(por Alves Andrade)
Reinava naquela mansão perfeita harmonia. Ao Piano, Jacques Klein,
aracatiense em visita a Fortaleza, era homenageado e homenageava o
seleto público,
com a sonata 62 em mi bemol, de Joseph Haydn. Os convidados no preto
e as convidadas em seus longos de cores variadas ouviam atentos ao
aclamado pianista. Pelo salão, alguns casais mais afeitos à dança
passeavam como se fossem cisnes inspirados em manso lago, como diria
Varela. Garçons iam e vinham com as bandejas de bebidas e quitutes
em cada mão, a passos largos.
Na biblioteca, um grupo particular conversava sobre negócios,
política, jornalismo, economia e até Literatura. Esse grupo se
reunia sempre às quintas-feiras à noite. Era uma espécie de clube
do bolinha, formado por homens distintos. Eram ricos empresários,
jornalistas, escritores, advogados, médicos etc. Curiosas, algumas
esposas, passavam discretamente para tentar ouvir algum sussurro que
lhes denunciasse os misteriosos diálogos ali mantidos. Entretanto,
aqueles homens, além do trivial, não tinham muito segredo a
esconder, apenas alguns. E esses eram lá entre eles.
Quando a lua ia alta em sua viagem noturna, o burburinho externo
adentrou à
biblioteca. Era o mordomo que, trajando calças e paletó vinhos,
assim
como
camisa
e gravata pretas, abria a porta para anunciar a um dos convidados,
Senhor Lúcio, que ali se encontrava alguém a sua procura. Os
colegas da quinta feira, menearam levemente a cabeça enquanto um
sorriso breve, porém delator, desejava-lhe boa sorte. Era uma moça
bem alinhada em seu salto alto, blazer
e saia brancos que aguardava o distinto Senhor Lúcio.
Senhor
Lúcio era jornalista e
colunista
de um dos grandes jornais da capital. Seu pai era italiano e sua mãe
uma
nobre
inglesa. Os dois vieram para o Brasil, precisamente para fortaleza,
ainda na década de vinte. O motivo do
exílio da Europa era sempre dado com palavras pouco elucidativas, o
assunto era sempre deixado de lado e logo
substituído
por outro “mais importante”. Pouco tempo depois, nasceu-lhes o
filho único, o menino Lúcio. Educado com esmero, o garoto
queria ser médico. Um de seus principais robes era dissecar animais.
Diziam as
más línguas inclusive
que ele os matava para realizar esses procedimentos. Entretanto seus
pais negavam essa atitude e diziam que os
adquiriam
já
cadáveres para “o Lucinho brincar”.
Não
foi médico, mas jornalistas. Trabalhava duro
na redação do jornal.
Nos tempos livres, era visto no necrotério do
Instituto Médico Legal, à época situado
na Universidade do Ceará.
Nada
a se estranhar, uma vez que esses ambientes despertam extrema
curiosidade entre muitas
pessoas.
Além do mais, Lúcio publicou grande matéria, depois
transformada
em livro,
sobre Alexandre
Lacassagne, médico e
criminalista francês, cujos métodos e teorias divergiam da de seu
mestre, o italiano Cesare Lombroso. Enquanto
Lombroso atestava que a criminalidade é nata, Lacassagne apontava o
meio como elemento capital na produção do criminoso. Ele dizia que
a "Justiça escolhe, a prisão corrompe e a sociedade tem os
criminosos que merece". Ainda
hoje, o
livro de Lúcio
é amplamente enaltecido por seus pares jornalistas. Vieram depois
outros livros e o tema cadavérico multiplicava-se, sempre com grande
sucesso. Seus amigos médicos, alguns
deles legistas, diziam que seu denodo para com os mortos era
admirável. Mas de se admirar era que nunca em sua coluna diária
abordou o tema da morte. Tratava de tudo. Futebol, política,
Literatura e até festas sociais. Mas nunca cadáveres povoaram seus
parágrafos, nem
mesmo quando um nome digno de nota partia dessa para uma melhor.
Lúcio
despediu-se dos amigos e dos anfitriões. Apertou calorosamente a mão
do famoso pianista e dirigiu-se ao portão, onde a moça de blazer e
saia brancos o aguardava, pacientemente, tragando
um Astoria. Lúcio
apertou-lhe a mão suavemente, quase um carinho. Ela o recompensou
com um sorriso de quase volúpia. Ele esfregou as mãos
e indagou-lhe quase ansioso:
–
Tudo pronto?
Diante
do aceno positivo, os dois dirigiram-se ao Aero-Willys.
Ele, gentilmente, abriu a porta para que ela entrasse, fechou-a,
dirigiu-se ao banco do motorista e o carro deslizou serenamente em
direção à Beira Mar. Próximo ao Náutico Atlético Cearense, ele
estacionou, entregou a ela um cheque, o qual ela, depois de
analisá-lo, guardou na bolsinha branca, que trazia a tira-colo. Ela
lhe entregou um molho de chaves, que ele guardou quase trêmulo no
bolso do paletó. Lúcio esperou que ela tomasse um táxi para só
depois Deixar o Aero-Willys. Deu uma breve olhada para a casa branca
de muro baixo e telhado verde. Tirou a chave de
onde tinha guardado,
mirou-a, jogo-a para cima e a devolveu ao
bolso. Havia pouca gente na rua, a brisa batia leve fazendo seus
finos
cabelos dançarem. Com as duas mão nos bolsos da calça, ele
passeou, de cabeça baixa, refletindo no que estava por acontecer. Em
um quiosque, ali próximo, tomou uma Brhama, calmamente, sem pressa,
enquanto tragava um Minister, atrás do outro. Parecia
um adolescente aguardando seu primeiro encontro.
Já
eram duas da manhã, quando se dirigiu à casa, cujas chaves
tilintavam no bolso do paletó. Girou uma
delas
na fechadura e entrou. Era uma casa simples avaranda com
um pequeno jardim na
frente e atrás. Sala, um quarto simples, uma suíte, cozinha, tudo
muito limpo. Não era a primeira vez que ia ali. Conhecia bem os
cuidados da Fátima, o
zelo com que preparava o ambiente. Os
lírios, as rosas, as peônias e os jasmins eram suas flores
preferidas para enfeitar e perfumar a noite dos noivos. Naquele dia
ela escolhera os jasmins amarelos que iam bem com o branco do
vestido.
Lúcio
abriu a porta do quarto de núpcias. A noiva estava sentada e o
aguardava, vestida de branco, véu e grinalda. Sobre a fronte uma
coroa de miosótis
em botão adornava
sua pele pálida. O noivo enlaçou-a pela cintura, beijando-a
com certa sofreguidão. Deitou-a, cuidadosamente, fitando-a nos
olhos, admirando os cílios fartos. Despiu-a, sem pressa, enquanto
sussurrava para que não se assustasse. Por alguns minutos fitou sua
nudez por
inteiro, enquanto
também se ia despindo. Enlaçou-a novamente.
Já com a respiração ofegante, o
coração acelerado, penetrou-a
com
sua virilidade, sussurrando
palavras ensandecidas.
Depois, apagou a luz e, lasso,
dormiu abraçado à sua esposa.
No
dia seguinte, acordou por volta de nove horas. Olhou sua
mulher
ainda despida, cobriu-a
com o lençol. Foi ao banheiro, tomou banho, cantarolando uma
marcha
nupcial. Em seguida se vestiu, abriu
a porta, respirou o ar puro que vinha do mar, desceu
os degraus da casa e foi ao quiosque no
qual estivera na madrugada.
Pediu
uma cerveja, acendeu
um Minister,
enquanto aguardava que Fátima chegasse. Não
demorou muito para que ela surgisse.
A
moça
se aproximou e o cumprimentou com
o riso de costume. Ele lhe entregou as chaves e,
de
longe, viu quando ela e dois homens entraram
na casa para retirar o cadáver que lá estava.