31 DE MARZO
(JUAN GELMAN)
Ha terminado el mes
Y el hijo sin venir
Y mi hermano sin volver
Ha terminado el mes y no te
amé las piernas
Y no escribí ese poema de
Otoño en Ontario
Y pienso pienso pienso
Se fue otro mes y no
hicimos la revolución todavía.
Juan
Gelman é um dos poetas argentinos o qual podemos chamar de engajado. Sua poesia
está sempre prenhe de convites para que façamos a revolução. Entre esses poemas
está o supraescrito “31 de Marzo”. No primeiro verso, percebemos a preocupação
com a passagem do tempo. Terminou o mês (Ha terminado el mes). Daí o título, 31
de Março, mas poderia ser 30 de abril, 31 de julho. A preocupação do eu-lírico
é com a passagem do tempo e com a não realização do que é preciso acontecer.
Terminou
o mês e o filho sem vir, sem chegar (“Y el hijo sin venir”). Acontecimento
trágico, a não chegada do filho. Mas filho de quem? Os filhos da pátria, exilados, torturados, ou já mortos pela
ditadura argentina (1976 – 1988). São os filhos das “Madres de la Plaza de
Mayo”, que ainda hoje se reúnem em torno dessa praça para chorar, orar,
protestar contra uma ditadura que nunca acaba, por ser sempre uma ameaça à
frágil democracia latino-americana. Sãos os filhos das mães brasileiras,
chilenas, paraguaias. Muitas, como as da “Plaza de Mayo”, ainda esperando pelos
restos mortais dos filhos, para lhes dar finamente descanso sepulcral. Ainda
estão aquelas “madres”, hoje “abuelas” (avós), reunidas, e seus gritos, suas
preces ecoam para lembrar dos dezoito anos de ditadura, de sofrimento, de
arbitrariedade, mas, ao mesmo tempo, uma tentativa de impedir que a história se
repita.
Terminou
o mês e meu irmão sem voltar (“Y mi Hermano sin volver”). Outra tragédia. Mas
irmão de quem? Irmãos de todos os que lutam por ou que pelo menos têm um ideal,
todos que comungam da ideia de pacifismo, de liberdade, de justiça. Não precisa
ser irmão consanguíneo, basta ser companheiro, compartilhar do mesmo pão. Como
bem disse Hernesto Guevara: “Se você treme de indignação diante de uma
injustiça social, então você é meu companheiro (irmão)”. Ou seja, faz parte da
mesma confraria, pode sentar-se à mesa e con-frater-nizar comigo. Essa ideia de
irmandade, presente no poema em questão e
nas palavras do médico citado, é muito profunda, vai muito além da consanguinidade.
Beira o Amor de Cristo pela humanidade, nivela-se ao de Francisco em seu
trabalho de reedificação da Igreja romana em Assis, e, perdoe-me, é maior que o
de Madre Tereza, porque aqui temos o ideal de redenção dos povos através da
união, da irmandade, da verdadeira fraternidade.
Terminou
o mês e não te amei as pernas, não te admirei as perna (“Y no te amé las
piernas”). Mas por que ele não desejou as pernas, metonímia semelhante à usada
por Carlos Drumond em “Poema de sete faces” (“meu Deus, mas pra que tantas
pernas”)? E é o mesmo Drumond que justifica Juan Gelman: “A tarde talvez fosse
azul/ Não houvesse tantos desejos”. São os desejos gratuitos, ou mesmo
fortuitos, por algo que não tem importância, como o interesse pela vida sexual
de um jogador de futebol ou um cantor de pagode. E isso trava o processo de
evolução que é o mesmo processo de revolução. Não fosse esse desvio, a
humanidade já estaria em um patamar elevado, e as “madres” não teriam que
retornar à praça ano após ano, pois a democracia estaria, no mundo,
consolidada.
Esse
é o mesmo motivo pelo qual o eu-lírico não teve tempo de ir a Ontário, escrever
o poema Otoño. Há preocupações outras, pois o filho não chega, o irmão não
volta. E ele pensa, pensa e se entristece porque mais um mês se foi e não
fizemos a Revolução (“y no hicimos la revolución”).
É
esse, portanto, o grande convite que o poeta nos faz, fazer a revolução. Mas o
convite maior seria para continuar a revolução, uma vez que esta já se realiza
no dia-a-dia. Não podemos pensar hoje em uma revolução sangrenta, como o foi a
Revolução Francesa, a Russa, ou mesmo a Cubana, revoluções feitas pelas mãos do
povo, das massas incitadas, mas que serviram a poucos. Chegados ao topo, faz-se
necessário se desfazer daqueles que os colocaram nos ombros e os ergueram até o
trono, o poder. Aprenderam bem a lição de Maquiavel. Para aqueles revoltosos da
revolução é preciso a guilhotina. E assim estamos até hoje sob os pés de uma
elite, seja civil ou militar (ou judiciária), que nos acossa, nos humilha e,
sempre, que nos ver respirar, acocham um pouco mais o nó. E nos vem com a
mentirosa ideia de que, quando as coisas melhorarem, o nós será afrouxado.
É
por isso que o convite deveria ser para continuarmos a revolução, pois, cada
vez que o poeta pega na caneta, no lápis ou nas teclas para escrever, está
fazendo a revolução, lutando para transformar a consciência. Só a Literatura, a
Arte, a Música engajadas são capazes de romper a estrutura de alienação que
enclausura nosso pobre povo. Mas estamos afastados da Literatura, da Poesia, da
Arte. E esse afastamento não é por acaso, uma vez que o acaso não existe. Está
tudo devidamente calculado. A mídia televisiva dispõe todos os dias cerca de trinta
minutos do seu horário nobre para tratar sobre assuntos sem importância alguma,
como a vida sexual de um craque de futebol ou a morte de um cantorzinho de
música sem sentido. As redes sociais não precisam dispor esse tempo, uma vez
que a população escravizada, sem a presença dos meios de liberdade, já citados,
buscam desenfreadamente essas notícias e, talvez, até sonhem com velórios de
“celebridades” ou com viagens a Paris.
Recentemente,
relendo o poema “Operário em Construção”, de Vinícius de Morais, uma estrofe me
chamou em especial a atenção. Segue:
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
(disponível em
http://www.suasletras.com/letra/Vinicius-de-Moraes/O-Operario-Em-Construcao/10181)
Nesse
poema, o operário (outra metonímia muito bem utilizada, já que representa toda
classe trabalhadora) acorda de uma grande letargia que o impedia de ver a
importância de um tijolo e do suor do seu rosto. Até que veio para ele o magno
dia de sua libertação, quando percebe que tudo que existe era ele que o fazia,
portanto era dele. Essa consciência leva-o à “dimensão da poesia”. Mas o que o
teria levado à consciência? Possivelmente, a poesia levou-o à consciência e,
assim, ele atinge a própria dimensão da poesia, da sensibilidade. A partir
desse dia, o operário começa a dizer “NÃO”. Peremptoriamente! Sem delongas, ele
começa a conscientizar outros operários e sofre por isso, apanha, é torturado,
judiado. Mas continua dizendo “NÃO”. A revolução fez-se nele e consequentemente
naqueles que o ouviram. Mas a revolução precisa continuar, porque já existe, já
ocorre, só que na inconsciência. No momento em que as pessoas que a fazem
tomarem consciência de sua existência, ela estará concretizada, e as mudanças
necessárias à sociedade serão, em fim, realizadas.
Mas
quem são esses revolucionários que já fazem inconscientes essa revolução? Todos
que de alguma forma lutam por mudar uma sociedade, cuja elite (damas,
socialites, empresários, oficiais de alta patente, políticos, juízes…) se
entristece ao ver a possibilidade de um trabalhador pegar o mesmo avião que ela
e/ou frequentar os mesmos shoppings. A elite que paga escolas caras e que não
quer ver o filho do pobre ocupar o mesmo acento em uma universidade pública que
o seu. A elite que faz o apartheid social,
que segrega, que discrimina. A elite culpada pelo fato de o filho da periferia
estudar numa escola sem ar condicionado, sem internet, sem bibliotecas, sem
merenda de qualidade, sem nada. Pois, repitamos, isso não é por acaso, o acaso
não existe. Esses revolucionários são os professores que saem de casa em um
carro popular ou em um ônibus lotado para ministrar aulas para 50 alunos numa
sala onde cabem 30. Mesmo que alguns não saibam, mesmo que alguns achem que vão
à escola buscar dinheiro, eles estão sim fazendo revolução, estão fazendo transformações.
Esses revolucionários são os estudantes da escola pública, que saem todos os
dias de casa, a pé, muitas vezes em sol escaldante, para passar até 5 horas sem
uma alimentação decente, sem material escolar decente, sem inclusão digital
decente. Embora eles pensem que vão para a escola para brincar, zombar das
aulas de Geografia, História, Matemática, enquanto miram no celular os últimos
acontecimentos da vidas das “celebridades”, com o perdão da palavra, mas estão
fazendo a revolução. Imaginemos o dia em que a ficha cair, e o menino e a menina
resolverem ser rebeldes e contrariarem as expectativas dessa elite inútil!
Resolverem ser estudiosos, pois estudar e frequentar a escola não basta. É
preciso ser estudioso, para romper de vez os elos dessa cadeia, desse ciclo
vicioso que é gastar o tempo e não fazer nada. O estado mente, a federação
mente, o município acompanha, e os três fazem proselitismo na mídia, fingem que
gastam dinheiro, que é de todos nós, para educar o filho do pobre, fingem que
estão preocupados com seus futuros. Mas entra ano e sai ano e nossos egressos
do ensino médio, salvo raras exceções, e as exceções não contam, continuam ao
deus dará, pelas esquinas, coçando literalmente o saco, na falta do que fazer.
É
por isso que o convite de Juan Gelman para fazermos a revolução deve ser
compreendido como um convite para continuarmos o que já está em curso. É
preciso que os estudantes da escola pública se conscientizem do seu real papel
de revolucionários e sejam rebeldes, para ratificar a frase de domínio público
que diz:
“Quando
se nasce pobre, o maior ato de rebeldia contra o sistema é ser estudioso”.