente.

As crianças, que ainda estavam acordadas, ouviram toda a conversa. Assim que os velhos adormeceram, João levantou-se novamente para sair de mansinho, como da outra vez, para catar as pedrinhas lá fora, mas a madrasta havia trancado a porta. Entretanto, consolou a irmãzinha, dizendo-lhe:

— Não chores, Maria, dorme sossegada. O bom Deus vai nos ajudar.

Ao raiar do dia, na manhã seguinte, a madrasta tirou as crianças da cama. Cada um deles recebeu um pedaço de pão, ainda menor que da vez anterior. No caminho para a floresta, João esfarelou-o no bolso e, de quando em quando, parava a fim de, jeitosamente, deixar cair as migalhas.

— Que tanto olhas para trás, João, e por que te demoras? — perguntou o pai.

— Estou olhando para o meu pombinho que está a dizer-me adeus de cima do telhado.

— És um tolo — disse a mulher —, não vês então que não é o teu pombinho, mas sim o sol nascente, que brilha na chaminé?

Entretanto, o menino foi, pouco a pouco, marcando o caminho com as migalhas.

Dessa vez a madrasta levou as crianças ainda mais para o interior da floresta, para um lugar onde jamais haviam estado. Acenderam, novamente, uma grande fogueira e ela disse-lhes:

— Ficai aqui, quietinhos, meninos. Quando estiverdes cansados, deitai-vos e dormi um pouco. Enquanto isso, nós iremos rachar lenha e, à tarde, ao terminar nosso trabalho, viremos buscar-vos.

Ao meio-dia, Maria repartiu seu pedaço de pão com o irmão. Depois adormeceram e anoiteceu, mas ninguém foi buscá-los. Acordaram quando a noite ia alta, e a menina começou a chorar. João consolou-a, dizendo:

— Espera até surgir a lua, aí então veremos as migalhas de pão que espalhei e por elas encontraremos o caminho de casa.

Quando surgiu a lua, levantaram-se, mas não encontraram mais nem uma só migalha. Os passarinhos, que andavam por toda parte, tinham comido todas. João então disse à Maria:

— Não tem importância, vamos encontrar o caminho de qualquer maneira. Não encontraram o caminho e andaram toda a noite e mais um dia inteiro sem conseguir sair da floresta. Estavam com uma fome tremenda, pois só tinham comido algumas amoras, e tão cansados que as pernas não se aguentavam mais. Então, deitaram-se debaixo de uma árvore e adormeceram.

Na manhã do terceiro dia, retornaram a procurar o caminho, mas cada vez se embrenhavam mais pela floresta e, se ninguém os ajudasse, certamente acabariam morrendo de fome.

Ao meio-dia, avistaram um lindo passarinho, branco como a neve, pousado num galho. Cantava tão lindamente que os meninos pararam para ouvi-lo. Quando acabou de cantar, saiu voando, e as crianças foram atrás dele. Assim chegaram a uma casinha onde o passarinho pousou no telhado. Aproximaram-se e viram que a casinha era feita de pão de ló e coberta de chocolate, com janelinhas de açúcar.

— Oba! — exclamou o menino satisfeito. — Podemos fazer uma excelente refeição. Eu comerei um pedaço do telhado e tu, Maria, podes comer um pedaço da janela: é doce.

João subiu na ponta dos pés, estendeu as mãos e arrancou um pedaço de telhado para provar. Maria começou a lamber os vidros da janela. Então, de dentro da casa, saiu uma vozinha estridente:

Rapa, rapa, rapinha,
Quem rapa a minha casinha?

Os meninos responderam:

— O vento, sou eu,
O filho do céu.

E continuaram comendo, sem se perturbar. João, que achava o telhado delicioso, arrancou um belo pedaço e Maria arrancou um vidro inteiro, redondo. Sentou-se no chão e comeu-o deliciada.

Mas, de repente, abriu-se a porta e num passo trôpego saiu uma velha bem idosa, apoiada numa muleta. João e Maria assustaram-se de tal maneira que deixaram cair o que tinham nas mãos. A velhinha, porém, disse-lhes:

— Ah, meus queridos meninos, quem vos trouxe aqui? Entrai e ficai comigo, aqui nenhum mal vos acontecerá.

Pegou-os pela mão e levou-os para dentro da casinha. Aí serviu-lhes uma deliciosa refeição, com leite e bolinhos, maçãs e nozes. Depois foram preparadas para eles duas lindas caminhas, muito limpas e alvas; João e Maria, muito cansados, deitaram-se, acreditando estar no céu.

A velha fingia ser muito boa, mas na verdade era uma bruxa muito má, que atraía as crianças, por isso construiu a casinha de pão de ló. E, quando caía alguma criança em suas mãos, ela matava-a, cozinhava-a e comia-a, e esse era um dia de festa.

As bruxas, geralmente, não enxergam bem e têm os olhos vermelhos, mas são dotadas de um olfato muito agudo, como os animais, o que lhes permite sentir o cheio de uma criança de longe. Portanto, quando João e Maria se aproximaram da casa, ela riu, dizendo com os seus botões: "Estes caíram em meu poder, não me escaparão mais."

Pela manhã, bem cedinho, antes que os meninos acordassem, levantou-se e foi espiá-los. Vendo-os bochechudos e coradinhos, a dormir como dois anjinhos, murmurou: "Que petisco delicioso vou ter!" E agarrando João, levou-o para um chiqueirinho, trancando-o dentro das grades de ferro. De nada lhe adiantou gritar e espernear.

Depois foi ter com Maria. Sacudiu a menina e gritou:

— Levanta-te, preguiçosa! Vai buscar água e prepara uma boa comidinha para teu irmão, que está preso no chiqueirinho e deve engordar. Pois, assim que estiver bem gordinho, quero comê-lo.

Maria começou a chorar copiosamente, mas seu pranto foi inútil e teve mesmo de fazer o que lhe ordenava a perversa bruxa.

Maria, então, preparava as refeições mais requintadas para o irmão, enquanto ela ficava só com as sobras. Cada manhã a velha ia até junto da grade e dizia:

— João, mostra-me teu dedinho, quero ver se está gordinho!

João, porém, mostrava-lhe sempre um ossinho e a velha, que não enxergava nem um palmo diante do nariz, julgava que fosse o dedo do menino e ficava muito admirada por ele nunca engordar. Passadas quatro semanas, visto que João continuava sempre magro, perdeu a paciência e resolveu não esperar mais.

— Vamos, Maria — ordenou —, traz água depressa. Gordo ou magro não importa, o matarei assim mesmo e amanhã o comerei.

Como chorou a pobre irmã ao ter de trazer a água! Como lhe corriam rios de lágrimas pelo rosto!

— Ah, Deus bondoso, ajuda-nos! — implorava ela. — Antes nos tivessem devorado as feras no meio da floresta! Pelo menos teríamos morrido juntos!

— Deixa de lamentações — gritou-lhe a velha —, elas de nada adiantam.

Pela manhã, bem cedinho, Maria teve de ir buscar água, encher o caldeirão e acender o fogo.

— Primeiro vamos assar o pão, já preparei a massa — disse a bruxa — e já acendi o forno.

Empurrou a pobre Maria para perto do forno do qual saíram grandes labaredas.

— Entra lá dentro — disse a velha — e vê se já está bem quente para poder assar o pão.

Assim, pensava a bruxa, quando Maria entrasse lá dentro, fecharia a boca do forno e a deixaria assar para comê-la também. A menina, porém, adivinhando sua intenção, disse:

— Eu não sei como se faz! Como é que se entra?

— Tonta, estúpida — disse a velha —, a abertura é bastante grande, olha, até eu poderia entrar!

Assim dizendo, abeirou-se da boca do forno, aproximando a cabeça. Maria, então, com um forte empurrão a fez entrar no forno e fechou rapidamente a porta de ferro com o cadeado. Uh! Que berros horríveis soltava a bruxa! Maria, porém, saiu correndo e a velha acabou morrendo, miseravelmente queimada.

Chegando ao galinheiro, a menina abriu a portinhola, dizendo ao irmão:

— João, corre, estamos livres. A velha bruxa morreu.

João então saiu pulando, alegre como um passarinho, ao lhe abrirem a gaiola. Com que felicidade se abraçaram e se beijaram, rindo e dançando! Como nada mais tinham a temer, percorreram a casinha da bruxa e viram espalhadas pelos cantos grandes arcas cheias de pérolas e pedras preciosas.

— Estas são bem melhores do que as pedrinhas lá de casa! — disse João, enquanto ia enchendo os bolsos até não poder mais.

— Eu também vou levar! — disse Maria, e foi enchendo o avental.

— Agora vamo-nos embora daqui — disse o irmão —, temos que sair da floresta da bruxa.

Após terem andado durante algumas horas, chegaram à margem de um rio muito largo.

— Não vamos conseguir atravessá-lo — disse João —, não vejo nem uma ponte.

— Nem mesmo um barquinho — disse a irmã —, mas olha, aí vem uma pata. Se lhe pedirmos, ela certamente nos ajudará a atravessar:

— Patinha, patinha,
Aqui estão João e Maria,
Não podemos passar,
Queres nos levar?

A pata se aproximou da margem e João sentou nas suas costas, dizendo à irmã que também sentasse, bem juntinho dele. Mas Maria respondeu:

— Vai ficar muito pesado. É melhor que ela nos leve um de cada vez. Assim fez a boa patinha. E quando felizmente chegaram ao outro lado, depois de caminharem bastante, a floresta foi-se tornando mais familiar até que finalmente viram a casa do pai. Correram em sua direção e, lá dentro, o abraçaram e o cobriram de beijos.

O pobre homem nunca mais tivera uma hora feliz desde que abandonara as crianças no meio da floresta. A mulher (para felicidade de todos) havia morrido. Então Maria sacudiu o avental, deixando rolar pelo chão as pedras preciosas. João acrescentou todo o conteúdo de seus bolsos.

Desde então, acabaram-se todos os sofrimentos e preocupações, e os três viveram felizes pelo resto da vida.

"Minha história acabou, um rato passou, quem o pegar poderá sua pele aproveitar."

quinta-feira, 15 de maio de 2025

SUBLIMAÇÃO A MÃE DE TODAS AS ARTES (uma monografia)

SUBLIMAÇÃO: A MÃE DE TODAS AS ARTES (uma monografia)

 

Introdução



Neste trabalho, desenvolveremos o conceito de Sublimação e Arte para confrontarmos a relação que existe entre a Psicanálise e a arte de um modo geral, mas dando destaque para a Literatura.

Acreditamos que essa abordagem seja relevante na medida em que a Arte é a flor que brota do charco em que muitas vezes se encontra mergulhado nosso ser. Assim como é necessária para quem precisa se livrar dessa lama, o artista, faz bem àquele que a admira ou apenas a mira. Assim, discutirmos um aspecto da arte e da Psicanálise, que é a sublimação, se justifica, principalmente, para os amantes das duas ciências, Arte e Psicanálise.

Partiremos do princípio de que a arte, que tem início na Pré-História e cuja finalidade, além de entretenimento e análise social, é também catarse. Assim, desenvolveremos nesse trabalho uma progressão da história da arte atrelando-a à busca de sublimação daquilo que mais aflige a humanidade: a angústia.




1. SUBLIMAÇÃO

De acordo com os estudos da Química, sublimação é a passagem da matéria do estado sólido para o estado gasoso. Ou seja, a passagem de um estado “grosseiro” para um estado sublime, volátil. Alguns estudiosos afirmam ainda sobre a ressublimação, ou o inverso desse fenômeno. Nesse caso, a matéria retornaria do estado gasoso para o estado sólido. Isso ocorreria para que a matéria em seu estado sólido, após retornar a ele, esteja devidamente purificado.

Em Psicanálise o termo SUBLIMAÇÃO é utilizado para indicar a conversão de uma pulsão sexual ou pulsão de morte (pulsão suicida/pulsão de agressividade) em algo sublime, gasoso. Como Freud era afeito a metáforas, conseguiu, através dessa relação entre a Química e as pulsões humanas, levar o termo sublimação para a psicanálise. Entretanto, Freud atentou, segundo Laplanche e Pontalis (1984), apenas para canalização das pulsões sexuais, quando o indivíduo transforma-as em obras de arte e afins, algo aceitável socialmente. Segundo ainda os autores supracitados, Freud pouco se reportou às pulsões de agressividade, ponto retomado com mais ênfase após ele. Podemos ainda afirmar que a sublimação não tem como resultado apenas obras de arte, o médico austríaco levava em conta também as invenções e as descobertas intelectuais. Assim, as invenções de Santos Dumont, seu intenso estudo, sua dedicação à vida acadêmica e à pesquisa seriam resultados pela sublimação de suas pulsões sexuais, ou, conforme afirma Freud em seu trabalho de 1930, O Mal-Estar na Civilização, “impulso desviado na meta”.

Sendo assim, a Arte gera prazer que substitui o prazer sexual. Esse mesmo prazer pode ser alcançado na realização de um trabalho. Para Freud, ainda em O Mal-Estar na Civilização, o trabalhador não percebe o prazer advindo da atividade profissional, a não ser que esta “seja escolhida livremente, isto é, quando se permite tornar úteis , através da sublimação, pendores existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados”.

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2. ARTE

Quando pequeno, muito pequeno, ouvia sempre minha mãe ralhando comigo e com meu irmão que “vocês vão acabar fazendo uma arte”. Isso se dava quando estávamos normalmente trepados em um pé de qualquer coisa, ou num balanço mais prolongado numa rede. Aquilo me soava como algo terrível, assustador. E era. Uma queda num balanço de rede levava à fratura de um membro, ou alguns ossos da costela trincados. Era algo extraordinário, diferente do que aconteceria num dia normal.

Isso é Arte, algo diferente, extraordinário, que emana normalmente de uma mente diferenciada, de uma mente que enobrece aquilo que muitas vezes nada tem de nobre. A pintura de Cândido Portinari, intitulada Retirantes, é uma descrição perfeita da angústia e da fragilidade do ser humano diante de um dos fenômenos mais terríveis que assola a humanidade, sobremaneira o Nordeste brasileiro, A Seca. Nesta obra de Arte, Portinari mantém um diálogo emocionante com outra obra de Arte da Literatura. Trata-se do romance Vidas Secas, do escritor alagoano Graciliano Ramos. Ambas as obras pertencem ao mesmo período, uma vez que Vidas Secas veio à lume em 1938, e Portinari trouxe, à mesma luz, seu Retirantes em 1940. Em 1963, Nelson Pereira dos Santos leva para as telas do cinema seu filme Vidas Secas. Temos, portanto, três expressões artísticas, a Literatura, a Pintura e a Cinematografia dialogando, cada qual a seu modo, sobre um tema social, que traz no seu bojo a fome, a exploração humana, a política oligarca entre outros aviltantes.

Quando falamos no parágrafo anterior de uma mente diferenciada, não queremos afirmar em um ser sobrenatural, mas apenas alguém que, em determinado momento, ousou fazer, seja na pintura, na Literatura, na Música ou em qualquer outro veio artístico aquilo que outros não ousaram. Entretanto, em breve muitos seguirão aquela ideia, realizando feitos de menor ou maior envergadura. Quando em 1944, influenciado pelos escritores europeus, o médico Joaquim Manuel de Macedo escreveu o romance A Moreninha, estava revolucionando a Arte romanesca no Brasil. Pela primeira vez aparecia nos textos literários feitos aqui no Brasil a figura da mulher tipicamente nacional, a paisagem europeia, descrita, ´por exemplo, por Álvares de Azevedo em seu Noites na Taverna, dava espaço para o paraíso tropical. Estava, pois, criado o romance nacional. Após Macedo, surgiram muitos outros artistas da palavra que seguiram o trilho construído por Macedo, entre eles, o cearense José de Alencar, o qual produziu uma obra de Arte de envergadura superior a de Joaquim Manuel de Macedo




3. Angústia



Do início de seus trabalhos, que culminarão com a sistematização da Psicanálise, até o ano de 1926, Freud realiza uma série de estudos sobre o problema da angústia. Michel Plon, em seu livro Inibição, Sintoma e Angústia, nos alerta que o próprio Freud não encontrou resposta definitiva, quando afirma: “o que é angústia? Com efeito a questão freudiana não encontrou sua resposta definitiva em 1926”. Nesse ano foi publicado o livro de Freud homônimo ao de Plon, e sobre o qual este se debruça para analisar o feito de Sigmund. Nele o pai da Psicanálise procura entender o fenômeno da angústia que assola grande parte dos seres humanos, em menor ou maior grau, sejam crianças ou adultos.

O que Freud busca é a origem sexual ou não desse problema. Para Freud a angústia seria resultado de forte tensão sexual, possivelmente não realizada. Mas o que interessa para nosso estudo é a divisão que ele faz da angústia. Para Freud existem dois tipos de angústia, sublinhados por Plon: “a angústia neurótica, decorrente da libido mal utilizada, e a angústia realista, resposta a um perigo”. A angústia neurótica teria como resultado as fobias. Medo de cobra, aranha, altura sem que haja nenhum motivo aparente. Darwin conta que teve arrepios ao ver uma serpente que vinha em sua direção, mesmo que entre ele e ela houvesse uma grossa camada de vidro. Já a angústia realista diz repeito ao medo do perigo eminente. Imagine que você precisa enfrentar um mostro real, com o qual, mesmo não estando próximo, você sabe que, dia menos dia, terá que se defrontar! Lê-se assim em La Planche e Pontalis: “angústia perante um perigo exterior que constitui para o sujeito um perigo real”.

Essa angústia realista, infelizmente, e principalmente nas grandes cidades, como aqui em fortaleza, nos assola todas as vezes que pessoas queridas saem para a faculdade, para o trabalho ou mesmo para uma diversão. são as feras do mundo moderno, monstros sem garras afiadas que amedrontam os homos contemporâneos, a violência disseminada pelo mundo afora; angústia por medo de assalto, acidentes de trânsito, bala perdida.




4. A Arte na Pré história

Conforme sabemos, a história da humanidade, ou a história dos seres humanos, está dividida em Pré-história e História (com suas subdivisões). O período de tempo entre a Pré-história e a História é motivo de discussão entre estudiosos. A cada dia surgem estudos que alargam ainda mais essa lacuna. O certo é que o surgimento dos primeiros “seres humanos” ocorreu há dois milhões de anos, com o surgimento do Homo habilis, que veio a substituir os Australopithecus. Ele tinha esse nome devido a sua habilidade com as mãos com que fabricaram as primeiras peças de pedras, com o objetivo de caçarem e se defenderem dos “monstros” que habitavam em seu entorno.

Essa mesma habilidade para confeccionarem os primeiros objetos lhes serviram para produzirem as primeiras obras de arte da humanidade. Quando falamos no item 2 sobre Arte, destacamos que aquilo que é muito arte para uns, para outros mais evoluídos, pode muito bem ser menos arte. Assim se deu quando os romances românticos começaram a ser produzidos em grande escala, aperfeiçoando assim a arte de Joaquim Manuel de Macedo. Quando lemos a Moreninha, desse autor, e a confrontamos com Senhora, de José de Alencar, escrito posteriormente, vemos que aquela é menos arte que essa. Assim, as pinturas produzidas pelos primeiros humanos, pode nos parecer hoje apenas garranchos, que aos poucos vão se tornando mais emblemáticos com o homo erectus e posteriormente mais representativo da arte com o homo sapiens.

Em diversas cavernas pelo mundo, existem marcar dessa arte pré-histórica. Por volta de 1870, em Altamira, na Espanha, foram descobertas imagens em uma caverna. Essas imagens datavam de 25 a 15 mil anos atrás. Há época não se deu atenção a elas porque não se imaginava que homens pré-históricos fossem capazes de produzirem semelhantes feitos. Só já em pleno meado do século XX é que, após muitas outras descobertas, é que se levou a sério a arte pré-histórica, a qual não se restringiam a apenas a pinturas. Muitas esculturas de tamanhos diversos foram encontradas mundo afora. A idade dessas obras de arte pré-históricas não tem consenso entre os cientistas e paleontólogos. Alguns são de 45 mil anos atrás, outras de 100 mil anos ou mais. A única certeza que temos é que esses nossos ancestrais produziram arte. Por que fizeram? Como fizeram? Com que finalidade? São perguntas para as quais os estudiosos não tem uma resposta, mas várias. Creio em que a sublimação, mãe de todas as artes, tenha aqui seu papel preponderante. É sabido que em volta das fogueiras, guardados pela proteção do calor e das paredes das cavernas, os homens e as mulheres pré-históricos articulavam uma linguagem precária, mas que servia para contarem o que se passou durante o dia. Lá fora, o rugido de feras, de garras e dentes sedentos de carne frescas lhes congelava os nervos. A lembrança de que no dia seguinte teriam de enfrentar essas feras para transformá-las em alimento para o grupo lhes causava arrepios. Era o perigo iminente do qual não podiam fugir. Eis que alguém, para sublimar esse medo, que os angustiava, começa a pintar paredes, depois tetos, deixando para a humanidade vindoura marcas de sua vida, de seus medos, de seus trabalhos, de suas conquistas, de suas aspirações.





5. A Literatura também é filha da Sublimação

Em 1774, Johann Wolfgang Von Goethe publicou na Alemanha o romance epistolar O Sofrimento do Jovem Werther. A obra, em primeira pessoa, narra o sofrimento de um jovem obcecado por uma paixão em vão. Werther envia cartas para seu amigo Guilherme dando conta de sua crescente paixão por Carlota, moça noiva e sem nenhuma pretensão de trocar de namorado. O que antes era apenas um amor platônico torna-se obsessão a ponto de quanto mais macerado pela amada, quanto mais desprezado, esbofeteado mais aumenta esse amor. Diante de tanto sofrimento, a Werther só resta uma saída: o suicídio. O sucesso do livro foi tão estrondoso, sobremaneira entre os jovens, que muitos passaram a se vestir iguais a essa personagem, e não foram poucos os que cometeram suicídio. Muitos destes eram encontrados com exemplares do livro de Goethe. Estava então iniciado o Romantismo, estava liberada a fantasia, voltando-se contra o racionalismo neoclassicista.

Podemos afirmar categoricamente que este romance extraordinário, uma obra prima da literatura universal, é um caso maravilhoso de sublimação. O autor, Goeth, apaixonado, pela noiva de um grande amigo seu, vendo aquele sentimento transformar-se em obsessão, quase levando-o ao ato extremo de pôr fim à própria existência, sublimou essa pulsão de morte criando essa obra, O Sofrimento do Jovem Werther, cujos períodos ecoam até hoje, seja em reedições, seja em peças de teatro e até filmes. Nas palavras do próprio Johann Wolfgang von Goethe se ele não matasse a personagem, ter-se-ia matado a si mesmo.

É Fernando pessoa, um dos principais poetas da Língua Portuguesa, ao lado de Luiz Vás de Camões, que nos dá a pista de como a sublimação ocorre na inspiração artística, sobremaneira na Literatura. Seus versos “O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente” nos dão a medida certa do que leva à criação artística. É preciso amar para se falar de amor, é preciso sofrer de amor para se falar do sofrimento, da coita amorosa, como diriam os poetas medievais. Vinícius de Morais, um dos grandes expoentes da poesia e da música brasileiras, cujos versos construídos em formato de sonetos, em sua grande maioria, e pertencente à segunda geração da literatura modernista, no poema “A um passarinho” afirma não ser mais poeta uma vez que “ando tão feliz”. Justificando assim que é necessário sublimar o sofrimento, transformando-o em uma obra de arte, em um poema. Uma vez que o sofrimento acabou, de uma forma ou de outra, não há mais motivo para se fazer uma prosa ou um verso. Em ambos os casos temos a metalinguagem, nesse caso denominada metapoesia, a poesia que fala da poesia, o poeta falando de si, de seus motivos para sua produção sublimada.



6. Um caso de sublimação na Música brasileira

Um dos casos mais interessantes de sublimação na Música brasileira é a do músico baiano Caetano Veloso. As músicas desse compositor são prenhes de sua pessoa, daquilo que formou estrutura psicológica. Filho de uma família democrática, na verdadeira acepção da palavra, Caetano desenvolveu uma mente assaz liberal e musical. Não se importando como que falavam dele, surgiu para a música com o movimento Tropicália, movimento que revolucionou a MPB, enquanto protestava contra o regime militar que se instalou no Brasil no ano de 1964 e foi a té 1985. Caetano conquistou o Brasil com sua música irreverente e alegre, com seu gingado, que fazia os conservadores virarem a cara, e com suas roupas abaianadas Por esse motivo sempre teve sua heterossexualidade contestada, entretanto, caetano sempre se posicionou de forma indiferente a tudo isso. Em uma entrevista ao filósofo Paul B Preciado, durante a FLIP 2021, Caetano afirmou categoricamente que o período em que esteve preso abalou sensivelmente sua sexualidade. Na sequência ele afirma que os padrões de sexualidade que ele adquiriu durante sua vida, incluindo a infância, não o restringia ao padrão sexual tida como norma. Entretanto, após o período de cárcere, ele afirma que “fiquei com rejeição sexual à figura dos homens”. Podemos afirmar que o artista Caetano Veloso sublimou esse desejo homossexual para uma obra artística maravilhosa.

Para exemplificarmos a afirmação anterior, escolhemos uma de suas músicas. É muito comum ouvirmos discussões a respeito da inspiração para a música Tigresa, lançada em 1977. Alguns afirmam ser Sônia Braga devido ao fato de ela ter tido um “afair” com o cantor e compositor no início da década de 70. Outros afirmam peremptoriamente ser Zezé Mota o motivo da composição, em função de sua atividade política nesse período. No entanto, é bem mais certo que a inspiração dessa música seja o próprio autor, quer dizer, trata-se mais uma vez de uma caso de sublimação da pulsão sexual de Caetano Veloso. Por exemplo, a tigresa seria o lado feminino do leão. Caetano Veloso é nascido sob o signo de Leão, inclusive, é tratado pelos astrólogos como um autêntico arquétipo deste signo. Alguns trechos da música são emblemáticos, como a vontade do eu-lírico (voz que emerge de um poema) que a tigresa que habita em si “possa mais do que o leão”. Mas o compositor, como ocorreria cinco anos depois, quando ele compôs Menino do Rio, devido a uma súbita paixão por Petit, o menino do Rio, sublima esse desejo e arremete nos últimos versos: “como é bom poder tocar um instrumento”.



Conclusão

Concluímos aqui afirmando que nem toda obra de arte surge para sublimar uma pulsão ou obnubilar uma intenção, através da Sublimação. Entretanto, ao analisarmos diversos artistas, sejam nacionais ou estrangeiros percebemos elementos autobiográficos, o que indica uma tendência à catarse pessoal. Logo, vemos que na esmagadora maioria das produções artísticas, seja Música, Pintura, Escultura, Literatura, Arquitetura, está presente a sublimação dos desejos perversos guardados no ID e que ameaçam vir à tona para destruir a reputação moral do EGO. Isso ocorre não apenas com a sublimação da pulsão sexual, mas também com a pulsão de morte, de agressividade. Basta-nos lembrar a frase do poeta francês Jean Genet, segundo o qual, “não há lugar melhor para se recuperar o tempo perdido do que as grades de uma prisão”.





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  E m frente a uma grande floresta morava um pobre lenhador com a mulher e dois filhinhos: João e Maria.   Tinham pouco com que se alimentar...