terça-feira, 29 de outubro de 2019

FEMINICÍDIO: CRIME E COVARDIA



(Por Alves Andrade)

“Mulher, irmã, escuta-me: não ames!
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Te jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher. Ele te engana!
As lágrimas são as galas da mentira
E o juramento, o manto da perfídia!”
                                          (Macedo)

Queria aqui refletir,
Sobre coisa acontecida,
Quisera ser coisa boa,
Não é de morte morrida,
É sim de morte matada,
Que abre em corações ferida.

U’a matança de mulher,
Tal qual fosse planejada,
No Brasil de norte a sul,
Não tem classe desejada,
Pobre e rico mata e morre,
E a justiça não faz nada.

Porém isso não é de hoje,
Desde que era pequenino,
Sabia histórias assim,
Morte ao sexo feminino
Executada por homens
Desse sexo masculino.

***
Creusa, uma linda mulher,
Cujo marido a matou,
Foi com lâmina afiada
Que o crime se perpetrou.
Faz tempo que aconteceu
Minha infância o relembrou.

Ela, nossa conhecida,
Mulher de muita alegria,
O marido um capadócio,
Vida rastrera vivia,
tinha ciúmes da esposa,
Nada pra ver, e ele via.

A notícia, divulgada
Pelas rádios da cidade,
Monstro abalo onde morávamos,
Grande a infelicidade,
Moça mui bonita e jovem
Vítima de atrocidade.

***
No ano de setenta e seis,
Fato triste ali se deu:
Musa, libérrima e audaz,
Ângela Diniz morreu.
O assassino endiabrado
Era o companheiro seu.

Este fato foi pior
Porque o canalha saiu
Da prisão dias depois,
O país inteiro viu
Dizer-se pra todo mundo:
Ela  o marido traiu.

Falo de Ângela Diniz,
De Doca Street companheira,
Dizimada então por ele
Teve a imagem na lameira
Mas isso mexeu com a turma
Feminina brasileira.

A tese dessa defesa
Acusava-a de adultério,
Prostituta e muito mais.
Vejam só que despautério!
Denegriu a imagem sua,
Às portas do cemitério.

Foi grande a iniquidade,
Foi tamanha a covardia,
O caráter dessa musa
Foi tratado à revelia.
O bandido fora preso
Mas já é livre hoje em dia.

***
Mil novecentos e um,
Início de um tempo novo,
O orbe não tinha acabado,
Era bom o preço do ovo
Havia muita esperança
Na face rubra do povo.

A mulher bonita e jovem
Na casa de jogo entrou,
Foi lá buscar o marido,
Que o dinheiro ali jogou.
Surrou-a perante todos
E em casa ele a matou.

Esse fato aconteceu
No sul do nosso Brasil,
Foi em Caxias do Sul
Que esse indivíduo vil
Matou sua amada esposa
E o albor do século viu.

***
Há pouco uma empresária,
Aqui mesmo em Fortaleza,
Morreu de morte matada,
Foi bem grande a malvadeza,
Todo mundo sabe disso,
Mas é grande a safadeza.

O bandido advogado,
Querendo o dinheiro seu,
Matou logo a coitadinha
Pelo amor que ela lhe deu,
Não foi nem por um ciúme
Que o crime ele cometeu.

Foi tudo pela ganância
Que o bastardo praticou
Feminicídio violento,
De suicídio ele chamou,
E a justiça cearense
No calhorda acreditou.

Tenho pena da família
Daquela pobre criatura,
Filho chora noite e dia,
A pobre mãe inda atura
A face desse indivíduo
Mentindo tanto que jura.

***
Vê como a justiça é falha,
Numa praia mesmo aqui,
Um indivíduo assassinou,
Na praia do Icaraí,
A filhinha e a mulher,
Já está solto por aí.

Mesmo tendo confessado
Como o crime consumou,
O juiz mamanaégua
Logo logo ele soltou,
Incentivando outros crimes.
Nem mesmo nisso ele pensou?

***
Um indivíduo seboso
Na cidade Pedra Branca
Matou uma bela menina
Muito rica e muito franca
Porque ela decidiu
Acabar com sua banca.

O homem nojento e feio
Chegou na fazenda lá,
Se fazendo de bonzinho,
Começou a trabalhar,
Se botou para a menina
Que o mandou coquim catar.

A besta fera queria
Seus desejos afogar,
Planejou um plano velho
Para a coitada estuprar,
Até dinheiro o matador
Conseguiu ele ajuntar.

Depois do fato consumado,
Não ainda satisfeito,
Matou a bela menina,
Porque era um mau sujeito,
Foi embora pro sertão
Onde foi preso, com efeito.

***
Esses são apenas casos
Que ecoam pela mídia,
Mas há milhares no olvido
Repletos de igual perfídia,
Perpetrados por maldade,
Feitos com toda insídia.

Todo dia é uma loucura
O que vimos na telinha,
Notícia de mulher morta
Por doutor ou flanelinha,
Ninguém escapa da fúria
Desse trem fora da linha.

Não é de hoje não
Que acontece coisa assim,
Mas os casos eram vistos
Tal coisa banal, enfim,
Homens donos de mulheres,
Era uma coisa ruim.

Mas ao longo da história
Bastante coisa mudou,
A mulher saiu de casa,
Foi à rua e lutou,
Bateu o pé, disse não,
Seu direito conquistou.

Entretanto o bicho homem
Indignado se tornou
E na recente história
Endiabrado ele ficou,
Arrogância lhe sobrando
A companheira ele ceifou.

A justiça então criou
O termo feminicídio,
Que não deve ser tratado
Como mero homicídio,
E não se deve ter dúvida
De que não foi um suicídio.

É quando o homem assassina
A companheira ou namorada
Por ciúme ou baboseira
Ou pra ter a alma lavada,
Agora vai pra cadeia,
Vai curtir cela fechada.

Entretanto me parece
Que o efeito não surtiu,
Pois duzentas mulheres
Morreram de forma hostil,
Apenasmente neste ano!
Perda que o filho sentiu.

Pela ira do assassino,
A morte elas encontraram
Por todo tipo de arma,
Facão e pistola usaram,
Pau, pá, enxada e pedra
Até pelas mãos  mataram.

É preciso que a justiça
Deste Brasil imenso
Pare esse rio de choro
Que encharca do filho o lenço
Mostre ao homem mau
Que a mulher não lhe pertence.

Peço assim divulgação
Para esse apelo chegar
A milhares de consciência
E o homem mentalizar
Que o amor de uma mulher
Não dá pra se apropriar.

Que é bom esquecer o passado
Quando a lei estipulava
Que a mulher era submissa
Ao homem com quem casava,
Mesmo se era infeliz
Mesmo quando mal passava.

Mas hoje os dias são outros,
Mulher e homem iguais,
Esteja junto ao marido,
Seja na casa dos pais,
É bom ir se conformando,
O tempo não volta mais.
Fim!

terça-feira, 22 de outubro de 2019

TORNEIO NO CAMPIM



(Ah, quanta saudade!)

Eu tinha por volta de dez anos e uma vontade danada de ser jogador de futebol, de me tornar uma celebridade, como Pelé, Rivelino e outros de minha época. Na verdade, creio, o desejo mesmo era sair daquela mesmice, daquele subúrbio. Ou, quiçá, não tinha desejo de nada. Era por mim só uma metamorfose ambulante, já que a música de Raul Seixas com esse título já ecoava em meus ouvidos e se misturava com muitas outras, instalando no meu tenro inconsciente um feixe de sons que se contradiziam e se encontravam.
Naquele ano, eu e meus comandados de rua tínhamos uma importante missão: ganhar o torneio de futebol de pivetes que iria ocorrer no dia 7 de setembro. Era o ano de 1975, um ano após o fracasso da seleção brasileira na Alemanha. Treinávamos e jogávamos todo santo dia num campinho que havia na esquina, quando os grandões não vinham tomar nosso espaço. Estávamos deveras mobilizados. Nosso time não era o melhor, não era sequer bom, mas era o mais esforçado. Muitas vezes ficávamos até as luzes do sol se apagarem, esperando que o campo ficasse livre para ensaiarmos passes, chutes e defesas, no escuro.
Mas também éramos motivo de risos, uma vez que no ano anterior perdemos logo na primeira partida, e de goleada. Ninguém queria colaborar com nosso time, nem para o dindim depois dos treinos sob forte sol do meio dia, aos domingos. Realmente não tínhamos um bom time, apenas esforço. Marcílio só sabia gritar e reclamar; Júnior Coruja passava mais tempo ajeitando os óculos do que jogando; Galera, um negrinho parrudo, só estava no time porque era o mais forte e jurava bater em quem o tirasse da equipe; Tim, filho do peixeiro, jogava bem, éramos nós dois que carregávamos o time; e Ivan, nosso goleiro, tinha optado por caminhos distorcidos e estava em fuga, tivemos, portanto, de colocar em seu posto Pedro César, que ria e brincava, mas não entendia muito de pegar bolas. Nosso reserva (só havia um) era Deoclécio, virou grande humorista, ainda bem que tinha essa verve. Além do mais, tínhamos baixa estatura, éramos entanguidos, como se dizia à época.
Os outros meninos, que participavam desses torneios, tinham o tamanho de sua idade, batiam na bola direitinho e eram donos do campo da rua onde moravam. Nessa época, quem viveu-a deve lembrar, havia sempre querelas entre meninos de ruas diferentes. Não como hoje, quando se formam gangues ou facções. À época éramos ingênuos, porém confusãozeiros. Dávamos um dedo por boa briga. Os outros não ficavam atrás. Assim a disputa na bola ficava mais acirrada. Mas como na nossa rua só havia o nosso time e por não termos apoio dos adultos de lá, só nos sobrava apupos e raiva.
Depois de conseguirmos, a muito custo, numa lojinha de artigos baratos, comprar umas camisas verdes com o emblema do Ceará, inscrevemos nosso time com o nome de Ceará Verde. Mais motivos para galhofas. Entretanto estávamos e era muito felizes, pois no ano anterior jogamos sem uniforme. Quando fomos fazer a inscrição, naquele ano, indagados sobre o uniforme, aos afirmarmos que íamos jogar sem camisa, o responsável colocou na ficha de inscrição: “descamisados”. Foi a primeira vez que ouvi o termo.
No dia 7 de setembro daquele ano, 1975, estávamos a postos, não prontos, para o torneio. Naquela época, o 7 de setembro era um feriado bastante festejado, era o verdadeiro dia da pátria, ou dos “patriotas” que estavam no poder. O país inteiro se vestia de verde amarelo, com bandeiras nas mãos para festejar, pois o que ocorria nas salas de interrogatórios das diversas polícias oficiais não era sabido pela população comum. Talvez por isso alguns da minha idade ou mais velhos tenham saudades da época. Parecia realmente um período de estabilidade econômica e política. Mas não era. Por trás da faixada presidencial, a corrupção e a tortura corriam soltas, e escondidas do cidadão comum.
Pois bem, estávamos a postos e prontos. A primeira partida foi vencida por nós, nos pênaltis. O outro time era ruim, e o goleiro deles pior que o nosso. Na segunda partida, já nas quartas de final, o time que seria nosso adversário, foi desclassificado por ter armado grande confusão. Motivo para falarmos para o Marcílio não criar nenhuma. Já estávamos na semifinal. Os outros diziam que estávamos com sorte, mas que dali não passaríamos. Passamos, e com méritos. Na partida contra os garotos da rua Rio Solimões, deu uma doida no Pedro César que ele defendeu todas as bolas perigosas chutadas contra ele, mesmo de forma atabalhoada. E coube a mim, o craque do time, fazer de cabeça o gol da vitória. Enquanto no pingo do meio dia esperávamos para fazer a final contra os meninos da rua Rio Tocantins, o time da outra rua, já mencionada em outra crônica, recebemos de um cidadão sorvetes, e de graça. Este, depois de nos entregar os gelados, pegou na mão de cada um e disse que nós éramos bravos e por isso precisávamos de apoio. Não entendemos bem, pois estávamos de olho no juiz, que chamava os times para assinar a súmula. Acho que era isso. Só quando o jogo começou, foi que percebemos que o outro lado estava desfalcado. Faltavam seu goleador e o goleiro. Olhei em volta e os vi sentados, um com a mão no joelho e o outro com gelo no olho. Agradeci então pela confusão arrumada pelos nossos adversários anteriores.
Não é que a partida foi disputadíssima! Júnior coruja retirou os óculos e, sem se preocupar em repô-los, jogou como ninguém. Pedi para o Galera ficar sempre na frente do nosso goleiro para rebater as bolas e fiquei no meio do campo para jogar bola para o Tim. Nosso primeiro gol foi um passe perfeito do muro para o Tim. Quem já participou desse tipo de torneio realizado nos campim compreendeu que “muro” trata-se de um dos melhores armadores de um time. Pois é. Esses espaços para a prática do futebol estão sempre situados entre dois muros, ou um muro e uma cerca. Esse nosso era ladeado por uma cerca, da casa da Dona Maria, para onde a bola teimava em evadir-se, e o muro da casa de seu Zé Louro. Pois foi esse muro que deu perfeito passe para o Tim fazer o primeiro gol. Primeiro porque veio o segundo o terceiro e o quarto. Foi goleada. Mas é bom lembrar que depois do primeiro, os pivetes da rua Tocantins endoidaram e quiseram bater no juiz. Este abandonou a partida e correu para casa, um adulto (aqueles dos gelados) assumiu o apito, expulsou dois garotos do outro time, aí foi só moleza.
Mesmo assim, ou por esse assim, fomos campeões. A alegria contaminou todos nós, demos até entrevista para uma rádio improvisada com microfone de carne de lata. Recebemos, da organização do torneio, cada um uma medalha. O time,  além de  uma taça bonitinha, ganhou um uniforme completo de camisas da seleção brasileira. Pena que nem as medalhas, nem a taça, nem o uniforme ficou conosco por muito tempo. O cidadão que nos havia presenteado com os sorvetes e com as expulsões se aproximou dizendo que iria nos apoiar e que era preciso guardar aquela conquista muito bem guardada. Informou que morava ali próximo e que no dia seguinte viria para nos treinar. Éramos ingênuos e não vimos maldade alguma. E nem houve, apenas nunca mais o vimos. Soube depois que ele havia deixado na casa da namorada a conquista do “seu time de pivetes”.
Os anos passaram e, ainda hoje vejo pessoas que só se aproximam de alguém ou de algum grupo quando este ou aquele lhes pode dar alguma visibilidade. Satélites opacos, que são, precisam da luz de um sol para fazer fulgurar ao mundo seu lado obnublado.
(Alves Andrade, outubro de 2019)

sábado, 21 de setembro de 2019

UMA FÁBULA



Havia, há muito tempo, no reino dos animais esopoístas, uma velha corsa, cuja idade, tinha levado seus pelos lanosos e deixado apenas os cardos, curtos e hirsutos. Isso possivelmente era o motivo do recolhimento, tão impróprio desses animais. Mas que talento tinha ela para mandar! Adorava criar atividades para os outros animais realizarem.
               Certa vez, ordenou que todos os animais treinassem para uma corrida que ocorreria em comemoração ao dia dos bichos, que fora a nomeação do rei das selvas, matas e rios. Como treinaram os infelizes!! Dia e noite sob o olhar lacrimoso da velha fêmea do veado, lá estavam os bichos, sem reclamar, a treinar desenfreadamente. Até a tartaruga esqueceu de sua própria fábula e corria feito uma lebre. Porém, no dia consagrados a coroação do Rei Leão, a corça tinha desaparecido, não apareceu para dar consecução ao espetáculo de voar e correr. De modo que os animais se atrapalharam, os que deveriam voar, corriam, os que deveriam correr nadavam.
               O papagaio, palrador, não deixou por menos e fez ver aos animais que tinham sido ludibriados pela velha corça, que os fizera de bobos e trabalharam inutilmente. Quando soube das falações do pena verde, a corça ficou louca, e, por pouco, não teve um surto e morreu.
Mas o que não mata desperta. E assim, depois de perseguir o pobre papagaio para fazê-lo nu em pelos, a corça, voltou a passear pelas matas, savanas, não mais com a elegância desses cervídeo, mas com seu andar meio coxo. Tornou a dar as ordens, feitio dos animais que se põem em soberba para submeter os outros. E lá foram camundongos, cotias, veados, lebres, tartarugas na consecução de um grande projeto: uma festa em homenagem à onça pintada, comemorando o dia em que o felino livrara-se de terríveis caçadores. Tudo sob os olhares duvidosos do loro, que de vez em quando dizia:
Curupaco, isso não vai dar certo. Depois tão tudo arrependido.
Porém no dia da festa estava tudo pronto, bonito, enfeitado e a coça velha comandou tudo com presteza impressionante. Foi tanto o sucesso que a onça pintada nomeou a corça velha para sua amiga imediata.
Pena que se esqueceram de agradecer ao papagaio palrador por sua genial contribuição, pois a moral de tudo isso é...
TODA CRÍTICA É CONSTRUTIVA!
Essa fábula não é de Esopo, mas bem poderia sê-lo.