NAÇÃO
DOS BIRITEIROS, 01/08/2012
Pode
ser que muitos dos meus compatriotas ainda desconheçam que não é
somente no futebol, na violência crescente das grandes e pequenas
cidades, nos alarmantes índices de corrupção generalizada que o
nosso intimorato Brasil desponte com inaudito brilhantismo em meio ao
conturbado cenário mundial. No disputado ranking dos biriteiros de
todo o universo conhecido, nós, impávidos filhos desta nação sem
jaça, também não chegamos a fazer feio em matéria de encher a
cara. Pelo que me foi dado saber de fontes as mais fidedignas, os
brasileiros estão bebendo cada vez mais cerveja durante o passar dos
últimos dez anos. Iniciando-se nas lides etílicas, pasmem vocês
que ora me leem, a partir da precoce idade das quinze primaveras. Nem
mesmo a minha tresloucada geração, nos seus áureos tempos, ousou
chegar a tanto. Nessa década, o consumo de cerveja sofreu um
considerável aumento de trinta por cento por cabeça, o que, pelo
andar da carruagem, vai nos levar a alcançar, mais cedo ou mais
tarde, o lugar mais alto do pódio entre os contumazes bebedores do
“pão líquido”. Isso sem contar com os outros tipos de
alcoólicas beberagens. Como se vê, estamos indo bem em nossa marcha
para a glória.
Por
enquanto, vamos nos segurando, com certa inegável galhardia, num
invejável décimo-sexto lugar, mui honroso por sinal, entre os povos
cervejeiros, ficando atrás apenas de gigantes da cervejagem como
República Checa, Irlanda, Alemanha, Áustria, Austrália e outros
candidatos fortíssimos à medalha de ouro nas olimpíadas
biriteiras. Entanto, nem tudo está perdido, meus amigos. Resta-nos o
honorável consolo de sermos, ainda, os eternos campeões mundiais no
que diz respeito à ingestão da nossa popularíssima, tradicional
cachacinha de todos os dias. É isso aí, moçada. Pra Frente,
Brasil, Brasil. E haja aperitivo para matar a nossa sede insaciável.
E tome cachaceiro vicejando por todos os cantos e rincões dessa
festejada, festiva Taba de Tupã. Eu particularmente acredito e tenho
plena convicção de que o nosso Ceará também dá a sua importante
contribuição nesse interminável campeonato de bebedores,
participando ativamente para que o Brasil haja alcançado tal
digníssima posição no rol dos apreciadores daquela que foi
chamada, nos seus primórdios, de bebida sagrada dos faraós. Que
beleza. Que maravilha. Que coisa linda é o meu país. Enquanto
pudermos nos embriagarmos à tripa forra, estará tudo bem como
esteve dantes no etílico Quartel de Abrantes.
Claro
que nada melhor para aliviar a barra e fazer esquecer as costumeiras
desditas e agruras vividas na dureza do cotidiano citadino do que
reunir-se com os amigos nos finais de semana, para jogar conversa
fora e beber umas tantas umas e outras. Existe até quem garanta, não
sei se em tom de blague ou expressando o que verdadeiramente pensa,
que beber é bom, mas que beber todos os dias é bom demais. Eu
também achava isso, comungava de tal ideia e seguia ao pé da letra
este todo aforisma, sorvendo a minha cervejinha diária em
quantidades industriais, prática que por muito pouco não acabou com
o meu precioso fígado, levando-me desta para pior mais cedo do que
eu desejava. Portanto, amigos meus, mirem-se no meu péssimo exemplo
e vão mais devagar com o andor que o santo é frágil feito o barro.
E não aconselho nem ao meu pior dissidente afetivo a se arriscar a
ver de perto a antipática face da ossuda. Melhor beber com
moderação, sem sobrecarregar o organismo com excessos do copo,
porque o álcool é um inimigo poderoso, um veneno solerte, perigoso,
traiçoeiro, useiro e vezeiro em passar a perna em quem dele faz uso
abusivo, sem medir as futuras consequências. E por favor, não me
lancem a alcunha de falso moralista, a cuspir no prato em que bebeu.
Relato apenas uma experiência que vivi, mais nada. Quem quiser beber
que beba até empapuçar os gorgomilhos.
Antigamente,
no auge dos meus bons e saudosos tempos de boemia desregrada, quando
eu varava noites seguidas pelos bares afora, costumava afirmar
peremptoriamente que boêmio era boêmio e alcoólatra era
alcoólatra, sem me dar conta de que a fronteira entre boêmios e
alcoólatras era sutil e tênue como jamais supunha a minha vã
filosofia de botequim. Treda ilusão, mais ledo engano. Assim
descobri quase um muito tarde demais. Hoje, sei que os boêmios são,
pela própria natureza, dotados de uma exacerbada tendência em
tornarem-se escravos vitalícios do seu próprio prazer. E que seu
desmesurado amor pelo copo por vezes é capaz de superar, de vencer o
seu instinto de sobrevivência. Por isso, amigos meus, eu lhes peço
encarecidamente que bebam com sapiente morigeração e amem mais as
suas vidas do que o alcóolico produto. Bebam devagar para beber
sempre, de modo duradouro, porque nenhum fígado é de ferro, é
blindado. E assim, poderão beber durante a existência inteira,
celebrando Baco saudáveis e felizes por anos a fio. E lembrem-se de
que é inútil tentar acabar com a bebida existente no mundo, pois
quanto mais a gente bebe, mais a turma dos produtores fabrica. Ah,
luta inglória.
DOMÉSTICOS
PERCALÇOS
08/08/2012
Tudo
vai bem, tudo legal neste domingo providencial do comecinho de
agosto. Pelo menos até as duas horas da tarde. De um dia que parece
transcorrer pacificamente, apesar de uma ou outra surpresa um tanto
quanto desagradável, porque seria até demais querer uma total
tranquilidade o tempo todo. Isso só acontece em obras de pura ficção
escritas por um autor entediado demais para criar um enredo com
conflitos. Parto do princípio de que uma casa é verdadeiramente um
simulacro do mundo lá fora, onde não é raro que as coisas de uso
habitual de vez em quando entrem em pane, se quebrem ou os caseiros
objetos findem lá por entrar em greve, gerando aporrinhações de
duração longa ou passageira. É a descarga do banheiro que se
recusa a trabalhar. É o ferrolho do portão da rua que se solta
inesperadamente dos parafusos que o prendem. É uma lâmpada que se
queima inesperadamente quando mais se precisa dela. É o botijão de
gás que se esvazia sem dar aviso prévio, a borracha da máquina de
lavar que amanhece furada, partida em dois pedaços feito uma cobra
dividida ao meio por um facão afiado. As coisas quebram, terminam
seu ciclo de vida igualzinho a todos nós e precisam ser
substituídas, algumas com certa urgência, outras nem tanto.
Nessas
horas em que campeiam essas domésticas preocupações, mais difícil
do que manter-se calmo é encontrar um profissional em pleno domingo
para salvar a nossa pátria, resolver a aflitiva situação.
Bombeiros, eletricistas, encanadores, pedreiros, todos os quebradores
de galhos sumiram de vista como por um passe de mágica,
desapareceram na buraqueira como sombras fugidias e sem deixar
vestígio. Por mais que se procure os já conhecidos por outras
intervenções, todo esforço é vão, pois não estão em lugar
nenhum e desligaram os telefones qual estivessem combinados numa
geral insurreição. Não há como encontrá-los, nem por força e
obra de um milagre. E assim, a sujeitos imprestáveis como eu,
totalmente desprovidos de qualquer habilidade numa dessas mecânicas
atividades, incapaz até de pendurar um quadro na parede sem derrubar
a própria utilizando martelo e pregos, só resta esperar que o outro
dia chegue para mandar providenciar os devidos e necessários reparos
e consertos. Afora esses pequenos distúrbios, nada mais surge no céu
do que os aviões de carreira, além das brancas nuvens polvilhando o
azul solar da tarde acima de minha cabeça atarantada.
Sem
nada o que fazer pra resolver tantas aporrinhações, tantos
percalços domésticos, ligo a televisão e começo a me distrair
vendo um documentário, longo demasiado para o meu gosto, sobre o tão
falado e assaz comentado Caminho de São Thiago, pelo qual transitam
em êxtase e em transe os verdadeiros e falsos peregrinos vindos de
todas as partes do mundo, caminhando centenas de quilômetros à
procura de um suposto e peripatético nirvana, em busca de supostos
conhecimentos esotéricos, místicos e revelações espirituais de
grande monta e significado ímpar. Enquanto marcham, incansáveis,
rumo ao seu anímico destino, apoiados em rústicos cajados ou em
sofisticadas bengalas, todos trazem estampada nos rostos uma
expressão indefinível de quem procura o pote de ouro no fim do
arco-íris. Têm no coração a esperançosa certeza de que o simples
ato de fazer esta caminhada os purgará de todos os pecados passados,
presentes, futuros. Como se o Caminho de São Thiago fosse assim uma
espécie de lavanderia da alma, uma cornucópia de milagres infindos.
Desse ponto de vista, o Caminho de São Thiago tem a mesma serventia
mística das romarias brasileiras.
A
meu ver, a única diferença é que por lá romeiro atende pelo
aristocrático epíteto de peregrino. Cá por mim, não acredito no
pensamento mágico de que andar até Juazeiro, Canindé ou qualquer
outro santuário daqui e d’alhures consiga mudar magicamente a
existência de um indivíduo que nem eu e vocês. Eu também não
creio que mortificar o corpo com qualquer tipo de sacrifício físico
venha nos causar uma mais que milagrosa evolução espiritual, nos
transformando de demônios em anjos da noite para o dia. Ora pílulas,
caminhar nada mais é do que uma condição natural dos bípedes,
pensantes ou não. Jamais um passaporte infalível e com firma
reconhecida nos cartórios sagrados para alcançar a paz e a
felicidade espirituais. Se o fosse, o homem feliz não seria o homem
sem camisa. Seria o carteiro. E o esmoler pediria esmola dando
gargalhadas de porta em porta sob o sol quente. Entanto, o Caminho de
São Thiago virou moda, point místico, uma estrada mágica, cujo
garoto-propaganda mais conhecido chama-se Paulo Coelho, que descobriu
o que para ele foi o verdadeiro e legítimo caminho das pedras.
PENSAMENTOS
À DERIVA
16/07/2012
Hoje
é domingo, dia de feriado universal. De trabalhar vontade nenhuma eu
tenho, para ser sincero. Mas de gozar a folga tradicional em toda a
sua plenitude. Passar o dia de pernas pro ar, sem fazer absolutamente
nada de prático como a maioria das pessoas. Vejo os meus vizinhos,
que mal conheço, tirando os seus carros da garagem com um ar tão
feliz estampado nos rostos que chega a me dar uma tímida inveja
desses alegres felizardos ansiosos por uma gandaia. Meus
desdobramentos celulares já se mandaram, cedinho da matina, doidos
para começar o mais breve possível a sua festança dominical. E, em
verdade, estão cobertos de razão. Exibindo uma generosidade que não
lhes é peculiar, até chegaram a me fazer um discreto e pouco
insistente convite para acompanhá-los seja lá para onde forem.
Naturalmente recusei a filial oferta de deslocar-me rumo à longínqua
Praia do Futuro, porque só em pensar nos paulificantes
engarrafamentos que certamente haveremos de enfrentar, preferi restar
no confortável sossego do lar, acompanhado dos meus discos, meus
livros e a indispensável televisão a cabo, um dos meus poucos luxos
de agora.
Além
do mais, por serem as ideias de diversão da garotada bastante
diferentes das minhas, poderia atrapalhar, com a minha falta de
costume, como um trambolho paternal, o sadio divertimento de meus
amados pimpolhos. Não é que eu pense que lugar de velho é mesmo em
casa ou junto com seus iguais, seus pareceiros de cãs, em torno de
uma mesa dos botecos preferidos, conversando sobre nossos semelhantes
interesses em comum. Também não posso me arriscar a deixar a casa
sozinha, provisoriamente desabitada, por medo de que, ao regressar
das peripécias, seja vítima da desagradável surpresa de ver o meu
suburbano tugúrio invadido e saqueado pelos solertes amigos do
alheio, que pululam livremente em todos os rincões da cidade. Não
se trata de exagero paranoico de minha parte, basta dar uma
passadinha de olhos pelos jornais do dia, para ver se tenho ou não
motivos suficientes para assoberbar-me de cuidados. Principalmente
agora, nesse momento crítico, de campanhas eleitorais desencadeadas
pelos candidatos ao trono de prefeito, que nos deixam mais
desprotegidos do que já o somos, mesmo com os homens da lei
trabalhando a todo vapor. Certo que mantenho, soltos no quintal, meus
diligentes sentinelas caninos, mas sabe-se lá de que artimanhas são
capazes os ladrões profissionais.
Tirando
esses pequenos problemas concernentes ao quesito segurança, é-me
impossível fugir, apesar de ser domingo, da labuta obrigatória de
tomar do papel e da caneta e escrever, por cima de pau e pedra, a
compulsória croniqueta do dia, antes do início da pelada televisiva
dominical, quando os insossos prélios do triste pebol brasileiro
viram estrelas da telinha em quase todos os canais. E haja festival
de chutões, de passes errados, de quebração de bola pelos gramados
da nação. Sem falar nas intermináveis e repetidas mesas-redondas
comandadas pelos contumazes entortadores do idioma pátrio, como
Sérgio Porto chamava os comentaristas esportivos. Tem nada, não.
Falta pouco para o bemvindo mês de setembro dar as caras, anunciando
o tempo de tirar as minhas férias merecidas do jornal e meu exaurido
bestunto finalmente entrará no ansiado descanso anual. Enquanto isso
não acontece, amigos, tenho de continuar lavorando, futucando
cotidianamente o juízo em busca de assunto para traduzir em palavras
feito um padeiro preparando o pão do espírito. Desculpem-me, se
acaso puderem, se estou sendo um tanto quanto repetitivo ao falar dos
domingos nestas mal traçadas. Porém, cada um escreve do jeito que
pode e não como desejaria.
Que
bom seria, caso houvesse em mim a capacidade de escrevinhar uma obra
prima a cada jornada. Entanto, estou muito aquém de tal magnífica
condição de ser um escriba genial. Uma de minhas raras qualidades é
reconhecer as minhas literárias limitações neste mister que
escolhi como ofício ou, quem sabe, haja sido escolhido por ele por
razões que me são ignoradas. Deitado a meus pés, meu cachorro me
olha, quando em vez, cheio de um carinho e de uma afetividade quase
humanos. Alguns podem não acreditar, mas os animais que a gente
cria, mostram-se dotados de nos transmitir os sentimentos que lhes
povoam a alma, se é que os bichos possuem alma igual a nós. Pelo
menos eu creio que sim e deve haver, disso nem cogito em duvidar, um
Deus dos cachorros, e que, talvez, seja o mesmo em que nós
acreditamos. Penso que todos os animais, sem exceção, vão direto
para o céu, porque o inferno não foi criado por eles nem para eles.
Estarei eu a divagar, perdido entre tolos e ingênuos pensares? E se
realmente estiver equivocado, que mal me podem causar tais distraídas
divagações, essas elocubrações sem qualquer utilidade pragmática.
Tudo o que se pensa tem alguma serventia. Preencher o vazio e evitar
o tédio e me fazer praticar o saudável exercício de rir de mim
mesmo.
CORAÇÃO
FORASTEIRO
27/12/2011
hega.
Basta de falar e escrever sobre natais e viradas do ano. Pelo menos,
no que me diz respeito, tal assunto já me encheu as medidas até a
tampa. Não tenho mais saco e minha paciência não mais suporta
abordar esses temas. Para mim, de há muito se faz chegada a hora de
partir pra outra, de navegar outros mares de ideias, embora a maciça
e massiva propaganda dessas datas nos seja repetidamente bombardeada
por tudo quanto é mídia. A ordem do dia é comprar, comprar,
consumir, consumir sem cessar, gastando o que não tempos para
adquirir o que não precisamos. Afinal, o décimo- terceiro está aí
pra isso mesmo. E todos estão mergulhando de ponta-cabeça num
festival de gastança despropositada, se endividando às tontas, sem
sequer pensar, por um só momento, de que o preço a pagar
custar-lhes-á muito caro e, na maioria das vezes, estará furos
acima de suas posses. E o orçamento doméstico que se dane e vá
para as cucuias.
O
que importa nessa época de falsa fartura e concreto desperdício é
entrar na onda de tentação dos shoppings e deles sair com os braços
abarrotados de sacolas, pacotes, embrulhos com um de felicidade
bovina largamente estampado no rosto, arrastando pela mão os
insaciáveis pimpolhos, que sempre querem mais do que lhes é
ofertado pelos generosos papais e mamães. Estamos vivendo em plena
estação na qual o amor é obrigatoriamente medido pela quantidade
de presentes que ofertamos, mais nada. Aqueles infelizes que não
podem consumir, dar e ganhar mimos se situam à margem da vida e só
lhes resta estender a mão aos passantes, nas esquinas e nos sinais
de trânsito, esmolando as parcas moedas que lhes são atiradas como
os restos de um banquete. Para esses deserdados da sociedade só
resta duas opções: virarem esmoleres ou partirem para o assalto
puro e simples. Exagerando um pouco na dose, nos vemos cercados, por
todos os lados, de pedintes e de bandidos.
Eu,
que não participo desse desenfreado consumismo do natal e fim de
ano, me ponho voluntariamente à beira desse rodamoinho, permanecendo
em meu posto costumeiro de observador. Não fui feito para ser mais
um membro do imenso rebanho de estroinas sazonais e compulsórios que
se espalham desordenadamente, invadindo a cidade para onde quer que
se olhe. Porém, além de recusar-me firmemente a dançar conforme a
dança, nada tenho a ver com toda essa loucura estabelecida à minha
volta. E, afinal, quem sou eu para me pensar dotado do direito de
julgar o comportamento alheio? Cada um faz o que bem quer e gosta,
porque não sou eu quem vai pagar o custo das atitudes dos meus
semelhantes. É assim que a banda toca e quem desejar pode
naturalmente fazer parte do cordão dos seus seguidores, como
acontece no ancestral conto de fadas do Flautista de Hamelim. Acho
que poucos leram a história do hipnótico personagem pelo qual me
fascinei durante as leituras da infância.
Não
fui a nenhuma festinha de “amigo secreto”, porque as acho de uma
chatice sem tamanho. Nem mesmo às organizadas por amigos e
familiares, embora sentindo um discreto receio de que alguns se
magoassem com a minha habitual ausência. Temores infundados, pois os
que gostam de mim já estão acostumados com meu papel de ermitão
que desempenho invariavelmente nessas ocasiões. Se não me sinto à
vontade nesses congraçamentos, por qual razão iria estragar a
alegria dos outros? Ah, tomara que esses dias passem rápido e logo
comece o próximo janeiro, trazendo-me o desconhecido envolto em seus
cueiros. Estou realmente cansado, aborrecido, aporrinhado com o
furdunço que me rodeia. Preso às circunstâncias e ao calendário,
só me resta esperar, cheio de ânsia, que tudo passe e tudo passará
inevitavelmente, bem sei, embora seja demorada a passagem. Entanto,
como o bom cabrito não berra, vou ficando na minha, nem falante nem
mudo. Apenas com esse sentimento de estranheza grudado no coração
de forasteiro.
ELEGIA DO SÁBADO
04/01/2003
Em
sendo sábado, é dia de vadiar noturnamente feito um velho gato de
beira de telhado, desses que são íntimos da noite. Aliás, sábado
tornou-se o único dia da semana em que posso me dar ao luxo de
exercer a boêmia em tempo integral. Sem horários fixos, sem pressa
nem compromissos urgentes com nada e com ninguém. Romanticamente,
chego a definir meu estado de espírito sabatino como um homem que
arrebentou as grades de uma prisão após longo e tenebroso
cativeiro.
Entanto,
há que se ressalvar, nada de sentir-me um agoniado fugitivo,
desesperadamente à procura de um esconderijo ou de um abrigo dentro
da noite. Simplesmente deixo-me levar pelos instintos poéticos de
minha alma enfim liberta, sem essa de bancar o predador, a sair por
aí caçando companhia feito um doido como se o mundo fosse acabar
amanhã, antes da madrugada chegar.
Prefiro
degustar os prazeres que a noite me dá inesperadamente de forma
generosa e imprevisível. Poetas não vivem sem o maravilhoso risco
das descobertas. Aos sábados, estou mais pra carta sem destinatário
do que pra mensagem de náufrago. Em qualquer esquina eu paro, em
qualquer botequim eu entro, se houver motivo é mais um poema que eu
faço. Aos sábados, de noite, a cidade se torna misteriosamente
minha.
Já
não careço de portos seguros. Só me interessa navegar, o que não
me impede de olhar em torno e ver o que há. Principalmente a
madrugada ainda bonita de Iracema estender-se preguiçosamente
lúbrica sobre os horizontes da cidade. Sábado de noite não estou a
fim de consolos, confortos, um ombro amigo para chorar as minhas
mágoas. Meu negócio é cair numa merecida gandaia até pegar o sol
com a mão e depois voltar pra casa cada vez mais apaixonado pela
vida.
A
HORA DA VERDADE
02/01/2003
Pelo
amor de Deus, amigos meus, prestem bastante atenção no que ora vos
direi, pois se trata de assunto de suma gravidade e crucial
relevância. Todo cuidado do mundo ainda será pouco, já que está
em jogo um dos medos ancestrais do homem. Sim, o velho pavor de ser
traído pela mulher amada. Fiquem sabendo, pois li numa dessas
revistas semanais, que o adultério está se tornando, de modo cada
vez mais preocupante, uma prazerosa rotina no cotidiano do imbatível
mulheril.
E
esta tal aflitiva constatação me foi cientificamente confirmada
pelo eminente psicólogo grego Jode N. Simera, num encontro na casa
do amigo Neno Cavalcante. E dentre aquelas que mais gostam de
praticar o excitante esporte de cornear os indefesos parceiros estão
as mulheres entre os 30 e 40 anos. Como se vê, as adoráveis
balzaqueanas sempre a quebrar tabus, deliciosamente revolucionárias
que são.
As
mulheres andam pulando a cerca à vontade, sem a menor dor na
consciência, sem o mais anêmico remorso. Na implacável opinião do
Dr. Simera, as mulheres estão assumindo, diante de sua infidelidade
uma desfaçatez tipicamente masculina. Querem mesmo é rosetar, e não
mais traem somente por vingança, por necessidade, por uma louca
paixão. E sim, por puro prazer, igualzinho aos homens, na base do
''lavou, tá limpo''.
Quem
ficou coberto de trêmula apreensão foi meu compadre Chico Newton, o
paxá da Gentilândia. Também não é para menos, pela simples razão
de que quem tem seis esposas como ele, tem seis chances de ser
passado pra trás. As mulheres parecem estar levando a sério demais
o seu papel de Eva. Só que uma Eva meio psicanalisada, que perdeu a
culpa do chamado pecado original e que não tem medo nem de cobra.
HERANÇA
PATERNA
29/03/2003
Pelo
amor de Deus, amigos meus, prestem bastante atenção no que ora vos
direi, pois se trata de assunto de suma gravidade e crucial
relevância. Todo cuidado do mundo ainda será pouco, já que está
em jogo um dos medos ancestrais do homem. Sim, o velho pavor de ser
traído pela mulher amada. Fiquem sabendo, pois li numa dessas
revistas semanais, que o adultério está se tornando, de modo cada
vez mais preocupante, uma prazerosa rotina no cotidiano do imbatível
mulheril.
E
esta tal aflitiva constatação me foi cientificamente confirmada
pelo eminente psicólogo grego Jode N. Simera, num encontro na casa
do amigo Neno Cavalcante. E dentre aquelas que mais gostam de
praticar o excitante esporte de cornear os indefesos parceiros estão
as mulheres entre os 30 e 40 anos. Como se vê, as adoráveis
balzaqueanas sempre a quebrar tabus, deliciosamente revolucionárias
que são.
As
mulheres andam pulando a cerca à vontade, sem a menor dor na
consciência, sem o mais anêmico remorso. Na implacável opinião do
Dr. Simera, as mulheres estão assumindo, diante de sua infidelidade
uma desfaçatez tipicamente masculina. Querem mesmo é rosetar, e não
mais traem somente por vingança, por necessidade, por uma louca
paixão. E sim, por puro prazer, igualzinho aos homens, na base do
''lavou, tá limpo''.
Quem
ficou coberto de trêmula apreensão foi meu compadre Chico Newton, o
paxá da Gentilândia. Também não é para menos, pela simples razão
de que quem tem seis esposas como ele, tem seis chances de ser
passado pra trás. As mulheres parecem estar levando a sério demais
o seu papel de Eva. Só que uma Eva meio psicanalisada, que perdeu a
culpa do chamado pecado original e que não tem medo nem de cobra.
COISAS
DO FUTEBOL
04/02/2003
Sim,
devo confessar, depois de longas meditações, que já não resta em
mim a menor dúvida. O que o fatídico dia 16 de julho de 1950
representou para a geração de meu pai, o terrível 5 de julho de
1982 significou para a minha. A mesma desesperada tristeza da morte
do sonho, o sonho ingênuo e belo de ver a ''Pátria de Chuteiras''
ganhar a copa do mundo, o Oscar do futebol.
Até
hoje, o sentimental autor dos meus dias enche os olhos d'água quando
lembra a tragédia do Maracanã. Eu, certamente, falarei a meus netos
da catástrofe de Sarriá, Barcelona, Espanha. Com a Itália no lugar
do Uruguai e Paolo Rossi desempenhando o papel de carrasco que foi de
Gighia. Lembro que chorei, ao ver o Brasil desclassificado, feito
menino a quem roubaram a primeira bola de couro. Dava gosto assistir
àquela seleção do Telê jogar.
Era
pura arte, alegria. O escrete de 82 tinha alma de Garrincha e a
inteligência do maestro Paulo Roberto Falcão. Ainda sei de cor a
escalação da maravilhosa onzena canarinha: Valdir Perez, Leandro,
Oscar, Luizinho e Júnior seguravam as pontas lá atrás. No meio do
campo o quadrado mágico Toninho Cerezzo, Falcão, Zico e Sócrates
esbanjavam categoria e classe. Na frente, o artilheiro Serginho, que,
diga-se de passagem, nunca vi perder tanto gol feito.
Na
ponta esquerda, a habilidade e o talento de Éder, que botava a bola
onde queria, como se tivesse uma fita métrica no olhar. Um time que
tinha tudo pra ser campeão acabou a copa num melancólico quinto
lugar. Perdemos de três a dois dos italianos como poderíamos ter
enfiado uns cinco a zero na esquadra ''Azurra''. Justamente por ser
uma arte e não uma ciência exata, o futebol é a surpresa, o susto,
o inusitado, o Sobrenatural de Almeida, o Acaso da Silva, o
Imponderável de Sousa.
PLATÃO
27/07/2012
Platão
foi, é e continuará sendo, quer queiram, quer não, um dos nomes
fundamentais da história da filosofia ocidental, apesar de haver
nascido em priscas eras, no ano da graça de 429 antes da advinda do
Cristo. E a sua doutrina filosófica se caracteriza principalmente
pela famosa e popular teoria das ideias e por sua preocupação
constante com os temas relacionados ao campo da ética e toda e
qualquer meditação filosófica se destina, segundo ele,
essencialmente ao conhecimento do Bem. Conhecimento este que Platão
supunha mais do que suficientemente capaz para a implantação
definitiva da Justiça entre os Estados e os Homens. O comportamento
humano, de acordo com o velho e bom pensador grego, deriva de três
fontes básicas, principais: o desejo, a emoção e o sentimento.
Essas seriam as nossas forças motrizes desde que nascemos. O desejo
reside no centro das nossas virilhas, explosivo reservatório de
nossa energia sexual. O coração, por sua vez, seria o centro da
emoção. Já o conhecimento habitaria a cabeça, a mente e poderia,
se devidamente cultivado, se transformar no mestre-piloto de nossa
conturbada alma. Será que fui claro ou compliquei o assunto ora em
pauta?
Há
determinados homens que são a personificação do desejo, cujas
vidas estão completamente absorvidas pela ganância pelos bens
materiais. Outros existem dotados de um corajoso espírito guerreiro,
que não se importam tanto com os objetivos de suas lutas, sejam eles
bons ou maus, mas pela luta como um fim em si mesma e são obcecados
pela conquista da vitória. Entanto, alguns poucos, e muitos poucos,
que não anseiam pela posse infinita, interminável de riquezas nem
pela glória efêmera de serem considerados vencedores das olimpíadas
da vida mundana. Estes dedicam toda a sua existência a obter
conhecimento sobre si mesmos, sobre a sociedade em que vivem, sobre o
mundo que os cerca, mergulhadores obstinados na meditação e nos
prazeres do pensar, buscando a sabedoria. Platão também costumava
afirmar, séculos antes que o Doutor Sigmund Freud inventasse a
psicanálise, que determinados prazeres e instintos são considerados
ilegais pelo corpo social em que estão inseridos. Todo homem parece
possuí-los, mas certas pessoas conseguem, empregando desmesurado
esforço mental e físico, submetê-los ao poder da razão,
suprimindo-os quase inteiramente do campo consciente. Porém, o
filósofo jamais esquece de nos advertir, mandando um sábio aviso
aos navegantes: “Em todos nós existe latente essa natureza de
animal selvagem, que espreita durante o sono”. Claro está para mim
que Freud deve ter sido um atento leitor de Platão.
Como
se vê, nem se pode negar, por mais má vontade que se tenha, que o
nosso Platão bem sabia das coisas e conhecia as profundezas da alma
humana como poucos conseguiram conhecer. E não estou eu a falar
nenhuma novidade. Outrossim, cá me pergunto, espantado comigo mesmo,
porque cargas d’água baixou-me, de repente, este impulso
aparentemente inexplicável de falar em Platão e no que ele pensava,
em plena noite de uma quinta-feira chocha e quente, já quase
madrugadinha. Sei que sou dado a cultivar vadios pensamentos, mas
nunca pensei que chegasse a tanto. É verdade. A mente humana, tal e
qual a Seleção Brasileira, não passa de uma manjada caixinha de
surpresas. Algumas agradáveis, outras igualmente desagradáveis.
Claro que lembrar e pensar nos escritos imorredouros de Platão para
mim é sempre um motivo mais que justo de alegria e satisfação,
principalmente por constatar que a minha frágil, cambaleante memória
ainda não entrou em processo senil de degradação neuronal. E que
meus sambados neurônios permanecem fabricando a sua cota habitual de
serotonina e outros demais neurotransmissores. Afinal, passei quase
toda minha vida de olho pregado nos livros e tal exercício cerebral
não deve ter sido praticado em vão, assim imagino.
Ah,
somente agora veio-me à lembrança que um dia desses um amigo andou
me confessando, pedindo-me o mais completo e absoluto dos sigilos,
que estava platonicamente apaixonado por uma mulher que lhe era
terminantemente proibida, interditada, devido a razões de ordem
familiar. E ele, além de pelar-se de medo do escândalo que tal amor
poderia provocar, ainda havia um outro intransponível empecilho aos
seus desejos: era um infeliz sabedor de que seu imenso amor de agora
jamais haveria de ser correspondido, pelo simples fato da feminina
criatura nunca lhe haver dado a menor pelota, nem mesmo quando era
solteira, livre, desimpedida. Quanto mais agora, bem casada, com
filhos e supostamente caída de amores pelo sortudo maridão. Tentei
consolá-lo o mais que pude dizendo-lhe, à guisa de afetivo
conforto, que amor platônico é assim mesmo, feito para ser
impossível de realizá-lo no plano físico e vivido à distância em
toda a sua incomensurável imensidade. Sim, causa sofrimento
tantálico como todo grande amor, porém possui um belo e maravilhoso
mistério. Resta guardado dentro de nós para o resto de nossas vidas
e muitas vezes, dura para muito além da eternidade.
A TEORIA DO NÓ
01/05/2005
Quanto
mais se precisa dele, mais passa demasiado rápido esse trem-bala que
se chama tempo. Já são quase cinco da tarde deste domingo
infernalmente quente e ainda não consegui escrever sequer uma mísera
linha da maldita crônica de hoje. Tem dias que é assim mesmo, as
palavras se engancham no cipoal fechado da mente como caranguejos
escondidos nos esconsos de um mangue. E o pobre do cronista fica
coçando a cabeça ou outra parte menos nobre de sua anatomia sem
saber direito o que fazer para cumprir a bom termo o seu ofício.
Entanto,
as palavras estão lá, eu sei, ao alcance das mãos, dos dedos
inertes sobre o teclado do computador como se eu tentasse em vão
excitar uma mulher frígida. Por vezes, é assim mesmo, as palavras
estão no limiar da sílaba e ao mesmo tempo imensamente
inacessíveis. Jorge Amado tinha sua teoria do nó: quando o texto
empaca num nó cego, o único jeito é esperar que o nó se desfaça
sozinho e dar tempo ao tempo, fazer de conta que tudo vai acontecer
como sempre aconteceu, na hora certa, no instante exato e jamais
desesperar-se com o branco.
Eu
poderia, por exemplo, falar do amor, da mulher que amo, dos filhos,
dos amigos, dessa tarde de domingo que cai sobre mim feito uma
bênção, falar de vinhos, do gosto do vinho em minha boca sequiosa
de sabores, do pernil que comi no almoço, da noite de sábado quando
uma estrela cadente cruzou os céus parquelandinos ou não passou de
ilusão de meus olhos míopes? Eu poderia falar sobre o que espero da
vida neste mês de maio que me traz meus 56 anos e que não sei se
será um traiçoeiro presente de grego.
Eu
poderia falar, inclusive, do lampejar de ódio que percebi nos olhos
daquele menino esfarrapado que me pediu uns trocados no sinal fechado
e eu fiz que não vi. Ou do bêbedo esparramado no meio da calçada
que nem um trapo sujo, jogado fora. Ou do casal de jovens namorados
que brigava em voz alta na mesa do bar como se estivessem sozinhos no
mundo. Poderia falar de mim, dos meus medos do futuro, dos poucos,
mas grandiosos sonhos que me restam. Porém, não quero falar mais
nada, escrever mais nada, só aproveitar a tarde em toda a sua bela
plenitude.
O ENGARRAFADO
26/12/2011
Seis
horas de um fim de tarde agitado de sexta-feira. Eu, sem muita
surpresa, me vejo preso, encarcerado em meio a um engarrafamento
quilométrico, descomunal numas das principais avenidas da cidade.
Estou completamente, indefesamente cercado, ilhado por um mar de
automóveis, motocicletas, ônibus, caminhões. Os motoristas mais
nervosos, impacientes, irritadiços fazem soar suas buzinas sem
parar, causando uma zoada infernal, insuportável, como se tal
sandice servisse para alguma coisa a não ser aumentar o pandemônio
em volta. Encontro-me perdido, enjaulado em pleno efervescer do caos
que ora domina o trânsito citadino. Não há para onde fugir nem
como escapar da armadilha em que me meti. O sinal à frente passa do
verde ao vermelho numa lentidão agoniada, desesperante, o que nos
transforma a todos em bombas ambulantes prestes a explodir a qualquer
instante. Aqui e ali estouram discussões e sou tomado por uma
apreensão de que, súbito, aconteça uma briga braba entre os que
pilotam os semoventes.
Embora
tente me manter calmo, mesmo enfiado na confusão caoticamente
instalada, sinto que pouco a pouco uma leve irritação começa a me
acometer devido ao cansaço da longa espera. Olho o relógio. Quase
uma hora já se passou e o carro se move a passos de tartaruga como
se estivesse atolado na lama. E eu, que tinha a ilusão de chegar
mais cedo em casa, logo abandono esse ilusório desejo pela concreta
impossibilidade de realizá-lo. Quanto mais olho pelas janelas, mais
parece aumentar o número de veículos como se brotassem do chão a
cada minuto. Pra que tanto carro, meu Deus, pra que tanto carro? Eu
me pergunto, ansioso, mergulhado no centro da enorme balbúrdia.
Dentro do carro parado ao lado do meu, um casal discute
acaloradamente, posso perceber. Apesar dos vidros fechados, estamos
tão próximos que posso ouvir os gritos raivosos do homem, enquanto
a mulher, por sua vez, berra histericamente ao celular.
Do
meu lado esquerdo, um jovem permanece estranhamente calmo,
indiferente ao inferno que nos cerca, batucando no volante,
acompanhando a música que escuta em seus fones de ouvido. Posta à
minha frente, uma caminhonete, dessas chamadas utilitárias, carrega
na carroceria dois homens vestidos com desbotados macacões azuis
segurando uma longa e larga lâmina de vidro perigosamente, pois a
frágil mercadoria pode espatifar-se no caso de uma batida,
espalhando cortantes estilhaços em todas as direções, inclusive na
minha. Atrás de mim, quase colado ao meu para-choque traseiro, o
vulto ameaçador de um ônibus lotado, pilotado por um cinesíforo
demasiado impaciente. É, torno a pensar comigo mesmo, a coisa está
preta e o que é pior, não tem hora pra acabar. O jeito é me
conformar com a enlouquecedora situação até quando Deus quiser.
Tento relaxar, reduzir a tensão que em mim vai se acumulando,
cerrando os olhos e pensando no merecido sossego que me espera quando
finalmente chegar em casa.
Todavia,
me convenço de que o almejado e feliz querer de regressar ao sagrado
recesso do lar vai se tonando uma tarefa difícil de ser alcançada,
conseguida. Sem querer, entro num estado de hebetude, as pernas
entorpecidas, o coração acelerando seu ritmo com o caminhar
vagaroso do trânsito e do tempo nesse começo de noite infausto e
enervante. De repente, ali imóvel, estático, parado perto da coxia,
me bate um medo, aliás, muito natural, de ser vítima fácil de um
assalto. O mais disfarçadamente possível, escondo a carteira
debaixo do banco por via das dúvidas. Os indefectíveis flanelinhas
surgem em enxame de todos os lados, munidos de suas garrafas de água
suja e seus escovões imundos, querendo me impor um serviço que não
pedi. Despacho um por um, recusando seus préstimos com um sorriso
gentil, sei lá o que são capazes de fazer. Finalmente, o maldito
engarrafamento se desmancha como um rebanho em fuga e posso seguir o
meu caminho. Entro em casa como se entrasse no paraíso. Minha mulher
me abraça e me beija. Felicidade tamanha duvido que haja.
"Olho
o relógio. Quase uma hora já se passou e o carro se move a passos
de tartaruga como se estivesse na lama"
Inventor
de delicadezas
11/09/2012
Menino
crescido na Gentilândia das décadas de 1950 e 1960, Airton Monte
foi, antes de se formar psiquiatra e escritor, talentoso jogador de
futebol, herança do pai profissional, e coroinha zeloso - o que
chegou a nutrir na mãe a esperança do filho seguir carreira
eclesiástica.
Da
primeira vocação, restou a paixão pelo esporte, particularmente
pelo Tricolor do Pici. Um misticismo profundamente humano permaneceu
da segunda, que o fazia se referir a São Francisco de Assis como
“meu Chiquinho”. Ateu desde os tempos da juventude, quando
ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará
e no movimento comunista, Airton chegou a contar em entrevista sobre
a dor de abandonar a fé cristã.
Encontrou
em São Francisco de Assis o homem perfeito para mediar a relação
com o “homem lá de cima”. “Ele achava que São Francisco era o
maior cristão que havia existido, o exemplo mesmo do comunista”,
contou sua filha Bárbara, 35.
Em
casos mais graves, a exemplo de uma cirurgia dentária (tinha fobia
de dentista), recorria a intercessão de Sônia, sua esposa. Nas
últimas semanas, inclusive, quando o câncer no fígado
diagnosticado em novembro de 2009 recrudesceu, orava diariamente,
como ele mesmo confessou à filha. “Ele era um ateu fajuto”,
constatou Bárbara. No domingo, por sinal, o amigo e livreiro Sérgio
Braga foi à missa em Canindé em intenção do companheiro de
boemia. Semana passada já havia trazido de lá dois escapulários
para ele.
A
devoção pelo santo representava a opção feita por uma vida
demasiadamente humana de Airton, engajada nas lutas políticas do
País, inspirada pelas mesas de bar de Fortaleza, envolvida no
trabalho psiquiátrico com doentes mentais no Hospital Mira y Lopes.
Deixou amigos ao montes, como o escritor Carlos Augusto Viana e o
artista plástico Audifax Rios.
Airton
Monte - que estreou na literatura com os contos de O Grande Pânico
(1979), mas se notabilizou pela crônica, gênero cotidiano,
corriqueiro, que exerceu diariamente neste mesmo jornal desde a
década de 1990 - foi antes de tudo um profano.
Talvez
por isso mesmo tenha recebido apenas oito votos - contra 26 do
advogado Ernando Uchôa Lima - para a cadeira de número 14 da
Academia Cearense de Letras, vaga com a morte de Barros Pinho. A
eleição, realizada coincidentemente ontem, garantiu ironicamente
uma homenagem às avessas. “Eu já dei os pêsames à família,
estou dando à literatura cearense e também à Academia”, declarou
sobre o fato Pedro Henrique Saraiva Leão, presidente da ACL.
Devido
a complicações do quadro clínico, Airton não se alimentava mais,
estava prostrado numa cama e há dois dias praticamente inconsciente.
“O quadro foi de uma malignidade impressionante, mas teve um
aspecto muito bom, que ficou exatamente de acordo com a bondade de
Airton Monte. É que ele não sofreu”, garantiu o acadêmico, amigo
e médico José Telles.
Airton
morreu aos 63 anos, em casa, às 20 horas. Deixa a esposa Sônia e os
filhos Bárbara e Pablo.
Perfil
Natural
de Fortaleza, onde nasceu em 1949, Airton Monte era médico
psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará em 1976.
Escritor e jornalista, escrevia crônicas diárias para o caderno
Vida & Arte, do O
POVO;
e participou de várias antologias de poetas e cronistas cearenses.
Publicou seis livros. Entre eles, Memória de Botequim e Moça com
Flor a Boca, que foi indicado para o vestibular da UFC.
Repercussão
Acho
que ele não morreu de jeito nenhum. O problema nesse momento é a
saudade, a gente vai sempre ficar com um gosto de saudade. Esse é o
dano.
Demitri
Túlio,
jornalista e amigo
Airton
escreveu com a alma na ponta dos dedos. E porque fez do afeto arma
poderosa contra o esquecimento do que é demasiado humano, não será
esquecido.
Fátima
Mesquita,
secretária de cultura do Município
Airton
Monte era um cara muito alegre, muito criativo e gostava muito do
improviso. Sempre com um conhecimento da língua bem apurado. Mas
enquanto figura humana ele também vai deixar muita saudade.
Miguel
Macêdo,
jornalista e professor, ex-editor do caderno Vida & Arte
Airton
Monte era um dos grandes cronistas do Ceará. Nós tivemos o Caio
Cid, depois o Milton Dias e ele foi o terceiro e último grande
cronista do estado do Ceará. Eu já dei os pêsames à família,
estou dando à literatura cearense
Pedro
Henrique Saraiva Leão,
médico e presidente da Academia Cearense de Letras
Vai ser uma
lacuna. A gente só tem mesmo a lamentar. E ele se foi tão novo,
teria muito ainda a compartilhar
Vânia
Dummar, jornalista
e integrante do conselho editorial do O
POVO
Inventor
de delicadezas | O POVO