quinta-feira, 12 de maio de 2022

O CABELEIRA

 











(Por Alves Andrade,

baseado na obra de Franklin Távora)


No século dezenove,

No ano de setenta e seis,

Foi que veio então a lume

Mostrar do sertão a tez

O romance O Cabeleira,

O qual li mais de uma vez.


Sendo romancista histórico,

Franklin Távora escreveu,

Requintado em lucidez,

O que por ali se deu,

A história de Cabeleira

Mal feitor que ali viveu.


Era muito grande a fome

Que a seca pra li trazia;

Era muito grande a morte

Que a peste ali espargia;

Porém o maior flagelo

Cabeleira é que fazia.


Na região de Goiana,

De Santo Antão e Goitá,

Ninguém não tinha sossego

Nem mesmo dentro do lar,

Quadrilhas então à solta

Todo o povo a castigar.


Era o século dezoito,

Setecentos, coisa e tal,

O Brasil inda Colônia,

Pertencente a Portugal,

Pernambuco embrionário,

Capitania especial.


José Gomes foi menino,

Teve da mãe o carinho,

Mas o pai, criatura má,

Levou-o a mau caminho,

Ensinou-lhe assim que o certo

Era matar passarinho.


Tirar a vida dos outros

Depois de ser homem feito,

Foi ensinado na infância,

Pelo pai, um mau sujeito,

Enquanto por outro lado,

A mãe pregava o respeito.


Se cuidar dos animais

A mãe o orientava,

Joaquim, o pai malvado,

Malvadeza ensinava,

Tirar a vida dos bichos,

Era assim que o pai mandava.


A mãe com ele ajoelhada,

Lhe dava terço a rezar,

O pai então irritado

Lhe deu faca pra matar,

“Meu filho há de ser homem

Pra todo mundo assustar”.


E na hora de escolher,

Por medo ou por vaidade,

Seguiu o caminho do pai,

O caminho da maldade,

Deixando sua triste mãe

Pra não ter felicidade.


E pouco tempo depois,

José Gomes se tornou

O temível Cabeleira.

Muita gente ele matou

Além das propriedades

Que seu bando saqueou.


Era o horror das cercanias,

Matava só por prazer,

Não tinha respeito à vida,

Não quis, não queria ter,

Sua faca era invencível,

Fazia fogo sem ver.


O pai do bando era o chefe,

O filho, o mais temido;

Todo roubo que faziam

Pra Timóteo era vendido;

O capanga Teodósio,

Cão cerbero sem sentido.


A mata era seu castelo;

As serras, a fortaleza;

As estrelas, o farol;

As fogueiras, a clareza;

A loucura, a coragem;

A vida, uma tristeza.


Porém quando viu Luíza,

Amada de sua infância,

Cabeleira refletiu

Sobre sua ignorância,

Sobre o mal que tinha feito,

Sobre sua petulância.


Foi após uma ocorrência

Que Rosalina vitimou,

Preferindo então a morte,

Com fibra não hesitou,

Com as mulheres da família

No incêndio se queimou.


Cabeleira à Luíza

Amor eterno jurou,

No meio do matagal,

Com ela, ele noivou

Mas logo pela manhã

Para o céu ela voou.


Mas antes, porém, contudo,

Seu amado consertou,

Aos pés dela mui contrito,

Pôr-se bom ele afirmou,

Desfez-se de suas armas

No monturo as jogou.


Nossa! que momento belo

Essa Arte nos legou,

Com a pena banhada em tinta,

Franklin Távora consagrou

A redenção de um homem

Que só o amor alcançou.


Depois daquela partida,

Tristeza grande o tomou,

Saindo no mundo afora,

Só desespero encontrou.

Nunca mais matou ninguém,

Aquela alma ela salvou.


Dentro de um canavial,

A polícia o prendeu.

Indagou-lhe o capitão:

“Cabeleira é nome seu?”

“José Gomes, seu criado.”

Desta forma respondeu.


Levado para goiana,

Mesmo preso ali tocou

A viola enluarada,

Muita gente ali chorou.

A esposa do Capitão

Pelo bandido implorou.


Mas selaram seu destino

Para na forca morrer

Juntamente com seu pai,

Sem ninguém interceder,

A mãe, vendo-o pendurado,

Também veio a falecer.


Com esse livro o autor

Procura nos ensinar

Que o crime nunca compensa,

Mas também para cismar

O direito da justiça

De outro homem executar.


Mostra que as autoridades

Devem do broto cuidar,

Dar-lhe boa Educação

Pra bom caminho trilhar

E que a pena de morte

Devia se eliminar.


Séc’lo e meio se passou,

E essa má instituição

Ainda é vista por muitos

Como a grande solução

Para o fim de todo crime

IMENSA E MERA ILUSÃO!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

OS BLIMPS E A FORTALEZA PROVINCIANA

Olhar para o alto e avistar o objeto era garantia de diversão e curiosidade entre crianças e adultos





Sessenta e cinco anos após o fim da Segunda Guerra, Fortaleza ainda guarda marcas do período em que a vinda de norte-americanos mudou costumes não só nas ruas da Cidade, mas no oceano e mesmo no ar. Entre 1943 e 1945, nem precisava erguer muito a cabeça para ver, cruzando o céu, os dirigíveis do tipo Blimp, costumeiramente confundidos com o popular Zeppelin. Se, em municípios vizinhos, as aeronaves causavam estranhamento e até medo, na provinciana Capital, elas eram admiradas por crianças e adultos.

Quem passou pelo período conta que o aparecimento de um Blimp transformava, mesmo que por segundos, a rotina em praças, campos de futebol, casas. Ao passarem pelo Centro, Jacarecanga, Benfica, Praia de Iracema e Pici, os dirigíveis tanto causaram curiosidade como deixaram lembranças inusitadas na memória da cidade.

Segundo registros do livro "A História da Aviação no Ceará", de Augusto Oliveira e Ivonildo Lavôr, "o Blimp mudava de rota e se movia vagarosamente sobre prédios e residências do bairro Benfica". Na Avenida da Universidade, um fato inusitado mostrava que os "norte-americanos gostavam de bisbilhotar a vida alheia".

Mais precisamente no número 2.486, uma jovem tomava banho de sol no terraço da casa, ao lado da caixa d´água. Relatos da época dizem que a beleza da moça fazia os americanos reforçarem a rota pelo endereço só para apreciá-la.

Naqueles anos, os americanos tinham duas bases em Fortaleza, a do Pici e a do Cocorote. Na primeira, concentravam-se esquadrilhas de caças, aviões de patrulha e bombardeio, aeronaves de transporte e os Blimps, espécies de Zeppelin em menor escala. Também era no Pici que ficava a torre de comando onde os dirigíveis eram presos com amarras, o que permitia que, mesmo parados, continuassem suspensos. Todos pertenciam à US Navy, a marinha norte-americana, que operou no Brasil entre os anos de 1943 e 1945 com dois esquadrões de Blimp contra os "boats" (submarinos).

"Eles vinham de Natal. Aqui era a porta para seguir em direção à África, entrando por Dakar", explica o jornalista e memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. Ele lembra que, na época, os blecautes noturnos eram provocados para a Cidade não ser vista pelos alemães. Mas era durante o dia, com o céu bem claro, que os Blimps chamavam mesmo à atenção do fortalezense.

"Dos dirigíveis, os americanos acenavam para as pessoas. Todo mundo via, porque eles passavam bem baixinho e devagar", testemunha Nirez. Ainda conforme se recorda o memorialista, os veículos funcionavam como espécies de observatórios por motivos específicos: voarem a uma altura média de 50 a 100 metros do nível do mar e com velocidade de cerca de 40 quilômetros por hora.

Diversas utilidades

Dessa forma, os dirigíveis eram usados em patrulha submarina, registro de fotografia em terra e no mar e observação do espaço local, com fins de prevenção e segurança. Mas, para os meninos da Vila Diogo (no Centro, entre Avenida Imperador e Rua Princesa Izabel) e do Barro Vermelho (atual bairro Antonio Bezerra), os Blimps eram motivo de diversão. Não era raro um garoto subir no telhado de casa na vã tentativa de tocar os dirigíveis com cabos de vassoura.


O sobrevoo de aviões-caça, como P-36 Halk e P-47, era um desfile para uma população de 180.185 habitantes. Mas a memória deixada pelos Blimps que passaram por Fortaleza não é só nostalgia. Como não poderia deixar de ser, houve acidentes.

A explosão de um Blimp que fazia patrulha na costa deixou dez mortos em 28 de fevereiro de 1944. De acordo com a obra "O Ceará na Segunda Grande Guerra", dos autores Stênio Azevedo e Geraldo Nobre, os corpos dos militares americanos foram sepultados no Cemitério São João Batista e, posteriormente, exumados e encaminhados para os Estados Unidos. No total, 32 militares americanos morreram no Ceará, durante a II Grande Guerra Mundial.

De acordo com Nirez, um acidente de menor proporção, no Jacarecanga, também com o Blimp, resultou em lembrança mais concreta. O irmão do jornalista, o astrônomo Rubens de Azevedo, foi ao local e ganhou, dos americanos, uma lente de máquina fotográfica.

LEMBRANÇAS
Silêncio e lentidão nos ares da Cidade



Sem o ruído e a velocidade dos aviões de guerra, os dirigíveis aguçavam a curiosidade em uma Fortaleza cheia de novidades, mas também suscitavam estranheza e mesmo medo nos meninos das cidades menores. Os Blimps que cruzavam o céu fazendo lentas curvas chegaram no tempo em que a Capital aprendia a conviver com os lampiões a gás nas ruas - depois substituídos pela energia elétrica - e com os carros que causavam os primeiros atropelamentos, na década de 1940.

Era no entorno da Praça do Ferreira que a Cidade mais percebia as mudanças: na Sorveteria Jangadeiro, nos cafés frequentados pela alta sociedade e pelos americanos, no corre-corre dos meninos que vendiam jenipapo como se fosse sapoti. Em um novo ritmo, mais veloz e barulhento, como retrata o historiador Antonio Luiz Macedo e Silva Filho, no livro "Paisagens de Consumo: Fortaleza no Tempo da Segunda Grande Guerra".

"Quando vi pela primeira vez, lembro que senti medo. Aquilo passando no céu, enorme, silencioso, era muito diferente dos aviões. Às vezes, reunia gente para ver. Era o comentário por dias", ressalta o jornalista Marciano Lopes que, na época, tinha seis, sete anos. Segundo ele, havia até um ritual para a apreciação. "Ficava em baixo de uma árvore mulungu. No verão, todas as suas folhas caem, mas as flores amarelas permanecem em cachos, atraindo corrupiões, que enchiam a árvore de preto e vermelho, comendo e cantando", descreve.

Na opinião do coronel Rui Pinheiro Silva, que morava na Praça São Sebastião (Otávio Bonfim), a passagem do Blimp era um divertimento para crianças e adultos. O futebol no campo parava abaixo dos dirigíveis. "Era uma coisa tão linda, se não me engano, prateada. Eles passavam na direção do fim da linha para ir para a Base do Pici", testifica o coronel.

Segundo o comerciante João Alberto Braga, o horário do sobrevoo geralmente era à tardinha. "Dava para ver o pessoal nele, os cabos que iriam segurar o dirigível na base ficavam balançando. Era como um cesto, os marinheiros de boné na cabeça", detalha.

Quem ainda mora no Pici convive com as marcas deixadas pelos americanos. No bairro desde 1966, o educador Leonardo Sampaio conta que o espaço dos galpões, antigos alojamentos dos militares norte-americanos, ainda tinha a torre onde pousavam os Blimps. "Várias bases de cimento, com argolas de ferro, apoiavam a torre", informa.

Se a estrutura não perdurou por completo, algumas reminiscências resistem, verdadeiras ou não, como a história dos carros enterrados. "Fomos morar do lado da cerca da base. Falavam dos carros, tinha muita lenda. Certo é que a população cavou tudo, tirou cabos. Dos Zeppelins (na verdade, Blimps, que eram dirigíveis menores), os mais antigos dizem que era estranho ver aquilo enorme no céu, tão baixo", explica.

Na atual Rua dos Monarcas há dois paiois, depósitos em que se guardavam suprimentos de guerra. Um outro galpão fica dentro do Campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC). "É uma patrimônio que vai além de ser um bem da Cidade, mas da guerra", opina o educador. Perto do Departamento de Física, por exemplo, o asfalto ainda é daquela época.


A Capela de São José, na Avenida Carneiro de Mendonça, tem paredes erguidas pelos americanos, sendo que a estrutura, entre os anos de 1943 e 1945, era um paiol. Finda a guerra, o espaço foi transformado em igreja e era usado por religiosas do bairro Parangaba.


FIQUE POR DENTRO (Observação, resgate e segurança)



A primeira base cearense foi a do Alto da Balança, de 1930. Em 1939, com o início da guerra, aviões operavam na foz do Rio Ceará. Em 1941, as atividades se intensificaram no Atlântico Sul, após o ataque a Pearl Harbor. Em Fortaleza, foi construída a base do Pici, inaugurada em 1942 pela empresa Campelo & Gentil. Na década de 60, o espaço serviu para corridas de carro. Na época, a área pertencia à Panair do Brasil que, decretada falência, cedeu a jurisdição a instituições federais, com a Universidade Federal do Ceará (UFC). Em 1943, a base do Cocorote (local do atual aeroporto) começou a ser construída. O acesso entre as duas bases, pela Avenida João Pessoa, passava pelo Bar Avião

FIQUE POR DENTRO (Tráfego aéreo)



A Base do Pici foi construída entre julho e agosto de 1941, operando até abril de 1942, quando o tráfego aéreo foi transferido para a Base do Cocorote, que não tinha problemas de abastecimento de combustível e ventos. Assim, segundo o livro "Caravelas, Jangadas e Navios", de Rodolfo Espínola, no Pici, ficou funcionando a base aeronaval de Fortaleza, com três dirigíveis, a partir de 26 de novembro de 1943. Os soldados observavam navios ou submarinos (a partir da espuma deixada na superfície da água) inimigos. Os americanos proibiram fotos dos Blimps, por isso são poucos os registros. O Cocorote fica onde, hoje, está parte do Aeroporto Internacional Pinto Martins.

Diário do Nordeste, julho de 2010
MARTA BRUNO

REPÓRTER 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

OS PODEROSOS CHEFÕES

 



OS PODEROSOS CHEFÕES

(Por Alves Andrade)

Há uns anos, trabalhava numa escola, quando fui surpreendido por seu Zé. Era assim que chamávamos aquele pequeno homem de bata azul que andava daqui pra li com uma celeridade que impressionava. Fui surpreendido quando precisei utilizar uma salinha que ficava no fundo do corredor e ele me apresentou uma quantidade infinita de chaves. Ali, naquele molho, estavam todas as chaves da escola, da sala da direção àquela salinha insignificante a qual precisei adentrar. Ante minha surpresa, ele me segredou: “quem tem as chaves tem o poder”. Era assim , portanto, que seu Zé usufruía da maior atenção que se pode dedicar a uma pessoa dentro de um ambiente corporativo. Depois de conhecido o santo, passei a ouvir as preces: “seu Zé, cadê a chave do almoxarifado?”, “Seu Zé, abra a dispensa pra mim.”, Seu Zé, em que sala o senhor guardou as bolas de vôlei?”. O poder de seu Zé foi realmente comprovado quando o espaço entre a caixa d’água e o chão, onde se guardavam todos os papéis imprestáveis, pegou fogo. Seu Zé não estava na escola para abrir a sala onde se guardavam os extintores.. Foi um deus nos acuda!

Em uma outra escola, a diretora vivia pondo seu cargo em xeque. “Não quero mais, quando terminar meu mandato, não quero mais”. Dizia ela sempre e sempre. Mas, eu, conhecendo a volúpia pelo poder que rege a humanidade, me ria por dentro, esperando a próxima eleição. Dito e feito. Começaram as inscrições para a disputa do cargo, ela foi a primeira a se candidatar. Aí, o mundo quase caiu sobre mim, quando publiquei o cordel “CÃO QUE TEM NUNCA QUER LARGAR O OSSO”, que se diz

Por favor, amada gente,

não me venha convencer

com palavras ou sem elas

que gente que tem poder,

não me venha com balelas,

(desculpe até se sou grosso)

Mas cachorro que o tem

Nunca quer largar o osso

(…)

Já vi muitos proclamarem,

Dizendo em alto e bom som:

ISSO PRA MIM NUNCA MAIS”

Dizem aumentando o tom,

Mas quando sozinho estão,

Vão com ele até o pescoço,

Provando que cão que tem

Nunca quer largar o osso.

(…)

Criou-se pelos bajuladores até uma restegue #somos todos cachorros. Acho isso uma grande cachorrada mesmo. Todo mundo quer mandar no seu pedaço, até os cachorros. E os gatos também. Aqui no condomínio onde moro, cada gato tem seu espaço, debaixo de um carro. Ali está seu escritório, seu ponto de poder, seu birô. O gato daqui de casa, o Músi, quando consegue escapar, não quer mais voltar para casa. Vou atrás dele e me surpreendo quando o vejo debaixo de um carro cujo dono, outro gato, se ausentou. Fica uma fera, porque perdeu a oportunidade de mandar, de reinar sobre algo. Sobe nos meus braços, dando-me dentadas e unhadas. É o poder que, mesmo momentaneamente, embriaga a todos.

No romance Dom Casmurro, uma das maiores críticas feitas pelo Bruxo do Come Velho é sobre o poder. O pai de Capitu esteve nele por curto período, era administrador interino. Quase se matou quando perdeu o cargo. Passada a dor maior, aquele tempo em que esteve no poder passou a ser “a hégira, donde ele contava para diante e para trás. --No tempo em que eu era administrador…”.

No romance O Pequeno Príncipe, temos o rei que, não tem regência sobre nada, mas possui sabedoria para reinar sobre tudo. Quando o pequenino lhe pede um pôr-do-sol, ele promete que terá o seu pôr-do-sol, mas somente quando o sol puder se pôr. Mas sabemos que nem todos aqueles que detêm o poder são sábios para reger, por isso ou usam de violência ou de velhaquice para ali se perpetuar.

Entretanto nem todo poder emana do ato de se dirigir um grupo. Ele pode muito bem estar apenas na ideia de mando, sobre um filho, esposa, marido etc. Imagino o que passava na cabeça de Paulo Honório, personagem do romance São Bernardo de Graciliano Ramos, quando subjugava seus empregados, sem subjugar sua esposa. Imagino o que lhe carcomia por dentro quando Madalena, com sua gentileza e bondade, tinha mais poder sobre aquelas pobres pessoas do que ele. Quem tem poder não quer ser temido, mas ser amado, mesmo que esse amor seja imposto. Imagino ainda sem atinar de verdade, o quanto sofreu aquele tirano quando viu a mulher morta, pois ela, mulher empoderada pelo saber, não se acanharia diante dos desmandos de seu algoz.

E para encerrar essa crônica, que já está muito empoderada…

Despeço-me por aqui,

Pois já tô tomando gosto,

Me apossando do fazer,

De querer tomar o posto

De diretor da poesia

Tornando o viver insosso,

É a sina do cão que tem

E não quer largar o osso.



quarta-feira, 24 de novembro de 2021

DIREITO AO DELÍRIO

 


(Eduardo Galeano)


"Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.

As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.

Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?

Que tal se delirarmos por um momentinho?

Ao fim do milênio vamos fixar os olhos mais para lá da infâmia para adivinhar outro mundo possível.

O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das paixões humanas.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pela televisão.

A televisão deixará de ser o membro mais importante da família.

As pessoas trabalharão para viver em lugar de viver para trabalhar.

Se incorporará aos Códigos Penais o delito de estupidez que cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os rapazes que se neguem a cumprir serviço militar, mas sim os que queiram cumprir.

Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.

Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.

Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.

O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza.

E a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se quebrada.

A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.

As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.

A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, voltarão a juntar-se bem de perto, costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.

A perfeição seguirá sendo o privilégio tedioso dos deuses, mas neste mundo, neste mundo avacalhado e maldito, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro."

RECADO AO SR. 903

 

Vizinho –

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclama contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explicito e, se não fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21,45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 horas às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando o número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhes desculpas – e prometo silêncio.

Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ” Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

(RUBEM BRAGA)

terça-feira, 9 de novembro de 2021

 

A VERDADEIRA MORADA

Por Alves Andrade


Na cidade, no conturbado mundo urbano, todos desejam uma casa no campo, onde possam compor alguns rocks rurais, onde possam descansar numa rede branca, tomar café com cuscuz de ralo ao leite de coco, e almoçar uma gorda galinha de capoeira. Vislumbra-se uma montanha por trás da qual se esconde um imenso mar azul, de águas cristalinas de preferência, onde se possam ver peixinhos a nadar em pequenos bandos. Respira-se o ar pesado da capital e imagina-se quão puro deve ser o ar do sertão, do litoral distante. Não precisar em uma mansão com dezoito banheiros, basta uma casa alpendrada, com fogão a lenha, e um quintal, onde pipilem os pequenos animais de pena. Uma cerca e a visão do mato, verde, ou do mar azul, longe do asfalto calorento. À tardinha, o anoitecer, o arrebol agressivo que não agride, apenas enfeita o cenário maravilhoso da natureza. Uma vida bucólica, um fugere urbem, paz e descanso.

No sertão, entre um arranhão e outro gerado por um espinho agressivo, ou por um canto de cerca, bruto, o sertanejo, de volta pra casa, deita-se na rede e olha o teto esfumaçado, mira os filhos barrigudos brincando no quintal com um calango, a esposa, estafada da lida diária, com a saia arregaçada, soprando o fogareiro, mostrando as coxas reluzentes de suor e gordura. No litoral distante, o praieiro e sua esposa, donos da barraca, olham em volta e só veem o mar, a areia, ouvem seu marulho . Cansados da jornada infinda que não acaba, desde muitas gerações. O enfadonho horizonte traz-lhes a visão do barquinho, que teima em não chegar. As poucas luzes se confundem com o parco cheiro do peixe, que chilreia no fogão, os meninos e as meninas brincam de pescador ou de atender aos clientes, que não chegam nunca. Esses dois mundos sonham com a cidade, com a vida urbana, cheia de oportunidades, com escolas de boa qualidade para os filhos. Em seus ouvidos, o barulho dos carros suplantam aquela quietude modorrenta daquela eterna visão, estática, como um quadro de pintura barata. Lembram imagens trazidas pela televisão, em que pessoas invadem as lojas, felizes a comprar. Suas casas sempre limpas, assoalho brilhando, os meninos estudando, sentados em grandes mesas. E o asfalto desempoeirado.

Assim é desde sempre. A humanidade sempre sonhando com outras paragens que não a sua. Sem perceber que a grande morada, a verdadeira paisagem está consigo, dentro de si. É para lá que ele precisa se mudar. É este seu verdadeiro lar, que Deus lhe deu, é preciso que desfrute dessa grande, imensa paisagem. Assim quando ele cansar de olhar a cidade ou o campo, em sua ilusão de desejo, e voltar-se para seu interior, verá quão belo é o mundo que lá existe e que precisa ser difundido, cuidado, emergido. Sua verdadeira morada, onde todos os seus sonhos serão realizados e todas as angústias dissipadas. A compreensão de que a simplicidade da vida, a verdadeira felicidade só depende dessa real visão.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

COLETÂNEA DE CRÔNICAS DE AIRTON MONTE, PUBLICADAS NO JORNAL O POVO



NAÇÃO DOS BIRITEIROS, 01/08/2012


Pode ser que muitos dos meus compatriotas ainda desconheçam que não é somente no futebol, na violência crescente das grandes e pequenas cidades, nos alarmantes índices de corrupção generalizada que o nosso intimorato Brasil desponte com inaudito brilhantismo em meio ao conturbado cenário mundial. No disputado ranking dos biriteiros de todo o universo conhecido, nós, impávidos filhos desta nação sem jaça, também não chegamos a fazer feio em matéria de encher a cara. Pelo que me foi dado saber de fontes as mais fidedignas, os brasileiros estão bebendo cada vez mais cerveja durante o passar dos últimos dez anos. Iniciando-se nas lides etílicas, pasmem vocês que ora me leem, a partir da precoce idade das quinze primaveras. Nem mesmo a minha tresloucada geração, nos seus áureos tempos, ousou chegar a tanto. Nessa década, o consumo de cerveja sofreu um considerável aumento de trinta por cento por cabeça, o que, pelo andar da carruagem, vai nos levar a alcançar, mais cedo ou mais tarde, o lugar mais alto do pódio entre os contumazes bebedores do “pão líquido”. Isso sem contar com os outros tipos de alcoólicas beberagens. Como se vê, estamos indo bem em nossa marcha para a glória.



Por enquanto, vamos nos segurando, com certa inegável galhardia, num invejável décimo-sexto lugar, mui honroso por sinal, entre os povos cervejeiros, ficando atrás apenas de gigantes da cervejagem como República Checa, Irlanda, Alemanha, Áustria, Austrália e outros candidatos fortíssimos à medalha de ouro nas olimpíadas biriteiras. Entanto, nem tudo está perdido, meus amigos. Resta-nos o honorável consolo de sermos, ainda, os eternos campeões mundiais no que diz respeito à ingestão da nossa popularíssima, tradicional cachacinha de todos os dias. É isso aí, moçada. Pra Frente, Brasil, Brasil. E haja aperitivo para matar a nossa sede insaciável. E tome cachaceiro vicejando por todos os cantos e rincões dessa festejada, festiva Taba de Tupã. Eu particularmente acredito e tenho plena convicção de que o nosso Ceará também dá a sua importante contribuição nesse interminável campeonato de bebedores, participando ativamente para que o Brasil haja alcançado tal digníssima posição no rol dos apreciadores daquela que foi chamada, nos seus primórdios, de bebida sagrada dos faraós. Que beleza. Que maravilha. Que coisa linda é o meu país. Enquanto pudermos nos embriagarmos à tripa forra, estará tudo bem como esteve dantes no etílico Quartel de Abrantes.



Claro que nada melhor para aliviar a barra e fazer esquecer as costumeiras desditas e agruras vividas na dureza do cotidiano citadino do que reunir-se com os amigos nos finais de semana, para jogar conversa fora e beber umas tantas umas e outras. Existe até quem garanta, não sei se em tom de blague ou expressando o que verdadeiramente pensa, que beber é bom, mas que beber todos os dias é bom demais. Eu também achava isso, comungava de tal ideia e seguia ao pé da letra este todo aforisma, sorvendo a minha cervejinha diária em quantidades industriais, prática que por muito pouco não acabou com o meu precioso fígado, levando-me desta para pior mais cedo do que eu desejava. Portanto, amigos meus, mirem-se no meu péssimo exemplo e vão mais devagar com o andor que o santo é frágil feito o barro. E não aconselho nem ao meu pior dissidente afetivo a se arriscar a ver de perto a antipática face da ossuda. Melhor beber com moderação, sem sobrecarregar o organismo com excessos do copo, porque o álcool é um inimigo poderoso, um veneno solerte, perigoso, traiçoeiro, useiro e vezeiro em passar a perna em quem dele faz uso abusivo, sem medir as futuras consequências. E por favor, não me lancem a alcunha de falso moralista, a cuspir no prato em que bebeu. Relato apenas uma experiência que vivi, mais nada. Quem quiser beber que beba até empapuçar os gorgomilhos.



Antigamente, no auge dos meus bons e saudosos tempos de boemia desregrada, quando eu varava noites seguidas pelos bares afora, costumava afirmar peremptoriamente que boêmio era boêmio e alcoólatra era alcoólatra, sem me dar conta de que a fronteira entre boêmios e alcoólatras era sutil e tênue como jamais supunha a minha vã filosofia de botequim. Treda ilusão, mais ledo engano. Assim descobri quase um muito tarde demais. Hoje, sei que os boêmios são, pela própria natureza, dotados de uma exacerbada tendência em tornarem-se escravos vitalícios do seu próprio prazer. E que seu desmesurado amor pelo copo por vezes é capaz de superar, de vencer o seu instinto de sobrevivência. Por isso, amigos meus, eu lhes peço encarecidamente que bebam com sapiente morigeração e amem mais as suas vidas do que o alcóolico produto. Bebam devagar para beber sempre, de modo duradouro, porque nenhum fígado é de ferro, é blindado. E assim, poderão beber durante a existência inteira, celebrando Baco saudáveis e felizes por anos a fio. E lembrem-se de que é inútil tentar acabar com a bebida existente no mundo, pois quanto mais a gente bebe, mais a turma dos produtores fabrica. Ah, luta inglória.


DOMÉSTICOS PERCALÇOS

08/08/2012


Tudo vai bem, tudo legal neste domingo providencial do comecinho de agosto. Pelo menos até as duas horas da tarde. De um dia que parece transcorrer pacificamente, apesar de uma ou outra surpresa um tanto quanto desagradável, porque seria até demais querer uma total tranquilidade o tempo todo. Isso só acontece em obras de pura ficção escritas por um autor entediado demais para criar um enredo com conflitos. Parto do princípio de que uma casa é verdadeiramente um simulacro do mundo lá fora, onde não é raro que as coisas de uso habitual de vez em quando entrem em pane, se quebrem ou os caseiros objetos findem lá por entrar em greve, gerando aporrinhações de duração longa ou passageira. É a descarga do banheiro que se recusa a trabalhar. É o ferrolho do portão da rua que se solta inesperadamente dos parafusos que o prendem. É uma lâmpada que se queima inesperadamente quando mais se precisa dela. É o botijão de gás que se esvazia sem dar aviso prévio, a borracha da máquina de lavar que amanhece furada, partida em dois pedaços feito uma cobra dividida ao meio por um facão afiado. As coisas quebram, terminam seu ciclo de vida igualzinho a todos nós e precisam ser substituídas, algumas com certa urgência, outras nem tanto.



Nessas horas em que campeiam essas domésticas preocupações, mais difícil do que manter-se calmo é encontrar um profissional em pleno domingo para salvar a nossa pátria, resolver a aflitiva situação. Bombeiros, eletricistas, encanadores, pedreiros, todos os quebradores de galhos sumiram de vista como por um passe de mágica, desapareceram na buraqueira como sombras fugidias e sem deixar vestígio. Por mais que se procure os já conhecidos por outras intervenções, todo esforço é vão, pois não estão em lugar nenhum e desligaram os telefones qual estivessem combinados numa geral insurreição. Não há como encontrá-los, nem por força e obra de um milagre. E assim, a sujeitos imprestáveis como eu, totalmente desprovidos de qualquer habilidade numa dessas mecânicas atividades, incapaz até de pendurar um quadro na parede sem derrubar a própria utilizando martelo e pregos, só resta esperar que o outro dia chegue para mandar providenciar os devidos e necessários reparos e consertos. Afora esses pequenos distúrbios, nada mais surge no céu do que os aviões de carreira, além das brancas nuvens polvilhando o azul solar da tarde acima de minha cabeça atarantada.



Sem nada o que fazer pra resolver tantas aporrinhações, tantos percalços domésticos, ligo a televisão e começo a me distrair vendo um documentário, longo demasiado para o meu gosto, sobre o tão falado e assaz comentado Caminho de São Thiago, pelo qual transitam em êxtase e em transe os verdadeiros e falsos peregrinos vindos de todas as partes do mundo, caminhando centenas de quilômetros à procura de um suposto e peripatético nirvana, em busca de supostos conhecimentos esotéricos, místicos e revelações espirituais de grande monta e significado ímpar. Enquanto marcham, incansáveis, rumo ao seu anímico destino, apoiados em rústicos cajados ou em sofisticadas bengalas, todos trazem estampada nos rostos uma expressão indefinível de quem procura o pote de ouro no fim do arco-íris. Têm no coração a esperançosa certeza de que o simples ato de fazer esta caminhada os purgará de todos os pecados passados, presentes, futuros. Como se o Caminho de São Thiago fosse assim uma espécie de lavanderia da alma, uma cornucópia de milagres infindos. Desse ponto de vista, o Caminho de São Thiago tem a mesma serventia mística das romarias brasileiras.



A meu ver, a única diferença é que por lá romeiro atende pelo aristocrático epíteto de peregrino. Cá por mim, não acredito no pensamento mágico de que andar até Juazeiro, Canindé ou qualquer outro santuário daqui e d’alhures consiga mudar magicamente a existência de um indivíduo que nem eu e vocês. Eu também não creio que mortificar o corpo com qualquer tipo de sacrifício físico venha nos causar uma mais que milagrosa evolução espiritual, nos transformando de demônios em anjos da noite para o dia. Ora pílulas, caminhar nada mais é do que uma condição natural dos bípedes, pensantes ou não. Jamais um passaporte infalível e com firma reconhecida nos cartórios sagrados para alcançar a paz e a felicidade espirituais. Se o fosse, o homem feliz não seria o homem sem camisa. Seria o carteiro. E o esmoler pediria esmola dando gargalhadas de porta em porta sob o sol quente. Entanto, o Caminho de São Thiago virou moda, point místico, uma estrada mágica, cujo garoto-propaganda mais conhecido chama-se Paulo Coelho, que descobriu o que para ele foi o verdadeiro e legítimo caminho das pedras.


PENSAMENTOS À DERIVA

16/07/2012


Hoje é domingo, dia de feriado universal. De trabalhar vontade nenhuma eu tenho, para ser sincero. Mas de gozar a folga tradicional em toda a sua plenitude. Passar o dia de pernas pro ar, sem fazer absolutamente nada de prático como a maioria das pessoas. Vejo os meus vizinhos, que mal conheço, tirando os seus carros da garagem com um ar tão feliz estampado nos rostos que chega a me dar uma tímida inveja desses alegres felizardos ansiosos por uma gandaia. Meus desdobramentos celulares já se mandaram, cedinho da matina, doidos para começar o mais breve possível a sua festança dominical. E, em verdade, estão cobertos de razão. Exibindo uma generosidade que não lhes é peculiar, até chegaram a me fazer um discreto e pouco insistente convite para acompanhá-los seja lá para onde forem. Naturalmente recusei a filial oferta de deslocar-me rumo à longínqua Praia do Futuro, porque só em pensar nos paulificantes engarrafamentos que certamente haveremos de enfrentar, preferi restar no confortável sossego do lar, acompanhado dos meus discos, meus livros e a indispensável televisão a cabo, um dos meus poucos luxos de agora.



Além do mais, por serem as ideias de diversão da garotada bastante diferentes das minhas, poderia atrapalhar, com a minha falta de costume, como um trambolho paternal, o sadio divertimento de meus amados pimpolhos. Não é que eu pense que lugar de velho é mesmo em casa ou junto com seus iguais, seus pareceiros de cãs, em torno de uma mesa dos botecos preferidos, conversando sobre nossos semelhantes interesses em comum. Também não posso me arriscar a deixar a casa sozinha, provisoriamente desabitada, por medo de que, ao regressar das peripécias, seja vítima da desagradável surpresa de ver o meu suburbano tugúrio invadido e saqueado pelos solertes amigos do alheio, que pululam livremente em todos os rincões da cidade. Não se trata de exagero paranoico de minha parte, basta dar uma passadinha de olhos pelos jornais do dia, para ver se tenho ou não motivos suficientes para assoberbar-me de cuidados. Principalmente agora, nesse momento crítico, de campanhas eleitorais desencadeadas pelos candidatos ao trono de prefeito, que nos deixam mais desprotegidos do que já o somos, mesmo com os homens da lei trabalhando a todo vapor. Certo que mantenho, soltos no quintal, meus diligentes sentinelas caninos, mas sabe-se lá de que artimanhas são capazes os ladrões profissionais.



Tirando esses pequenos problemas concernentes ao quesito segurança, é-me impossível fugir, apesar de ser domingo, da labuta obrigatória de tomar do papel e da caneta e escrever, por cima de pau e pedra, a compulsória croniqueta do dia, antes do início da pelada televisiva dominical, quando os insossos prélios do triste pebol brasileiro viram estrelas da telinha em quase todos os canais. E haja festival de chutões, de passes errados, de quebração de bola pelos gramados da nação. Sem falar nas intermináveis e repetidas mesas-redondas comandadas pelos contumazes entortadores do idioma pátrio, como Sérgio Porto chamava os comentaristas esportivos. Tem nada, não. Falta pouco para o bemvindo mês de setembro dar as caras, anunciando o tempo de tirar as minhas férias merecidas do jornal e meu exaurido bestunto finalmente entrará no ansiado descanso anual. Enquanto isso não acontece, amigos, tenho de continuar lavorando, futucando cotidianamente o juízo em busca de assunto para traduzir em palavras feito um padeiro preparando o pão do espírito. Desculpem-me, se acaso puderem, se estou sendo um tanto quanto repetitivo ao falar dos domingos nestas mal traçadas. Porém, cada um escreve do jeito que pode e não como desejaria.



Que bom seria, caso houvesse em mim a capacidade de escrevinhar uma obra prima a cada jornada. Entanto, estou muito aquém de tal magnífica condição de ser um escriba genial. Uma de minhas raras qualidades é reconhecer as minhas literárias limitações neste mister que escolhi como ofício ou, quem sabe, haja sido escolhido por ele por razões que me são ignoradas. Deitado a meus pés, meu cachorro me olha, quando em vez, cheio de um carinho e de uma afetividade quase humanos. Alguns podem não acreditar, mas os animais que a gente cria, mostram-se dotados de nos transmitir os sentimentos que lhes povoam a alma, se é que os bichos possuem alma igual a nós. Pelo menos eu creio que sim e deve haver, disso nem cogito em duvidar, um Deus dos cachorros, e que, talvez, seja o mesmo em que nós acreditamos. Penso que todos os animais, sem exceção, vão direto para o céu, porque o inferno não foi criado por eles nem para eles. Estarei eu a divagar, perdido entre tolos e ingênuos pensares? E se realmente estiver equivocado, que mal me podem causar tais distraídas divagações, essas elocubrações sem qualquer utilidade pragmática. Tudo o que se pensa tem alguma serventia. Preencher o vazio e evitar o tédio e me fazer praticar o saudável exercício de rir de mim mesmo.



CORAÇÃO FORASTEIRO

27/12/2011


hega. Basta de falar e escrever sobre natais e viradas do ano. Pelo menos, no que me diz respeito, tal assunto já me encheu as medidas até a tampa. Não tenho mais saco e minha paciência não mais suporta abordar esses temas. Para mim, de há muito se faz chegada a hora de partir pra outra, de navegar outros mares de ideias, embora a maciça e massiva propaganda dessas datas nos seja repetidamente bombardeada por tudo quanto é mídia. A ordem do dia é comprar, comprar, consumir, consumir sem cessar, gastando o que não tempos para adquirir o que não precisamos. Afinal, o décimo- terceiro está aí pra isso mesmo. E todos estão mergulhando de ponta-cabeça num festival de gastança despropositada, se endividando às tontas, sem sequer pensar, por um só momento, de que o preço a pagar custar-lhes-á muito caro e, na maioria das vezes, estará furos acima de suas posses. E o orçamento doméstico que se dane e vá para as cucuias.



O que importa nessa época de falsa fartura e concreto desperdício é entrar na onda de tentação dos shoppings e deles sair com os braços abarrotados de sacolas, pacotes, embrulhos com um de felicidade bovina largamente estampado no rosto, arrastando pela mão os insaciáveis pimpolhos, que sempre querem mais do que lhes é ofertado pelos generosos papais e mamães. Estamos vivendo em plena estação na qual o amor é obrigatoriamente medido pela quantidade de presentes que ofertamos, mais nada. Aqueles infelizes que não podem consumir, dar e ganhar mimos se situam à margem da vida e só lhes resta estender a mão aos passantes, nas esquinas e nos sinais de trânsito, esmolando as parcas moedas que lhes são atiradas como os restos de um banquete. Para esses deserdados da sociedade só resta duas opções: virarem esmoleres ou partirem para o assalto puro e simples. Exagerando um pouco na dose, nos vemos cercados, por todos os lados, de pedintes e de bandidos.



Eu, que não participo desse desenfreado consumismo do natal e fim de ano, me ponho voluntariamente à beira desse rodamoinho, permanecendo em meu posto costumeiro de observador. Não fui feito para ser mais um membro do imenso rebanho de estroinas sazonais e compulsórios que se espalham desordenadamente, invadindo a cidade para onde quer que se olhe. Porém, além de recusar-me firmemente a dançar conforme a dança, nada tenho a ver com toda essa loucura estabelecida à minha volta. E, afinal, quem sou eu para me pensar dotado do direito de julgar o comportamento alheio? Cada um faz o que bem quer e gosta, porque não sou eu quem vai pagar o custo das atitudes dos meus semelhantes. É assim que a banda toca e quem desejar pode naturalmente fazer parte do cordão dos seus seguidores, como acontece no ancestral conto de fadas do Flautista de Hamelim. Acho que poucos leram a história do hipnótico personagem pelo qual me fascinei durante as leituras da infância.



Não fui a nenhuma festinha de “amigo secreto”, porque as acho de uma chatice sem tamanho. Nem mesmo às organizadas por amigos e familiares, embora sentindo um discreto receio de que alguns se magoassem com a minha habitual ausência. Temores infundados, pois os que gostam de mim já estão acostumados com meu papel de ermitão que desempenho invariavelmente nessas ocasiões. Se não me sinto à vontade nesses congraçamentos, por qual razão iria estragar a alegria dos outros? Ah, tomara que esses dias passem rápido e logo comece o próximo janeiro, trazendo-me o desconhecido envolto em seus cueiros. Estou realmente cansado, aborrecido, aporrinhado com o furdunço que me rodeia. Preso às circunstâncias e ao calendário, só me resta esperar, cheio de ânsia, que tudo passe e tudo passará inevitavelmente, bem sei, embora seja demorada a passagem. Entanto, como o bom cabrito não berra, vou ficando na minha, nem falante nem mudo. Apenas com esse sentimento de estranheza grudado no coração de forasteiro.


ELEGIA DO SÁBADO

04/01/2003


Em sendo sábado, é dia de vadiar noturnamente feito um velho gato de beira de telhado, desses que são íntimos da noite. Aliás, sábado tornou-se o único dia da semana em que posso me dar ao luxo de exercer a boêmia em tempo integral. Sem horários fixos, sem pressa nem compromissos urgentes com nada e com ninguém. Romanticamente, chego a definir meu estado de espírito sabatino como um homem que arrebentou as grades de uma prisão após longo e tenebroso cativeiro.

Entanto, há que se ressalvar, nada de sentir-me um agoniado fugitivo, desesperadamente à procura de um esconderijo ou de um abrigo dentro da noite. Simplesmente deixo-me levar pelos instintos poéticos de minha alma enfim liberta, sem essa de bancar o predador, a sair por aí caçando companhia feito um doido como se o mundo fosse acabar amanhã, antes da madrugada chegar.

Prefiro degustar os prazeres que a noite me dá inesperadamente de forma generosa e imprevisível. Poetas não vivem sem o maravilhoso risco das descobertas. Aos sábados, estou mais pra carta sem destinatário do que pra mensagem de náufrago. Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro, se houver motivo é mais um poema que eu faço. Aos sábados, de noite, a cidade se torna misteriosamente minha.

Já não careço de portos seguros. Só me interessa navegar, o que não me impede de olhar em torno e ver o que há. Principalmente a madrugada ainda bonita de Iracema estender-se preguiçosamente lúbrica sobre os horizontes da cidade. Sábado de noite não estou a fim de consolos, confortos, um ombro amigo para chorar as minhas mágoas. Meu negócio é cair numa merecida gandaia até pegar o sol com a mão e depois voltar pra casa cada vez mais apaixonado pela vida.







A HORA DA VERDADE

02/01/2003


Pelo amor de Deus, amigos meus, prestem bastante atenção no que ora vos direi, pois se trata de assunto de suma gravidade e crucial relevância. Todo cuidado do mundo ainda será pouco, já que está em jogo um dos medos ancestrais do homem. Sim, o velho pavor de ser traído pela mulher amada. Fiquem sabendo, pois li numa dessas revistas semanais, que o adultério está se tornando, de modo cada vez mais preocupante, uma prazerosa rotina no cotidiano do imbatível mulheril.

E esta tal aflitiva constatação me foi cientificamente confirmada pelo eminente psicólogo grego Jode N. Simera, num encontro na casa do amigo Neno Cavalcante. E dentre aquelas que mais gostam de praticar o excitante esporte de cornear os indefesos parceiros estão as mulheres entre os 30 e 40 anos. Como se vê, as adoráveis balzaqueanas sempre a quebrar tabus, deliciosamente revolucionárias que são.

As mulheres andam pulando a cerca à vontade, sem a menor dor na consciência, sem o mais anêmico remorso. Na implacável opinião do Dr. Simera, as mulheres estão assumindo, diante de sua infidelidade uma desfaçatez tipicamente masculina. Querem mesmo é rosetar, e não mais traem somente por vingança, por necessidade, por uma louca paixão. E sim, por puro prazer, igualzinho aos homens, na base do ''lavou, tá limpo''.

Quem ficou coberto de trêmula apreensão foi meu compadre Chico Newton, o paxá da Gentilândia. Também não é para menos, pela simples razão de que quem tem seis esposas como ele, tem seis chances de ser passado pra trás. As mulheres parecem estar levando a sério demais o seu papel de Eva. Só que uma Eva meio psicanalisada, que perdeu a culpa do chamado pecado original e que não tem medo nem de cobra.



HERANÇA PATERNA

29/03/2003


Pelo amor de Deus, amigos meus, prestem bastante atenção no que ora vos direi, pois se trata de assunto de suma gravidade e crucial relevância. Todo cuidado do mundo ainda será pouco, já que está em jogo um dos medos ancestrais do homem. Sim, o velho pavor de ser traído pela mulher amada. Fiquem sabendo, pois li numa dessas revistas semanais, que o adultério está se tornando, de modo cada vez mais preocupante, uma prazerosa rotina no cotidiano do imbatível mulheril.

E esta tal aflitiva constatação me foi cientificamente confirmada pelo eminente psicólogo grego Jode N. Simera, num encontro na casa do amigo Neno Cavalcante. E dentre aquelas que mais gostam de praticar o excitante esporte de cornear os indefesos parceiros estão as mulheres entre os 30 e 40 anos. Como se vê, as adoráveis balzaqueanas sempre a quebrar tabus, deliciosamente revolucionárias que são.

As mulheres andam pulando a cerca à vontade, sem a menor dor na consciência, sem o mais anêmico remorso. Na implacável opinião do Dr. Simera, as mulheres estão assumindo, diante de sua infidelidade uma desfaçatez tipicamente masculina. Querem mesmo é rosetar, e não mais traem somente por vingança, por necessidade, por uma louca paixão. E sim, por puro prazer, igualzinho aos homens, na base do ''lavou, tá limpo''.

Quem ficou coberto de trêmula apreensão foi meu compadre Chico Newton, o paxá da Gentilândia. Também não é para menos, pela simples razão de que quem tem seis esposas como ele, tem seis chances de ser passado pra trás. As mulheres parecem estar levando a sério demais o seu papel de Eva. Só que uma Eva meio psicanalisada, que perdeu a culpa do chamado pecado original e que não tem medo nem de cobra.


COISAS DO FUTEBOL

04/02/2003


Sim, devo confessar, depois de longas meditações, que já não resta em mim a menor dúvida. O que o fatídico dia 16 de julho de 1950 representou para a geração de meu pai, o terrível 5 de julho de 1982 significou para a minha. A mesma desesperada tristeza da morte do sonho, o sonho ingênuo e belo de ver a ''Pátria de Chuteiras'' ganhar a copa do mundo, o Oscar do futebol.

Até hoje, o sentimental autor dos meus dias enche os olhos d'água quando lembra a tragédia do Maracanã. Eu, certamente, falarei a meus netos da catástrofe de Sarriá, Barcelona, Espanha. Com a Itália no lugar do Uruguai e Paolo Rossi desempenhando o papel de carrasco que foi de Gighia. Lembro que chorei, ao ver o Brasil desclassificado, feito menino a quem roubaram a primeira bola de couro. Dava gosto assistir àquela seleção do Telê jogar.

Era pura arte, alegria. O escrete de 82 tinha alma de Garrincha e a inteligência do maestro Paulo Roberto Falcão. Ainda sei de cor a escalação da maravilhosa onzena canarinha: Valdir Perez, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior seguravam as pontas lá atrás. No meio do campo o quadrado mágico Toninho Cerezzo, Falcão, Zico e Sócrates esbanjavam categoria e classe. Na frente, o artilheiro Serginho, que, diga-se de passagem, nunca vi perder tanto gol feito.

Na ponta esquerda, a habilidade e o talento de Éder, que botava a bola onde queria, como se tivesse uma fita métrica no olhar. Um time que tinha tudo pra ser campeão acabou a copa num melancólico quinto lugar. Perdemos de três a dois dos italianos como poderíamos ter enfiado uns cinco a zero na esquadra ''Azurra''. Justamente por ser uma arte e não uma ciência exata, o futebol é a surpresa, o susto, o inusitado, o Sobrenatural de Almeida, o Acaso da Silva, o Imponderável de Sousa.



PLATÃO

27/07/2012

Platão foi, é e continuará sendo, quer queiram, quer não, um dos nomes fundamentais da história da filosofia ocidental, apesar de haver nascido em priscas eras, no ano da graça de 429 antes da advinda do Cristo. E a sua doutrina filosófica se caracteriza principalmente pela famosa e popular teoria das ideias e por sua preocupação constante com os temas relacionados ao campo da ética e toda e qualquer meditação filosófica se destina, segundo ele, essencialmente ao conhecimento do Bem. Conhecimento este que Platão supunha mais do que suficientemente capaz para a implantação definitiva da Justiça entre os Estados e os Homens. O comportamento humano, de acordo com o velho e bom pensador grego, deriva de três fontes básicas, principais: o desejo, a emoção e o sentimento. Essas seriam as nossas forças motrizes desde que nascemos. O desejo reside no centro das nossas virilhas, explosivo reservatório de nossa energia sexual. O coração, por sua vez, seria o centro da emoção. Já o conhecimento habitaria a cabeça, a mente e poderia, se devidamente cultivado, se transformar no mestre-piloto de nossa conturbada alma. Será que fui claro ou compliquei o assunto ora em pauta?



Há determinados homens que são a personificação do desejo, cujas vidas estão completamente absorvidas pela ganância pelos bens materiais. Outros existem dotados de um corajoso espírito guerreiro, que não se importam tanto com os objetivos de suas lutas, sejam eles bons ou maus, mas pela luta como um fim em si mesma e são obcecados pela conquista da vitória. Entanto, alguns poucos, e muitos poucos, que não anseiam pela posse infinita, interminável de riquezas nem pela glória efêmera de serem considerados vencedores das olimpíadas da vida mundana. Estes dedicam toda a sua existência a obter conhecimento sobre si mesmos, sobre a sociedade em que vivem, sobre o mundo que os cerca, mergulhadores obstinados na meditação e nos prazeres do pensar, buscando a sabedoria. Platão também costumava afirmar, séculos antes que o Doutor Sigmund Freud inventasse a psicanálise, que determinados prazeres e instintos são considerados ilegais pelo corpo social em que estão inseridos. Todo homem parece possuí-los, mas certas pessoas conseguem, empregando desmesurado esforço mental e físico, submetê-los ao poder da razão, suprimindo-os quase inteiramente do campo consciente. Porém, o filósofo jamais esquece de nos advertir, mandando um sábio aviso aos navegantes: “Em todos nós existe latente essa natureza de animal selvagem, que espreita durante o sono”. Claro está para mim que Freud deve ter sido um atento leitor de Platão.



Como se vê, nem se pode negar, por mais má vontade que se tenha, que o nosso Platão bem sabia das coisas e conhecia as profundezas da alma humana como poucos conseguiram conhecer. E não estou eu a falar nenhuma novidade. Outrossim, cá me pergunto, espantado comigo mesmo, porque cargas d’água baixou-me, de repente, este impulso aparentemente inexplicável de falar em Platão e no que ele pensava, em plena noite de uma quinta-feira chocha e quente, já quase madrugadinha. Sei que sou dado a cultivar vadios pensamentos, mas nunca pensei que chegasse a tanto. É verdade. A mente humana, tal e qual a Seleção Brasileira, não passa de uma manjada caixinha de surpresas. Algumas agradáveis, outras igualmente desagradáveis. Claro que lembrar e pensar nos escritos imorredouros de Platão para mim é sempre um motivo mais que justo de alegria e satisfação, principalmente por constatar que a minha frágil, cambaleante memória ainda não entrou em processo senil de degradação neuronal. E que meus sambados neurônios permanecem fabricando a sua cota habitual de serotonina e outros demais neurotransmissores. Afinal, passei quase toda minha vida de olho pregado nos livros e tal exercício cerebral não deve ter sido praticado em vão, assim imagino.



Ah, somente agora veio-me à lembrança que um dia desses um amigo andou me confessando, pedindo-me o mais completo e absoluto dos sigilos, que estava platonicamente apaixonado por uma mulher que lhe era terminantemente proibida, interditada, devido a razões de ordem familiar. E ele, além de pelar-se de medo do escândalo que tal amor poderia provocar, ainda havia um outro intransponível empecilho aos seus desejos: era um infeliz sabedor de que seu imenso amor de agora jamais haveria de ser correspondido, pelo simples fato da feminina criatura nunca lhe haver dado a menor pelota, nem mesmo quando era solteira, livre, desimpedida. Quanto mais agora, bem casada, com filhos e supostamente caída de amores pelo sortudo maridão. Tentei consolá-lo o mais que pude dizendo-lhe, à guisa de afetivo conforto, que amor platônico é assim mesmo, feito para ser impossível de realizá-lo no plano físico e vivido à distância em toda a sua incomensurável imensidade. Sim, causa sofrimento tantálico como todo grande amor, porém possui um belo e maravilhoso mistério. Resta guardado dentro de nós para o resto de nossas vidas e muitas vezes, dura para muito além da eternidade.



A TEORIA DO NÓ

01/05/2005

Quanto mais se precisa dele, mais passa demasiado rápido esse trem-bala que se chama tempo. Já são quase cinco da tarde deste domingo infernalmente quente e ainda não consegui escrever sequer uma mísera linha da maldita crônica de hoje. Tem dias que é assim mesmo, as palavras se engancham no cipoal fechado da mente como caranguejos escondidos nos esconsos de um mangue. E o pobre do cronista fica coçando a cabeça ou outra parte menos nobre de sua anatomia sem saber direito o que fazer para cumprir a bom termo o seu ofício.

Entanto, as palavras estão lá, eu sei, ao alcance das mãos, dos dedos inertes sobre o teclado do computador como se eu tentasse em vão excitar uma mulher frígida. Por vezes, é assim mesmo, as palavras estão no limiar da sílaba e ao mesmo tempo imensamente inacessíveis. Jorge Amado tinha sua teoria do nó: quando o texto empaca num nó cego, o único jeito é esperar que o nó se desfaça sozinho e dar tempo ao tempo, fazer de conta que tudo vai acontecer como sempre aconteceu, na hora certa, no instante exato e jamais desesperar-se com o branco.

Eu poderia, por exemplo, falar do amor, da mulher que amo, dos filhos, dos amigos, dessa tarde de domingo que cai sobre mim feito uma bênção, falar de vinhos, do gosto do vinho em minha boca sequiosa de sabores, do pernil que comi no almoço, da noite de sábado quando uma estrela cadente cruzou os céus parquelandinos ou não passou de ilusão de meus olhos míopes? Eu poderia falar sobre o que espero da vida neste mês de maio que me traz meus 56 anos e que não sei se será um traiçoeiro presente de grego.

Eu poderia falar, inclusive, do lampejar de ódio que percebi nos olhos daquele menino esfarrapado que me pediu uns trocados no sinal fechado e eu fiz que não vi. Ou do bêbedo esparramado no meio da calçada que nem um trapo sujo, jogado fora. Ou do casal de jovens namorados que brigava em voz alta na mesa do bar como se estivessem sozinhos no mundo. Poderia falar de mim, dos meus medos do futuro, dos poucos, mas grandiosos sonhos que me restam. Porém, não quero falar mais nada, escrever mais nada, só aproveitar a tarde em toda a sua bela plenitude.



O ENGARRAFADO

26/12/2011

Seis horas de um fim de tarde agitado de sexta-feira. Eu, sem muita surpresa, me vejo preso, encarcerado em meio a um engarrafamento quilométrico, descomunal numas das principais avenidas da cidade. Estou completamente, indefesamente cercado, ilhado por um mar de automóveis, motocicletas, ônibus, caminhões. Os motoristas mais nervosos, impacientes, irritadiços fazem soar suas buzinas sem parar, causando uma zoada infernal, insuportável, como se tal sandice servisse para alguma coisa a não ser aumentar o pandemônio em volta. Encontro-me perdido, enjaulado em pleno efervescer do caos que ora domina o trânsito citadino. Não há para onde fugir nem como escapar da armadilha em que me meti. O sinal à frente passa do verde ao vermelho numa lentidão agoniada, desesperante, o que nos transforma a todos em bombas ambulantes prestes a explodir a qualquer instante. Aqui e ali estouram discussões e sou tomado por uma apreensão de que, súbito, aconteça uma briga braba entre os que pilotam os semoventes.

Embora tente me manter calmo, mesmo enfiado na confusão caoticamente instalada, sinto que pouco a pouco uma leve irritação começa a me acometer devido ao cansaço da longa espera. Olho o relógio. Quase uma hora já se passou e o carro se move a passos de tartaruga como se estivesse atolado na lama. E eu, que tinha a ilusão de chegar mais cedo em casa, logo abandono esse ilusório desejo pela concreta impossibilidade de realizá-lo. Quanto mais olho pelas janelas, mais parece aumentar o número de veículos como se brotassem do chão a cada minuto. Pra que tanto carro, meu Deus, pra que tanto carro? Eu me pergunto, ansioso, mergulhado no centro da enorme balbúrdia. Dentro do carro parado ao lado do meu, um casal discute acaloradamente, posso perceber. Apesar dos vidros fechados, estamos tão próximos que posso ouvir os gritos raivosos do homem, enquanto a mulher, por sua vez, berra histericamente ao celular.

 

Do meu lado esquerdo, um jovem permanece estranhamente calmo, indiferente ao inferno que nos cerca, batucando no volante, acompanhando a música que escuta em seus fones de ouvido. Posta à minha frente, uma caminhonete, dessas chamadas utilitárias, carrega na carroceria dois homens vestidos com desbotados macacões azuis segurando uma longa e larga lâmina de vidro perigosamente, pois a frágil mercadoria pode espatifar-se no caso de uma batida, espalhando cortantes estilhaços em todas as direções, inclusive na minha. Atrás de mim, quase colado ao meu para-choque traseiro, o vulto ameaçador de um ônibus lotado, pilotado por um cinesíforo demasiado impaciente. É, torno a pensar comigo mesmo, a coisa está preta e o que é pior, não tem hora pra acabar. O jeito é me conformar com a enlouquecedora situação até quando Deus quiser. Tento relaxar, reduzir a tensão que em mim vai se acumulando, cerrando os olhos e pensando no merecido sossego que me espera quando finalmente chegar em casa.

 

Todavia, me convenço de que o almejado e feliz querer de regressar ao sagrado recesso do lar vai se tonando uma tarefa difícil de ser alcançada, conseguida. Sem querer, entro num estado de hebetude, as pernas entorpecidas, o coração acelerando seu ritmo com o caminhar vagaroso do trânsito e do tempo nesse começo de noite infausto e enervante. De repente, ali imóvel, estático, parado perto da coxia, me bate um medo, aliás, muito natural, de ser vítima fácil de um assalto. O mais disfarçadamente possível, escondo a carteira debaixo do banco por via das dúvidas. Os indefectíveis flanelinhas surgem em enxame de todos os lados, munidos de suas garrafas de água suja e seus escovões imundos, querendo me impor um serviço que não pedi. Despacho um por um, recusando seus préstimos com um sorriso gentil, sei lá o que são capazes de fazer. Finalmente, o maldito engarrafamento se desmancha como um rebanho em fuga e posso seguir o meu caminho. Entro em casa como se entrasse no paraíso. Minha mulher me abraça e me beija. Felicidade tamanha duvido que haja.


"Olho o relógio. Quase uma hora já se passou e o carro se move a passos de tartaruga como se estivesse na lama"


Inventor de delicadezas

11/09/2012


Menino crescido na Gentilândia das décadas de 1950 e 1960, Airton Monte foi, antes de se formar psiquiatra e escritor, talentoso jogador de futebol, herança do pai profissional, e coroinha zeloso - o que chegou a nutrir na mãe a esperança do filho seguir carreira eclesiástica.


Da primeira vocação, restou a paixão pelo esporte, particularmente pelo Tricolor do Pici. Um misticismo profundamente humano permaneceu da segunda, que o fazia se referir a São Francisco de Assis como “meu Chiquinho”. Ateu desde os tempos da juventude, quando ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e no movimento comunista, Airton chegou a contar em entrevista sobre a dor de abandonar a fé cristã.

Encontrou em São Francisco de Assis o homem perfeito para mediar a relação com o “homem lá de cima”. “Ele achava que São Francisco era o maior cristão que havia existido, o exemplo mesmo do comunista”, contou sua filha Bárbara, 35.

Em casos mais graves, a exemplo de uma cirurgia dentária (tinha fobia de dentista), recorria a intercessão de Sônia, sua esposa. Nas últimas semanas, inclusive, quando o câncer no fígado diagnosticado em novembro de 2009 recrudesceu, orava diariamente, como ele mesmo confessou à filha. “Ele era um ateu fajuto”, constatou Bárbara. No domingo, por sinal, o amigo e livreiro Sérgio Braga foi à missa em Canindé em intenção do companheiro de boemia. Semana passada já havia trazido de lá dois escapulários para ele.

A devoção pelo santo representava a opção feita por uma vida demasiadamente humana de Airton, engajada nas lutas políticas do País, inspirada pelas mesas de bar de Fortaleza, envolvida no trabalho psiquiátrico com doentes mentais no Hospital Mira y Lopes. Deixou amigos ao montes, como o escritor Carlos Augusto Viana e o artista plástico Audifax Rios.

Airton Monte - que estreou na literatura com os contos de O Grande Pânico (1979), mas se notabilizou pela crônica, gênero cotidiano, corriqueiro, que exerceu diariamente neste mesmo jornal desde a década de 1990 - foi antes de tudo um profano.

Talvez por isso mesmo tenha recebido apenas oito votos - contra 26 do advogado Ernando Uchôa Lima - para a cadeira de número 14 da Academia Cearense de Letras, vaga com a morte de Barros Pinho. A eleição, realizada coincidentemente ontem, garantiu ironicamente uma homenagem às avessas. “Eu já dei os pêsames à família, estou dando à literatura cearense e também à Academia”, declarou sobre o fato Pedro Henrique Saraiva Leão, presidente da ACL.

Devido a complicações do quadro clínico, Airton não se alimentava mais, estava prostrado numa cama e há dois dias praticamente inconsciente. “O quadro foi de uma malignidade impressionante, mas teve um aspecto muito bom, que ficou exatamente de acordo com a bondade de Airton Monte. É que ele não sofreu”, garantiu o acadêmico, amigo e médico José Telles.

Airton morreu aos 63 anos, em casa, às 20 horas. Deixa a esposa Sônia e os filhos Bárbara e Pablo.



Perfil
Natural de Fortaleza, onde nasceu em 1949, Airton Monte era médico psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará em 1976. Escritor e jornalista, escrevia crônicas diárias para o caderno Vida & Arte, do O POVO; e participou de várias antologias de poetas e cronistas cearenses. Publicou seis livros. Entre eles, Memória de Botequim e Moça com Flor a Boca, que foi indicado para o vestibular da UFC.



Repercussão



Acho que ele não morreu de jeito nenhum. O problema nesse momento é a saudade, a gente vai sempre ficar com um gosto de saudade. Esse é o dano.

Demitri Túlio, jornalista e amigo


Airton escreveu com a alma na ponta dos dedos. E porque fez do afeto arma poderosa contra o esquecimento do que é demasiado humano, não será esquecido.
Fátima Mesquita, secretária de cultura do Município


Airton Monte era um cara muito alegre, muito criativo e gostava muito do improviso. Sempre com um conhecimento da língua bem apurado. Mas enquanto figura humana ele também vai deixar muita saudade.
Miguel Macêdo, jornalista e professor, ex-editor do caderno Vida & Arte



Airton Monte era um dos grandes cronistas do Ceará. Nós tivemos o Caio Cid, depois o Milton Dias e ele foi o terceiro e último grande cronista do estado do Ceará. Eu já dei os pêsames à família, estou dando à literatura cearense
Pedro Henrique Saraiva Leão, médico e presidente da Academia Cearense de Letras
Vai ser uma lacuna. A gente só tem mesmo a lamentar. E ele se foi tão novo, teria muito ainda a compartilhar
Vânia Dummar, jornalista e integrante do conselho editorial do O POVO


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