Olhar para o alto e avistar o objeto era garantia de diversão e curiosidade entre crianças e adultos
Sessenta
e cinco anos após o fim da Segunda Guerra, Fortaleza ainda guarda
marcas do período em que a vinda de norte-americanos mudou costumes
não só nas ruas da Cidade, mas no oceano e mesmo no ar. Entre 1943
e 1945, nem precisava erguer muito a cabeça para ver, cruzando o
céu, os dirigíveis do tipo Blimp, costumeiramente confundidos com o
popular Zeppelin. Se, em municípios vizinhos, as aeronaves causavam
estranhamento e até medo, na provinciana Capital, elas eram
admiradas por crianças e adultos.
Quem passou pelo período conta que o aparecimento de um Blimp transformava, mesmo que por segundos, a rotina em praças, campos de futebol, casas. Ao passarem pelo Centro, Jacarecanga, Benfica, Praia de Iracema e Pici, os dirigíveis tanto causaram curiosidade como deixaram lembranças inusitadas na memória da cidade.
Segundo registros do livro "A História da Aviação no Ceará", de Augusto Oliveira e Ivonildo Lavôr, "o Blimp mudava de rota e se movia vagarosamente sobre prédios e residências do bairro Benfica". Na Avenida da Universidade, um fato inusitado mostrava que os "norte-americanos gostavam de bisbilhotar a vida alheia".
Mais
precisamente no número 2.486, uma jovem tomava banho de sol no
terraço da casa, ao lado da caixa d´água. Relatos da época dizem
que a beleza da moça fazia os americanos reforçarem a rota pelo
endereço só para apreciá-la.
Naqueles
anos, os americanos tinham duas bases em Fortaleza, a do Pici e a do
Cocorote. Na primeira, concentravam-se esquadrilhas de caças, aviões
de patrulha e bombardeio, aeronaves de transporte e os Blimps,
espécies de Zeppelin em menor escala. Também era no Pici que ficava
a torre de comando onde os dirigíveis eram presos com amarras, o que
permitia que, mesmo parados, continuassem suspensos. Todos pertenciam
à US Navy, a marinha norte-americana, que operou no Brasil entre os
anos de 1943 e 1945 com dois esquadrões de Blimp contra os "boats"
(submarinos).
"Eles vinham de Natal. Aqui era a porta para seguir em direção à África, entrando por Dakar", explica o jornalista e memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. Ele lembra que, na época, os blecautes noturnos eram provocados para a Cidade não ser vista pelos alemães. Mas era durante o dia, com o céu bem claro, que os Blimps chamavam mesmo à atenção do fortalezense.
"Dos dirigíveis, os americanos acenavam para as pessoas. Todo mundo via, porque eles passavam bem baixinho e devagar", testemunha Nirez. Ainda conforme se recorda o memorialista, os veículos funcionavam como espécies de observatórios por motivos específicos: voarem a uma altura média de 50 a 100 metros do nível do mar e com velocidade de cerca de 40 quilômetros por hora.
Diversas utilidades
Dessa forma, os dirigíveis eram usados em patrulha submarina, registro de fotografia em terra e no mar e observação do espaço local, com fins de prevenção e segurança. Mas, para os meninos da Vila Diogo (no Centro, entre Avenida Imperador e Rua Princesa Izabel) e do Barro Vermelho (atual bairro Antonio Bezerra), os Blimps eram motivo de diversão. Não era raro um garoto subir no telhado de casa na vã tentativa de tocar os dirigíveis com cabos de vassoura.
O
sobrevoo de aviões-caça, como P-36 Halk e P-47, era um desfile para
uma população de 180.185 habitantes. Mas a memória deixada pelos
Blimps que passaram por Fortaleza não é só nostalgia. Como não
poderia deixar de ser, houve acidentes.
A explosão de um Blimp que fazia patrulha na costa deixou dez mortos em 28 de fevereiro de 1944. De acordo com a obra "O Ceará na Segunda Grande Guerra", dos autores Stênio Azevedo e Geraldo Nobre, os corpos dos militares americanos foram sepultados no Cemitério São João Batista e, posteriormente, exumados e encaminhados para os Estados Unidos. No total, 32 militares americanos morreram no Ceará, durante a II Grande Guerra Mundial.
De acordo com Nirez, um acidente de menor proporção, no Jacarecanga, também com o Blimp, resultou em lembrança mais concreta. O irmão do jornalista, o astrônomo Rubens de Azevedo, foi ao local e ganhou, dos americanos, uma lente de máquina fotográfica.
LEMBRANÇAS
Silêncio
e lentidão nos ares da Cidade
Sem
o ruído e a velocidade dos aviões de guerra, os dirigíveis
aguçavam a curiosidade em uma Fortaleza cheia de novidades, mas
também suscitavam estranheza e mesmo medo nos meninos das cidades
menores. Os Blimps que cruzavam o céu fazendo lentas curvas chegaram
no tempo em que a Capital aprendia a conviver com os lampiões a gás
nas ruas - depois substituídos pela energia elétrica - e com os
carros que causavam os primeiros atropelamentos, na década de 1940.
Era no entorno da Praça do Ferreira que a Cidade mais percebia as mudanças: na Sorveteria Jangadeiro, nos cafés frequentados pela alta sociedade e pelos americanos, no corre-corre dos meninos que vendiam jenipapo como se fosse sapoti. Em um novo ritmo, mais veloz e barulhento, como retrata o historiador Antonio Luiz Macedo e Silva Filho, no livro "Paisagens de Consumo: Fortaleza no Tempo da Segunda Grande Guerra".
"Quando vi pela primeira vez, lembro que senti medo. Aquilo passando no céu, enorme, silencioso, era muito diferente dos aviões. Às vezes, reunia gente para ver. Era o comentário por dias", ressalta o jornalista Marciano Lopes que, na época, tinha seis, sete anos. Segundo ele, havia até um ritual para a apreciação. "Ficava em baixo de uma árvore mulungu. No verão, todas as suas folhas caem, mas as flores amarelas permanecem em cachos, atraindo corrupiões, que enchiam a árvore de preto e vermelho, comendo e cantando", descreve.
Na
opinião do coronel Rui Pinheiro Silva, que morava na Praça São
Sebastião (Otávio Bonfim), a passagem do Blimp era um divertimento
para crianças e adultos. O futebol no campo parava abaixo dos
dirigíveis. "Era uma coisa tão linda, se não me engano,
prateada. Eles passavam na direção do fim da linha para ir para a
Base do Pici", testifica o coronel.
Segundo
o comerciante João Alberto Braga, o horário do sobrevoo geralmente
era à tardinha. "Dava para ver o pessoal nele, os cabos que
iriam segurar o dirigível na base ficavam balançando. Era como um
cesto, os marinheiros de boné na cabeça", detalha.
Quem
ainda mora no Pici convive com as marcas deixadas pelos americanos.
No bairro desde 1966, o educador Leonardo Sampaio conta que o espaço
dos galpões, antigos alojamentos dos militares norte-americanos,
ainda tinha a torre onde pousavam os Blimps. "Várias bases de
cimento, com argolas de ferro, apoiavam a torre", informa.
Se
a estrutura não perdurou por completo, algumas reminiscências
resistem, verdadeiras ou não, como a história dos carros
enterrados. "Fomos morar do lado da cerca da base. Falavam dos
carros, tinha muita lenda. Certo é que a população cavou tudo,
tirou cabos. Dos Zeppelins (na verdade, Blimps, que eram dirigíveis
menores), os mais antigos dizem que era estranho ver aquilo enorme no
céu, tão baixo", explica.
Na
atual Rua dos Monarcas há dois paiois, depósitos em que se
guardavam suprimentos de guerra. Um outro galpão fica dentro do
Campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC). "É uma
patrimônio que vai além de ser um bem da Cidade, mas da guerra",
opina o educador. Perto do Departamento de Física, por exemplo, o
asfalto ainda é daquela época.
A
Capela de São José, na Avenida Carneiro de Mendonça, tem paredes
erguidas pelos americanos, sendo que a estrutura, entre os anos de
1943 e 1945, era um paiol. Finda a guerra, o espaço foi transformado
em igreja e era usado por religiosas do bairro Parangaba.
FIQUE
POR DENTRO (Observação,
resgate e segurança)
A
primeira base cearense foi a do Alto da Balança, de 1930. Em 1939,
com o início da guerra, aviões operavam na foz do Rio Ceará. Em
1941, as atividades se intensificaram no Atlântico Sul, após o
ataque a Pearl Harbor. Em Fortaleza, foi construída a base do Pici,
inaugurada em 1942 pela empresa Campelo & Gentil. Na década de
60, o espaço serviu para corridas de carro. Na época, a área
pertencia à Panair do Brasil que, decretada falência, cedeu a
jurisdição a instituições federais, com a Universidade Federal do
Ceará (UFC). Em 1943, a base do Cocorote (local do atual aeroporto)
começou a ser construída. O acesso entre as duas bases, pela
Avenida João Pessoa, passava pelo Bar Avião
FIQUE
POR DENTRO (Tráfego
aéreo)
A
Base do Pici foi construída entre julho e agosto de 1941, operando
até abril de 1942, quando o tráfego aéreo foi transferido para a
Base do Cocorote, que não tinha problemas de abastecimento de
combustível e ventos. Assim, segundo o livro "Caravelas,
Jangadas e Navios", de Rodolfo Espínola, no Pici, ficou
funcionando a base aeronaval de Fortaleza, com três dirigíveis, a
partir de 26 de novembro de 1943. Os soldados observavam navios ou
submarinos (a partir da espuma deixada na superfície da água)
inimigos. Os americanos proibiram fotos dos Blimps, por isso são
poucos os registros. O Cocorote fica onde, hoje, está parte do
Aeroporto Internacional Pinto Martins.
Diário do Nordeste, julho de 2010
MARTA
BRUNO
REPÓRTER