(Por João soares Neto)
Agência
Carta Maior – O que faziam os seus pais em São
Francisco do Estreito, às margens do rio Acaraú, além de fazer
filhos?
Alcides Pinto – Fazer filhos e fazer
filhos sempre. Além dos 17, consignados em cartório, fora dos que
morreram anjos, mais de um coro. Fazia de tudo para sustentar a
ninhada. Trabalhava no eito batido, sol a sol, em terras alheias. Era
destemido, dinâmico, honesto e de muita fé em Deus, manso e
arrogante a um só tempo. Tenho muito dele. Levantava-se com a
estrela da manhã e dormia no horário das galinhas. O tempo é pouco
para tudo - dizia. Surpreendi-o, muitas vezes, chorando, premido pela
necessidade extrema. Um dia, teve que abandonar cinco filhos menores
na Estrada Real que dava para Sobral, para não vê-los morrer de
fome. Aqui só há a verdade, porque haveria de mentir? Minha mãe
tentava abafar seus soluços nas contas do rosário. Não sei dizer
como e nem quando meus irmãos voltaram ao lar.
CM
– Que atavismo impregnou-te para escrever a tua famosa
trilogia?
AP - A experiência e, sobretudo, os
sofrimentos pelos quais passei na infância. Atavismo! O sangue
puxado da cabeceira da raça na reprodução da espécie. Por outro
lado, vivi meus primeiros anos na aldeia numa promiscuidade sem
limites. Tudo isso, está escrito em meu primeiro romance, O
Dragão. Os costumes e as mazelas de seus habitantes fixaram-se
em minha mente e juntaram-se à minha vocação para as letras e para
as artes. Meu pai (esqueci-me de dizer) era um poeta nato, puxado aos
varões mais primevos da família.
CM
– Que ventos tangeram-te de Santana do Acaraú e pra
onde?
AP - Meu pai foi morar em Massapê,
trabalhar num curtume e carregou os filhos com os cacarecos. Fui
estudar com D.Maria do Carmo, rebento da tradicional família dos
Pontes. Professora “de casa” sem colégio. De Massapê ingressei
no Líceu do Ceará e fui trabalhar com meu tio Hermano Frota, no seu
escritório de corretagem da Rua José Avelino, e passei a morar na
Casa do Estudante, na companhia do poeta boêmio Sidney Neto.
CM
– O que era o Ceará quando você se mudou para o Rio e
por que foi?
AP - Na época, Fortaleza era bem
melhor. Havia sossego. Os estudantes eram mais idealistas e os
professores mestres e educadores. Uma geração heróica, como a de
Odilon Braveza (Colégio São João). No Liceu do Ceará, tínhamos
Martins de Aguiar, Otávio Farias, Domingos Barroso, Edmilson Souza
Lima e alguns outros. Não esquecer os educadores, propriamente dito:
Lourenço Filho, Filgueiras Lima e poucos mais. Saindo da bonança
para os “tornados”, falemos agora da mocidade e das mulheres,
sobretudo das “mulheres livres” da famosa “Pensão da Graça”
(veja-se o romance Doutora Isa, de Juarez Barroso). Voltamos
ao tempo dos americanos em Fortaleza, mascando chicletes e comprando
as garotas da sociedade. Detalhe importante: lembrar o consultório
do Almeida na Rua São Paulo. Como a sala de espera era pequena,
fazia-se fila na calçada, tinha até freira à espera. Almeida era
farmacêutico de diploma e de anel. A maioria de seus clientes sofria
de blenorragia (esquentamento, gonorréia) – eu mesmo era um deles.
E sem falar aqui no clássico “Curral das Éguas” e da zona de
mulheres da Franco Rabelo. Hoje, Fortaleza está enfestada de putas.
A praia de Iracema virou passarela, nos becos, nas esquinas das ruas,
e por onde se passa. Vamos ao fim da pergunta. Mudei-me para o Rio
porque tinha uma vontade louca de trabalhar e estudar sempre pensando
em ajudar meus pais.
CM
– O que lia na sua juventude? De que forma?
AP
- Tudo que me caía às mãos: Sem disciplina, regras,
predileção. Mas o que mais me incitava era o romance, o canto, a
poesia, e a biografia dos grandes homens etc.
CM
– O Rio, antes do Aterro do Flamengo e do alargamento da
Av. Atlântida, era um novo mundo ou o eldorado para quem tinha sede
de saber?
AP - Eu peguei o Rio em pleno
esplendor em 1945, época da guerra. A cidade era dos boêmios,
infestada de cabarés. Andava-se em paz durante o dia e a noite. Não
havia metrô, mas os bondes comunitários, sempre domésticos e
solidários. E para quem tinha sede de saber, como eu, o Rio era
ideal. Fui um dos freqüentadores mais assíduos da Biblioteca
Nacional, que só fechava às 11 da noite.
CM
– Como se meteu com biblioteconomia na Biblioteca
Nacional? Repetia a saga inicial de Capistrano de Abreu?
AP
- Acabara de ser fundada a Universidade Federal do Ceará (UFC).
Eu, Artur Eduardo Benevides e alguns outros fomos os primeiros
funcionários, foi quando ganhei uma bolsa de estudos do Instituto
Brasileiro de Bibliografia e Documentação, no Rio, mas, para
freqüentar o curso, tinha que possuir o diploma de Biblioteconomia,
o que fiz depois, passando o carro à frente dos bois.
CM
– Daí, mandou-se para o Ministério da Educação e
passou a redigir. Algum dia extasiou-se com a beleza do prédio
desenhado por LeCorbusier?
AP - O mural de
LeCorbusier fica no rol na entrada do Ministério da Educação, de
sorte que tinha que vê-lo todo dia quer queira ou não. Uma obra
fina de arte que fascina o espectador. Eu me detinha a contemplá-lo
antes de tomar o elevador para o Serviço de Documentação no nono
andar.
CM
– No início dos anos 50 resolveu fazer coletâneas.
Qual a razão?
AP - Trabalhava como redator no
Serviço de Documentação e tinha por finalidade fazer o
acompanhamento e revisão dos cadernos de cultura e outras coleções,
além de redigir com o escritor Xavier Placer, o Catálogo das
Publicações do MEC.
CM
– Dito por você: “Eu acho que a vida é diabólica.
Sou uma pessoa em sintonia com o mundo desconhecido...”. Você
ainda pensa, vive e age assim?
AP - Não há
porque mudar. A vida, para mim, não oferece outra opção, e o
sobrenatural faz parte de minha natureza e minha arte.
CM
– Depois das coletâneas, surge o poeta com talento e
uma nova linguagem. Isso se deve a quê?
AP - A
leitura dos grandes poetas e escritores nacionais e estrangeiros
incentivou-me cada vez mais a ingressar definitivamente na
literatura.
CM
– Como foi o seu reencontro com o Ceará literário dos
anos 60?
AP - Não foi difícil a convivência
com os intelectuais da época. Nunca perdi o contato com os
escritores dos anos 60, uma vez que minha vida literária teve início
no Ceará.
CM
– Você considera-se um beato, demônio, religioso,
maldito ou perdido nesta dimensão?
AP - Não
me perco por caminhos nem por rodeios. Sei o que quero e onde quero
chegar em qualquer sentido: na religião, com Cristo Nosso Salvador.
E o diabo em minha literatura é apenas uma figura de retórica,
emblemática. Valorizo-o e ridicularizo-o no decorrer de minhas
histórias. É o bobo da corte. Papai Noel de chifre e rabo. Tanto
faz aplaudi-lo como vaiá-lo. Nos meus escritos, ele ocupa sempre uma
posição ridícula, burlesca, veja-se em meu teatro Equinócio.
No Beato pego carona. Sou por natureza um homem místico.
CM
– São Francisco é o lugar onde perdeu o umbigo, um
santo, uma referência ou ume espírito que baixa em você?
AP
- É mais que isso. Foi o lugar onde primeiramente perdi a
virgindade, perseguindo os animais, atendendo aos meus instintos
atávicos. Ainda hoje temo ser punido por isso. Tinha 10 anos, mas,
no lugar, não havia rapariga. E espírito não baixa em terreiro, se
em verdade baixa. Sou devoto de São Francisco. Vez por outra visto
seu manto. Para mim é um objeto sagrado como uma imagem.
CM
– Qual a parte, época ou livro da sua obra que jogaria
nas profundezas do rio Acaraú? Ou nunca faria isso?
AP
- Nenhuma parte, época ou livro de minha obra jogaria no Acaraú.
O rio é a ama de leite que não tive. Às vezes, sonho com suas
enchentes, às vezes, com seu leito cheio de vazantes ou simplesmente
coberto de areia. Foi no Acaraú que aprendi a nadar e a pescar. Já
joguei fora muitos poemas e alguns livros. Mas não faria isso com o
rio de minha infância.
CM – Por que o
poeta virou ficcionista, ensaísta e teatrólogo?
AP
- Sou inquieto e trabalhador como meu pai. O sol não me pega na
cama. Ser só poeta para mim era pouco, portanto abracei com mesmo
ímpeto o romance, o conto, o teatro etc. E cheguei a enveredar pelo
mundo das artes plásticas ao tempo de meu namoro com o concretismo.
CM
– Concorda com Alceu de Amoroso Lima que dizia que “a
qualidade nasce da quantidade”?
AP - Moreira
Campos tinha a mania de dizer: “Eu o invejo, porque em todos os
gêneros literários você se sobressai bem”. Mas eu rebatia: Deixe
de besteira, Moreira. Tem gênio de um só livro, como o Augusto dos
Anjos, ou de pouquíssima obras a exemplo de Flaubert, Moacir de
Almeida, descoberto por Procópio Ferreira, autor de Gritos
Bárbaros, tinha apenas 20 anos, gênio e continua ignorado no
Brasil.
CM
– Será que você não está se contradizendo ao dizer
no livro Política da Arte (Ensaios de Crítica Literária),
que: “o poeta é aquele que sabe apreender a beleza das coisas
invisíveis e materializá-las em palavras, dentro das leis criativas
e fora dos esquemas da lógica”?
AP - Nada
tem lógica em matéria de arte, seja inventiva ou tradicional.
Alguém encontra lógica, por exemplo, nos quadros e nos murais de
Picasso, Portinari, ou mesmo em Barrica? Tristão de Athaide era um
pensador e um grande crítico. Da quantidade, nasce a síntese,
portanto a qualidade. O Alceu estava certo.
CM
– O que é uma Academia de Letras?
AP
- Um elenco de homens e mulheres que se reúnem, falam e discutem
sobre literatura sem muita convicção. É mais uma sociedade de
curiosos e especuladores que pensam que a imortalidade tem a ver com
idéias individualistas. São, não obstante, pessoas de bem, a quem
devemos aplaudir, pois se não fazem bem, também não fazem mal.
CM
– Viver do que escreve, abdicando a burocracia e as
regras do cotidiano, trouxe mais ventura ou pesadelo?
AP
- Foi para mim, não obstante os percalços, a melhor coisa que
me aconteceu. Em verdade, tirou-me todas as comodidades, fiquei mais
pobre do que era, mas, ao mesmo tempo (e isso não se constitui
contradição), mais rico. Possuo um tesouro que nem o fogo nem a
inveja destrói. Sonhei a vida inteira ser um escritor, e consegui. E
reconheço minhas limitações, que não são poucas, mas até o
velho Machado dizia que as possuía.
CM
– Floriano Martins, crítico literário, define a sua
escrita como “a presença de uma linguagem fragmentada,
entrecortada por imagens bruscas, e a busca atormentada de mais
realidade”. É por aí mesmo?
AP- Floriano
está certo. Não imito ninguém. Minha arte é o modelo de minha
vida: fragmentada. Estou sempre criando, fazendo, destruindo e
vice-versa, como disse Cassiano Ricardo no prefácio dos Cantos de
Lúcifer: “Alcides Pinto muda sempre, no espaço e no tempo,
pra nunca estar de acordo consigo mesmo”.
CM
– Dos que nasceram na sua década de 20 e fizeram-se,
entre coisas, poetas, quem você considera do seu nível? Francisco
Carvalho, José Paulo Paes, Lêdo Ivo, João Cabral de Melo Neto? Ou
serão outros?
AP - Não desejo morrer
enforcado. Todos os nomes citados são grandes. É o que posso dizer.
CM
– Se tivesse que associar a sua figura e arte a um vulto
consagrado da literatura, quem seria?
AP - Ao
Poeta Augusto dos Anjos no Brasil ou Rimbaud na França.
CM
–Há crítica literária no Ceará? Como é a crítica
literária brasileira?
AP–Não. O Brasil, no
momento, ressente-se de bons críticos. Pinta um Wilson Martins, um
Ivan Junqueira, Au revoir! Álvaro Lins, Haroldo de Campos, Fausto
Cunha e poucos outros já “viajaram”. Temos bons comentaristas,
mas a pergunta é sobre críticos…
CM
– João Pinto de Maria: biografia de um louco tem
tudo ou pouco a ver com você?
AP - Tem tudo a
ver comigo. Era meu avô. É, sem favor algum, o ponto mais alto da
Trilogia da Maldição, por ser João Pinto o único personagem que
sustenta a narrativa do começo ao fim.
CM –
Quem conta nas letras do Ceará nesta virada do milênio?
AP-
Salte a pergunta por obséquio. Deu um branco.
CM
– Do que se arrepende de não ter feito?
AP
- Devia ter sido mais compreensível e gentil com as mulheres. Eu
era muito egoísta e por isso mesmo sofri muito, e ainda sofro, pois
algumas das mulheres que amei, estão mortas e outras vivas, mas amo
mais aquelas do que estas. Que fazer?
CM –
E o que dizer da política brasileira e das CPIs?
AP
- A única esperança do povo brasileiro era o Lula na
Presidência, mantendo a integridade do PT. Isso foi um sonho? Um
pesadelo? Ou foi mais que isso? O certo é que o país está
mergulhado num mar de lama e está difícil sair dele inteiro.
CM
– Quem falará por você na hora do adeus? O beato, o
fauno, o Dionísio ou o satânico?
AP - O
Beato.
CM
– Quantos livros já escreveu como Ghost Writer?
AP
- Muitos. Para falar a verdade uns 10. A maioria no Rio. Alguns
tornaram-se famosos. Que ironia! Mas que fazer? Vivo trocando os
miolos da cabeça por miolos de pão.
CM
– Você concorda com Oscar Wilde quando ele dizia que
“vivemos numa época em que coisas desnecessárias são as nossas
únicas necessidades?”
AP
- O que diz Oscar Wilde reflete fielmente sua natureza e a
natureza humana. Ele foi um equívoco na sociedade patriarcal de seu
tempo. Tratou-a impiedosamente em seus escritos, tendo como castigo a
prisão onde escreveu um dos mais belos poemas da literatura inglesa:
A Balada do Cárcere de Reading” (The Ballad of the Reading
Gaol).
Fonte: Entrevista com o poeta José Alcides Pinto - Carta Maior
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