Luz que me
ilumina o caminho e que me ajuda a seguir
Sol que brilha à noite e a qualquer hora Me fazendo sorrir
Claridade, fonte de amor que me acalma e seduz
Sol que brilha à noite e a qualquer hora Me fazendo sorrir
Claridade, fonte de amor que me acalma e seduz
Essa luz, Só pode ser Jesus!
(Roberto Carlos)
Dona Maria
José era uma dessas senhoras sofridas. Miúda e com os ombros meio curvados, que
indicavam seus dias de dureza, casada com um homem da mesma estirpe,
trabalhador sofrido, tinham cinco filhos, três homens e duas mulheres, que
vieram como os degraus de uma escada, um atrás do outro. Durante aqueles
primeiros vinte anos de vida conjugal, nunca reclamaram das agruras da vida.
Dona Mazé, sempre sorrindo, nunca destilou seus momentos de penúria. Católica,
era na igreja que, de joelhos, contava seus dias a Deus, como se este não soubesse.
Agradecia pela sina, perceptiva que ali estava seu degrau de
evolução. Certa vez uma vizinha menos discreta perguntou sobre seu sorriso
franco e sua disposição para servir ao próximo. Sem desmanchar o riso dos
lábios, inquiriu à outra o que deveria fazer, chorar, se lamuriar e para
arrematar:
– Quem
chora, minha filha, baixa a cabeça, verga à terra e perde a coragem de
enfrentar os dias que ainda vêm.
Mas o que
ela não sabia era que ainda viriam dias mais nublados, com chinfras de
tempestade. Em 1989 seu Chico faleceu subitamente. Era hemofílico o homem. Numa
dessas transfusões desastradas a encargo dos hemocentros contraiu micróbios que
o mataram de repente. Consternação da família, consternação dos amigos e
vizinhos. Dona Mazé com seu xale enxovalhado, seu terço na mão despediu-se do
companheiro sem lágrima. Tinha preocupação com o futuro, ele urge, é eterna
tormenta. Não para ela, que mesmo conhecendo os improvisos do tempo, sabia que
a marcha é árdua e precisa ser retomada.
A vida se
ajeitou. Seu Chico era funcionário público, e a pensão mirrada ainda dava para a família, agora aumentada pela
chegada do neto, sem genro. A filha mais nova, com apenas 15 anos, se
enrabichara por um homem casado, que a iludira com a promessa de deixar
família. Ficou assim. O homem sumiu com família e tudo. Abandonada, a menina
com o filho se ajeitaram no quarto de casal, enquanto Dona Mazé foi dormir no
corredor. No outro quarto dormia a Vera, que se preparava para ingressar na
faculdade e precisava de um pouco de privacidade. Na sala, os três rapazes, dos
quais apenas o mais velho trabalhava de empacotador, dividiam um beliche e um
lugar no sofá. Às cinco da manhã, aquela mulher com seu sorriso costumeiro era
a primeira a sair da mercearia com as mãos ocupadas de pão e outros itens com
que a família manteria o corpo de pé.
No terceiro
ano desta história, um fato novo veio sacudir os ossos magros da nossa amiga: o
diagnóstico de hiv soropositivo. Os três filhos também hemofílicos estavam com
o vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida. Durante toda sua vida os
rapazes fizeram transfusões. E mesmo pela ameaça da AIDS, arrombando as portas
dos lares brasileiros, entrando por todos os lados, os hemocentros ainda
transfundiam sangue sem a devida cautela. Henfil já morrera, e seu irmão Betinho
já sabia ser soropositivo, mas os cuidados só viriam na década de 90. O
diagnóstico dos rapazes viera no mesmo mês em que a namorada de Júnior, o mais
velho, recebera a notícia da gravidez. O rapaz enlouquecera. Logo agora que
acabava de receber a promoção no supermercado onde trabalhava. As noites naquela
casa eram de sofrimento, de dor. Inconformado, o futuro pai só dormia quando
sua mãe lhe dava um calmante. A doença cruel e o desespero o debilitaram
rapidamente. Nós, da vizinhança, só soubemos do desastre pouco antes de sua
morte, poucos dias antes do nascimento da filha. Dona Mazé mais uma vez segurou
com altivez aquela barra pesada que Deus lhe dera, não dava para lamentar, a
vida seguia, com dois filhos para tratar. Para sorte, a netinha deu negativo.
Mas os infortúnios
se seguiram. Felipe, teve agravado seu estado de saúde, após um diagnóstico de leptospirose.
Não sofreu, pelo menos não demonstrou. Tinha o sangue paciente e conformado da
mãe. No dia que foi para hospital pela derradeira vez, sabendo que não
voltaria, despediu-se dos mais próximos, com um sorriso magro e olhos fitos no futuro. Dizem que quando chegou
ao hospital não padeceu. Consolou os desolados e desencarnou ciente do dever
cumprido. O choro mais uma vez não teve abrigo nos olhos de Dona Mazé.
Resignada, buscou a ajuda do poder municipal. Era preciso ajeitar a casa, pois
o terceiro neto já vinha a caminho. Era a mensagem de que a vida continua e ali
estava ela, disposta a não se dar cabo, a não se entregar.
E foi com os
olhos, agora presos em grossas lentes, com seu sorriso magro e ombros mais curvados
que deu a notícia de que a filha mais velha, a Vera, deixara a família para morar
com uma dona que trabalhava de cantineira na escola municipal próxima. Eram,
agora, apenas ela, o filho com hiv e dois netos, que a outra filha deixara,
antes de sumir com um caminhoneiro. A nora fora embora com a netinha. Os dias
que se seguiram foram de poucas mais importantes alegrias. Alexandre o único
filho que lhe restara se dera bem com os novos tratamentos e sorria por Deus lhe
dar mais alguns anos sobre a Terra. A casinha humilde continuou assim. Mas quem
passasse por lá e desse uma ligeira olhada para seu interior, veria uma alegre
luz que vinha de algum ponto que não se sabia ao certo de onde.
Possivelmente essa luz nascia no seio daquela pobre mulher, para se irradiar em
forma de alegria e resignação.
(Francisco Alves de Andrade, outubro de 2014)
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