CAPÍTULO XVIII
“Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.”
(Florbela Espanca)
Quando completou um mês de sua estada ali, Ângela foi para casa totalmente recuperada. Aliás, salvo algumas exceções, todos que chegavam ali saíam recuperados, a partir do milagre dos anti-retrovirais, tudo graças, não esqueçamos de falar, ao esforço conjunto do governo e de toda a sociedade. Infelizmente em países pobres, principalmente da África, seres esqueléticos morrem a toda hora vítima desse flagelo, e as perspectivas para o futuro não são nada animadoras. Espera-se, portanto, que o mundo se una num grande consórcio, sem interesses particulares, para socorrer esses miseráveis. Que nações representadas por seus governantes deixem de lado seus desafetos e suas fronteiras, parem de fomentar guerras para se juntar numa luta sem trégua pela salvação da humanidade. Pois bem, depois que saiu do hospital, Ângela passou a me visitar, mesmo nos dias em que não ia dar seqüência ao tratamento. Depois passamos a sair, íamos ao cinema, ao teatro, a shows e atividades afins. Quando demos pela coisa estávamos namorando. Às vezes eu lembrava da outra época, de nosso namoro de outrora. Naquele tempo nosso relacionamento parecia uma tromba d’água, as cataratas do Iguaçu. Agora, assemelhava-se a um manso lago azul, fazíamos amor, é óbvio, mas com o consentimento do momento e da ocasião, sem nos atropelarmos, sem os desatinos de então. Ela me levou pela primeira vez a conhecer seus pais, e eu fiz o mesmo. Num outro dia, fomos pela primeira vez para ela conhecer Aliel e seu esposo. Apesar de não querer demonstrar, Aliel se roeu de ciúme. Eu ria interiormente com a situação, no mínimo hilária, era ciúme fraterno. Descobri com o tempo que formávamos um quarteto, por isso resolvi casar com Ângela, para surpresa até mesmo minha. Foi uma decisão súbita. Eu estava dormindo quando no meio da noite despertei com aquela idéia me carcomendo o juízo. Eu estava prestes a terminar meu curso, as minhas funções iriam se intensificar e eu precisava de um porto seguro para garantir o retorno do navio cansado da labuta. Por outro lado, aliel e Ernani eram tão felizes que a esperança de vir a tê-la quase inexistia. Além disso, Ângela havia mudado e nossos seres se completavam. Pela madrugada consegui dormir, mas logo acordei despertado dessa vez pelas palavras do Wellington sobre alguém que queria me fazer sofrer e me veio à memória o que ela me fizera no passado, entretanto a idéia de sua metamorfose reforçava a decisão, e dormi convicto do que deveria fazer. Na manhã seguinte comuniquei aos meus pais que resolvera me unir em matrimônio com Ângela. Eles não acharam problema nenhum, principalmente depois de eu explicar que, mesmo tendo o vírus da AIDS, Ela poderia perfeitamente ter filhos, sem transmiti o HIV para o bebê. No final de semana oficializamos o noivado num almoço na casa de Aliel, que no fundo não escondia que estava sendo picada pelo mosquito do ciúme.
Dois meses depois estávamos casados e felizes. Pouco tempo depois, num passeio à praia, Aliel nos contou que estava grávida e que teria um bebê para dali a oito meses. No domingo seguinte foi a vez de Ângela revelar o que já suspeitávamos, também seríamos pais. É uma sensação singular esta de ser pai, poder transmitir seu ser a uma criança que vai nascer. Para nós quatro, esse sentido era maior porque ficávamos pensando quem encarnaria em nossos filhos, que espírito estava na fila para renascer um nosso rebento? Entre os cuidados que tinha com um paciente e outro, ficava pensando naquela criaturinha que se formava, como seriam seus traços físicos; como será seu gênio, tranqüilo, enfezado, tímido, extrovertido. Foi com grande expectativa que recebemos o resultado dos exames, e para nossa alegria o feto não era soropositivo.
Os bebês nasceram na mesma semana. Aliel dera à luz um lindo menino, e Ângela, uma espetacular menina. Conforme já estava combinado, nossa filha chamou-se Leila, Aliel de trás pra frente, e o filho de Aliel chamou-se Nadiel, anagrama de meu nome. Durante o primeiro ano de vida de Leila e Nadiel, éramos as seis pessoas mais felizes do universo. Encontrávamos, sempre que podíamos, em praças, clubes e ambientes afins. Quando estava de plantão ou quando o hospital requeria minha presença mais constante, Ângela ficava com Aliel, e assim nossos filhos cresciam unidos, irmanados pelo afeto que nos unia. Ângela dera uma ótima mãe, melhor do que eu poderia imaginar, atenciosa, carinhosa, prestativa. Não havia ressonar da Leila mais forte que ela não despertasse e fosse ninar a filha, eu estava feliz por tê-la encontrado naquele dia, no leito do hospital. Ernani também se mostrava bastante feliz pela situação, tornara-se amigo de Ângela, e eu ficava enternecido quando ia buscá-la juntamente com a nossa filha e encontrava os dois, ela e Ernani, conversando na sala, ou compenetrados numa partida de xadrez. Muita vez, Aliel dormia enquanto essas cenas ocorriam. Éramos, pois, felizes...
CAPÍTULO XIX
“De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.”
(Vinícius de Morais)
... Até o dia e que o mastro onde tremulava a flâmula de nossa felicidade ruiu sobre nossas cabeças, para assombro dos sobreviventes. Era meia noite de sábado e eu estava de plantão. Nesse dia os corredores pareciam mais lúgubres do que o costumeiro, o sofrimento daquelas criaturas me causava um calafrio inexplicável. Eu andava pelos corredores ouvindo-lhes a tosse ou os gemidos que se misturavam num lamento triste. Quando o bip chamou. Era aliel. Fui até o telefone mais próximo e liguei, apreensivo, pensando ter havido algo com Leila. Aliel chorava e pedia desesperadamente que fosse ao seu encontro. Os soluços não lhe permitiam palavras elucidativas, e eu, após chamar um amigo para me substituir, chispei para lá. No caminho minha cabeça girava e eu imaginava as mais diversas situações que poderiam ter ocorrido para aquele desespero de Aliel, mas jamais atinaria com a verdade. Chegando lá, encontrei-a do mesmo modo como estava ao telefone. Ela correu para mim, me abraçou e soluçando me disse:
─ Um acidente terrível com Ernani, vamos comigo. – Disse entre soluços!
─ Claro! – disse eu – vamos logo! – e pegue o telefone para ligar para Ângela, e fiquei surpreso por ela não estar. Quem atendeu foi Marlene, nossa diarista, que me dissera que Ângela lhe havia pedido para ficar com Leila. Outrossim, liguei para o IJF para saber se alguém já havia ido ao local de algum acidente na BR. A resposta foi afirmativa. E eu saí com aliel para o local do sinistro um pouco mais tranqüilo, pois se havia socorro era porque havia alguém para ser socorrido.
O local estava já cercado por policiais e equipes de reportagem. Nós nos identificamos e fomos liberados para ver a cena de perto. O carro do psicólogo estava totalmente destroçado. Os bombeiros tentavam a custo retirar as vítimas, duas, um homem, Ernani e uma mulher, cujos rosto estava coberto pelas ferragens. A escuridão também contribuía para que não identificássemos a companheira de Ernani. Aliel abraçada a mim, não chorava, apenas soluçava de vez em quando. Conversando com os policiais, ficamos sabendo que um caminhão, que se encontrava a alguns metros dali, havia avançado a contramão. Continuamos esperando apreensivos enquanto o local transformou-se num inferno de carros e curiosos. O socorro já chegara há algum tempo, mas não podia agir enquanto as vítimas não fossem retiradas dos destroços. Em pouco tempo alguém nos chamou, era o médico do socorro: “Infelizmente não foi possível salvá-los” Falou enquanto tirava as luvas e as atirava longe como um lutador que joga a toalha após a derrota. Foi quando finalmente pudemos ver os rostos dos corpos exânime: Ernani e Ângela haviam morrido abraçados sob as ferragens do que antes havia sido um automóvel de passeio. O choque para mim não fora menos cruel do que o fora para Aliel. Não compreendíamos o que estava acontecendo, se uma bomba estourasse próximo a nós não causaria tanto espanto, como foi o causado naquele momento por aquela surpresa. Aliel desmaiou nos meus braços, e tive de levá-la para casa. Chamei seus pais e, mesmo abalado, tive de fazer um esforço sobre-humano para me controlar. Sempre achei que as pessoas têm todo o tempo do mundo para se rasgarem, arrancar os cabelos ou bater com a cabeça na parede, menos quando precisam ter calma. Fui para casa ver como estava minha filha, tomei um banho, troquei a roupa e fui cuidar da burocracia que compete aos vivos para dar termo aos mortos.
O dia seguinte foi o mais longo de toda minha existência. O velório se realizou na igreja do cemitério Parque da Paz. Mesmo havendo profundo sofrimento envolvido no caso, não houve quem se opusesse a realização dos enterros no mesmo horário e lugar, a missa também foi uma só. Coincidentemente havia naquele domingo muitos enterros a se realizarem ali, o cemitério fervilhava de familiares de finados, parecia que era o dia dos mortos. Aliel estava abraçada a mim. Já não soluçava. Vez por outra me olha e fazia um gesto com a boca de quem pedia desculpas pelo ocorrido. Estávamos assim, quando senti uma sensação estranha, quase caí. Um amigo médico se aproximou, perguntou se eu estava passando bem, ao que eu disse:
─ Sim, estou bem. – e pedi – fique aqui com aliel, que vou tomar uma água.
Quando me dirigia para fora, pensando que o meu mal-estar era provocado pelo aglomerado, pois sempre tive um pouco de claustrofobia, desmaiei. Súbito vi quando as pessoas correram para mim, vi também Aliel desesperada. Meu amigo médico levou-me imediatamente para uma sala. Tudo sumiu. Ao redor de mim, vi Ângela, Ernani e vários outros recém desencarnados. Ernani estava abstraído, distante, perdido, dir-se-ia numa atitude quase resignada. Sua áurea demonstrava arrependimento. Ângela ao seu lado, falava palavras ensandecidas, gritava que sua fraqueza era não ter amor, pois se amasse a esposa não teria caído em sua armadilha e ria, sua áurea era negra, obscurecida por um gênio ruim, cujo imo era difícil de se atingir. Quando me viu, arreganhou os dentes e me perguntou:
─ Que foi? Já vieste te juntar a nós? Ou vieste apenas me agradecer pelo que te fiz? Vai, volta logo para os braços de Aliel. O caminho agora está livre e graças a mim. – falou com uma fala que me lembrou Almerinda, com um sarcasmo irritante.
─ Cala boca, seu espírito apodrecido, você não tem o direito de se reportar aos sublimes – gritei eu – você não se envergonha de, vida após vida, a única coisa que faz é seguir seus instintos, eu sempre soube o que realmente lhe dá prazer: é ver a vida das pessoas destruída.
Nesse momento ela se aproximou de mim, fez um muxoxo de quem está arrependida e me falou baixinho:
─ Mas o caminho agora está livre, meu bem, – repetiu – volte logo para os braços de sua Aliel, antes que nos venham buscar. Ou você pensa que eu nunca soube de sua história com ela, hem!? Aquele bobão me contou tudo. – e apontou para Ernani, que estava muito distante.
Eu a afastei de mim com força, e ela gargalhou sonoramente, fez um desdém e foi ter com os outros que estavam mais afastados e lá ficou fazendo terror sobre o que os esperava. Aproximei-me de Ernani, ele me fitou e me pediu desculpas, em seguida falou:
─ Durante toda minha existência eu me pautei a ser um homem digno, honesto, fiel. E o fui até o dia em que essa coisa ruim – e apontou para Ângela – entrou na minha casa e começou a me torturar. Eu devia ter resistido, pois é impossível uma pessoa ser tão dissimulada. Na frente de vocês, sua e de Aliel, era um anjo, seu olhar para mim era quase fraterno. No entanto, quando vocês não estavam, havia lascívia em seus olhos, luxúria em seus trejeitos, mel em suas palavras Quando dei por mim estava vivendo o céu em vida. Agora estou vivendo o inferno na morte. – e me pediu novamente desculpas e se afastou para o seu limbo.
Nesse momento todos os espíritos saíram para o campo verde, salpicado de branco da cal dos jazigos. Alguns choravam, lamentavam-se por abandonar a vida, outros como Ernani, pareciam estar num profundo estado de resignação. Sob toldos brancos abriram-se covas, as de Ernani e Ângela postaram uma ao lado da outra. Eu vi Aliel amparada pela mãe, enquanto os pais de Ângela ficavam a alguns passos atrás. Foi em silêncio, que os corpos desceram ao leito derradeiro. Alguns espíritos gritavam quando a luz chegou para levá-los, outros apenas baixaram a cabeça, Ângela ria alto, escandaloso. E eu assisti a tudo entristecido por ela. Quando nos encontraremos de novo? Terá ela tirado dessa sua estada aqui na terra alguma lição de fato para sua evolução? Infelizmente, assim como há pessoas, espíritos reticentes, é claro, também os há.
“Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, amor!
E para as tuas chagas o ungüento
Com que sarei a minha própria dor.”
(Florbela Espanca)
Quando completou um mês de sua estada ali, Ângela foi para casa totalmente recuperada. Aliás, salvo algumas exceções, todos que chegavam ali saíam recuperados, a partir do milagre dos anti-retrovirais, tudo graças, não esqueçamos de falar, ao esforço conjunto do governo e de toda a sociedade. Infelizmente em países pobres, principalmente da África, seres esqueléticos morrem a toda hora vítima desse flagelo, e as perspectivas para o futuro não são nada animadoras. Espera-se, portanto, que o mundo se una num grande consórcio, sem interesses particulares, para socorrer esses miseráveis. Que nações representadas por seus governantes deixem de lado seus desafetos e suas fronteiras, parem de fomentar guerras para se juntar numa luta sem trégua pela salvação da humanidade. Pois bem, depois que saiu do hospital, Ângela passou a me visitar, mesmo nos dias em que não ia dar seqüência ao tratamento. Depois passamos a sair, íamos ao cinema, ao teatro, a shows e atividades afins. Quando demos pela coisa estávamos namorando. Às vezes eu lembrava da outra época, de nosso namoro de outrora. Naquele tempo nosso relacionamento parecia uma tromba d’água, as cataratas do Iguaçu. Agora, assemelhava-se a um manso lago azul, fazíamos amor, é óbvio, mas com o consentimento do momento e da ocasião, sem nos atropelarmos, sem os desatinos de então. Ela me levou pela primeira vez a conhecer seus pais, e eu fiz o mesmo. Num outro dia, fomos pela primeira vez para ela conhecer Aliel e seu esposo. Apesar de não querer demonstrar, Aliel se roeu de ciúme. Eu ria interiormente com a situação, no mínimo hilária, era ciúme fraterno. Descobri com o tempo que formávamos um quarteto, por isso resolvi casar com Ângela, para surpresa até mesmo minha. Foi uma decisão súbita. Eu estava dormindo quando no meio da noite despertei com aquela idéia me carcomendo o juízo. Eu estava prestes a terminar meu curso, as minhas funções iriam se intensificar e eu precisava de um porto seguro para garantir o retorno do navio cansado da labuta. Por outro lado, aliel e Ernani eram tão felizes que a esperança de vir a tê-la quase inexistia. Além disso, Ângela havia mudado e nossos seres se completavam. Pela madrugada consegui dormir, mas logo acordei despertado dessa vez pelas palavras do Wellington sobre alguém que queria me fazer sofrer e me veio à memória o que ela me fizera no passado, entretanto a idéia de sua metamorfose reforçava a decisão, e dormi convicto do que deveria fazer. Na manhã seguinte comuniquei aos meus pais que resolvera me unir em matrimônio com Ângela. Eles não acharam problema nenhum, principalmente depois de eu explicar que, mesmo tendo o vírus da AIDS, Ela poderia perfeitamente ter filhos, sem transmiti o HIV para o bebê. No final de semana oficializamos o noivado num almoço na casa de Aliel, que no fundo não escondia que estava sendo picada pelo mosquito do ciúme.
Dois meses depois estávamos casados e felizes. Pouco tempo depois, num passeio à praia, Aliel nos contou que estava grávida e que teria um bebê para dali a oito meses. No domingo seguinte foi a vez de Ângela revelar o que já suspeitávamos, também seríamos pais. É uma sensação singular esta de ser pai, poder transmitir seu ser a uma criança que vai nascer. Para nós quatro, esse sentido era maior porque ficávamos pensando quem encarnaria em nossos filhos, que espírito estava na fila para renascer um nosso rebento? Entre os cuidados que tinha com um paciente e outro, ficava pensando naquela criaturinha que se formava, como seriam seus traços físicos; como será seu gênio, tranqüilo, enfezado, tímido, extrovertido. Foi com grande expectativa que recebemos o resultado dos exames, e para nossa alegria o feto não era soropositivo.
Os bebês nasceram na mesma semana. Aliel dera à luz um lindo menino, e Ângela, uma espetacular menina. Conforme já estava combinado, nossa filha chamou-se Leila, Aliel de trás pra frente, e o filho de Aliel chamou-se Nadiel, anagrama de meu nome. Durante o primeiro ano de vida de Leila e Nadiel, éramos as seis pessoas mais felizes do universo. Encontrávamos, sempre que podíamos, em praças, clubes e ambientes afins. Quando estava de plantão ou quando o hospital requeria minha presença mais constante, Ângela ficava com Aliel, e assim nossos filhos cresciam unidos, irmanados pelo afeto que nos unia. Ângela dera uma ótima mãe, melhor do que eu poderia imaginar, atenciosa, carinhosa, prestativa. Não havia ressonar da Leila mais forte que ela não despertasse e fosse ninar a filha, eu estava feliz por tê-la encontrado naquele dia, no leito do hospital. Ernani também se mostrava bastante feliz pela situação, tornara-se amigo de Ângela, e eu ficava enternecido quando ia buscá-la juntamente com a nossa filha e encontrava os dois, ela e Ernani, conversando na sala, ou compenetrados numa partida de xadrez. Muita vez, Aliel dormia enquanto essas cenas ocorriam. Éramos, pois, felizes...
CAPÍTULO XIX
“De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.”
(Vinícius de Morais)
... Até o dia e que o mastro onde tremulava a flâmula de nossa felicidade ruiu sobre nossas cabeças, para assombro dos sobreviventes. Era meia noite de sábado e eu estava de plantão. Nesse dia os corredores pareciam mais lúgubres do que o costumeiro, o sofrimento daquelas criaturas me causava um calafrio inexplicável. Eu andava pelos corredores ouvindo-lhes a tosse ou os gemidos que se misturavam num lamento triste. Quando o bip chamou. Era aliel. Fui até o telefone mais próximo e liguei, apreensivo, pensando ter havido algo com Leila. Aliel chorava e pedia desesperadamente que fosse ao seu encontro. Os soluços não lhe permitiam palavras elucidativas, e eu, após chamar um amigo para me substituir, chispei para lá. No caminho minha cabeça girava e eu imaginava as mais diversas situações que poderiam ter ocorrido para aquele desespero de Aliel, mas jamais atinaria com a verdade. Chegando lá, encontrei-a do mesmo modo como estava ao telefone. Ela correu para mim, me abraçou e soluçando me disse:
─ Um acidente terrível com Ernani, vamos comigo. – Disse entre soluços!
─ Claro! – disse eu – vamos logo! – e pegue o telefone para ligar para Ângela, e fiquei surpreso por ela não estar. Quem atendeu foi Marlene, nossa diarista, que me dissera que Ângela lhe havia pedido para ficar com Leila. Outrossim, liguei para o IJF para saber se alguém já havia ido ao local de algum acidente na BR. A resposta foi afirmativa. E eu saí com aliel para o local do sinistro um pouco mais tranqüilo, pois se havia socorro era porque havia alguém para ser socorrido.
O local estava já cercado por policiais e equipes de reportagem. Nós nos identificamos e fomos liberados para ver a cena de perto. O carro do psicólogo estava totalmente destroçado. Os bombeiros tentavam a custo retirar as vítimas, duas, um homem, Ernani e uma mulher, cujos rosto estava coberto pelas ferragens. A escuridão também contribuía para que não identificássemos a companheira de Ernani. Aliel abraçada a mim, não chorava, apenas soluçava de vez em quando. Conversando com os policiais, ficamos sabendo que um caminhão, que se encontrava a alguns metros dali, havia avançado a contramão. Continuamos esperando apreensivos enquanto o local transformou-se num inferno de carros e curiosos. O socorro já chegara há algum tempo, mas não podia agir enquanto as vítimas não fossem retiradas dos destroços. Em pouco tempo alguém nos chamou, era o médico do socorro: “Infelizmente não foi possível salvá-los” Falou enquanto tirava as luvas e as atirava longe como um lutador que joga a toalha após a derrota. Foi quando finalmente pudemos ver os rostos dos corpos exânime: Ernani e Ângela haviam morrido abraçados sob as ferragens do que antes havia sido um automóvel de passeio. O choque para mim não fora menos cruel do que o fora para Aliel. Não compreendíamos o que estava acontecendo, se uma bomba estourasse próximo a nós não causaria tanto espanto, como foi o causado naquele momento por aquela surpresa. Aliel desmaiou nos meus braços, e tive de levá-la para casa. Chamei seus pais e, mesmo abalado, tive de fazer um esforço sobre-humano para me controlar. Sempre achei que as pessoas têm todo o tempo do mundo para se rasgarem, arrancar os cabelos ou bater com a cabeça na parede, menos quando precisam ter calma. Fui para casa ver como estava minha filha, tomei um banho, troquei a roupa e fui cuidar da burocracia que compete aos vivos para dar termo aos mortos.
O dia seguinte foi o mais longo de toda minha existência. O velório se realizou na igreja do cemitério Parque da Paz. Mesmo havendo profundo sofrimento envolvido no caso, não houve quem se opusesse a realização dos enterros no mesmo horário e lugar, a missa também foi uma só. Coincidentemente havia naquele domingo muitos enterros a se realizarem ali, o cemitério fervilhava de familiares de finados, parecia que era o dia dos mortos. Aliel estava abraçada a mim. Já não soluçava. Vez por outra me olha e fazia um gesto com a boca de quem pedia desculpas pelo ocorrido. Estávamos assim, quando senti uma sensação estranha, quase caí. Um amigo médico se aproximou, perguntou se eu estava passando bem, ao que eu disse:
─ Sim, estou bem. – e pedi – fique aqui com aliel, que vou tomar uma água.
Quando me dirigia para fora, pensando que o meu mal-estar era provocado pelo aglomerado, pois sempre tive um pouco de claustrofobia, desmaiei. Súbito vi quando as pessoas correram para mim, vi também Aliel desesperada. Meu amigo médico levou-me imediatamente para uma sala. Tudo sumiu. Ao redor de mim, vi Ângela, Ernani e vários outros recém desencarnados. Ernani estava abstraído, distante, perdido, dir-se-ia numa atitude quase resignada. Sua áurea demonstrava arrependimento. Ângela ao seu lado, falava palavras ensandecidas, gritava que sua fraqueza era não ter amor, pois se amasse a esposa não teria caído em sua armadilha e ria, sua áurea era negra, obscurecida por um gênio ruim, cujo imo era difícil de se atingir. Quando me viu, arreganhou os dentes e me perguntou:
─ Que foi? Já vieste te juntar a nós? Ou vieste apenas me agradecer pelo que te fiz? Vai, volta logo para os braços de Aliel. O caminho agora está livre e graças a mim. – falou com uma fala que me lembrou Almerinda, com um sarcasmo irritante.
─ Cala boca, seu espírito apodrecido, você não tem o direito de se reportar aos sublimes – gritei eu – você não se envergonha de, vida após vida, a única coisa que faz é seguir seus instintos, eu sempre soube o que realmente lhe dá prazer: é ver a vida das pessoas destruída.
Nesse momento ela se aproximou de mim, fez um muxoxo de quem está arrependida e me falou baixinho:
─ Mas o caminho agora está livre, meu bem, – repetiu – volte logo para os braços de sua Aliel, antes que nos venham buscar. Ou você pensa que eu nunca soube de sua história com ela, hem!? Aquele bobão me contou tudo. – e apontou para Ernani, que estava muito distante.
Eu a afastei de mim com força, e ela gargalhou sonoramente, fez um desdém e foi ter com os outros que estavam mais afastados e lá ficou fazendo terror sobre o que os esperava. Aproximei-me de Ernani, ele me fitou e me pediu desculpas, em seguida falou:
─ Durante toda minha existência eu me pautei a ser um homem digno, honesto, fiel. E o fui até o dia em que essa coisa ruim – e apontou para Ângela – entrou na minha casa e começou a me torturar. Eu devia ter resistido, pois é impossível uma pessoa ser tão dissimulada. Na frente de vocês, sua e de Aliel, era um anjo, seu olhar para mim era quase fraterno. No entanto, quando vocês não estavam, havia lascívia em seus olhos, luxúria em seus trejeitos, mel em suas palavras Quando dei por mim estava vivendo o céu em vida. Agora estou vivendo o inferno na morte. – e me pediu novamente desculpas e se afastou para o seu limbo.
Nesse momento todos os espíritos saíram para o campo verde, salpicado de branco da cal dos jazigos. Alguns choravam, lamentavam-se por abandonar a vida, outros como Ernani, pareciam estar num profundo estado de resignação. Sob toldos brancos abriram-se covas, as de Ernani e Ângela postaram uma ao lado da outra. Eu vi Aliel amparada pela mãe, enquanto os pais de Ângela ficavam a alguns passos atrás. Foi em silêncio, que os corpos desceram ao leito derradeiro. Alguns espíritos gritavam quando a luz chegou para levá-los, outros apenas baixaram a cabeça, Ângela ria alto, escandaloso. E eu assisti a tudo entristecido por ela. Quando nos encontraremos de novo? Terá ela tirado dessa sua estada aqui na terra alguma lição de fato para sua evolução? Infelizmente, assim como há pessoas, espíritos reticentes, é claro, também os há.
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