quarta-feira, 3 de junho de 2009

CAPÍTULO XX
“Todo vale será aterrado, e nivelado todos os montes e outeiros; os caminhos tortuosos serão retificados, e os escabrosos, aplanados.”
(Lucas: 3 – 5)

Quando despertei desse transe, estava na enfermaria do cemitério. Ao meu lado, Aliel, vestida de preto, me sorria e com seu habitual jeito brejeiro me falou:
─ Pensei que você também ia me deixar.
Depois de alguns minutos, mais recuperado, contei a ela o que havia ocorrido, ao que ela, meneando a cabeça, disse:
─ Imaginei que houvesse sido isso mesmo, é tanto que, por incrível que pareça, fui eu que acalmei os demais sobre seu estado.
Sua voz era pausada, calma. Soava como se tivesse além de palavras um enorme sentimento de revolta contra o destino, contra tudo que conspirava para que sua existência não fosse normal. Desde quando ela tivera direito a um tempo longo de descanso espiritual, de serenidade, para realmente edificar seu ser. Em quantas de suas mais de cinqüenta vidas estivera plena? Que lhe lembrasse nenhuma. Será que alguém o seria, seria possível aqui na terra, com todas as suas contradições, alguém atingir essa plenitude? Talvez pensasse também em mim, em minha desventura. Pois não éramos os dois desventurados? No entanto não estava o destino conspirando para que ficássemos juntos? Mas Será que se deveria agradecer a esse Senhor tão onipotente por decidir sobre os caminhos de seres tão frágeis, assim de forma tão desgraçada? O certo é que deveríamos nos conformar com Ele. Enquanto ela passava a mão em meus cabelos, uma lágrima caiu sobre mim, e nela pude ler mais interrogações que vinham de sua alma angustiada: “e se ele queria realmente nos juntar, e para tanto abrira uma ferida tão grande no peito de muita gente, pois nem nós nem nossas famílias seriamos os mesmos depois do que ocorrera, nossos filhos um dia saberiam o que havia acontecido de fato, e o que pensariam, não seria esse esforço para nos unir apenas mais uma de suas armadilhas urdida para depois nos destruir novamente, física e moralmente, como o fomos agora?”
Nossas vidas aos poucos ganharam novos rumos, ganharam uma nova rotina. Agora eu era pai e mãe de Leila. Enquanto me desdobrava em cuidados para com meus pacientes, pensava em várias formas de educá-la, dar a ela o carinho de mãe. Ah! Como ela sentia a falta da voz materna! Acordava durante a noite e, por mais que eu me esforçasse, não conseguia fazer com que parasse de chorar, às vezes ela adormecia de cansaço e eu ficava velando aquele ser tão carente do amor de mãe.
Para aliel a vida também não era fácil. Uma criatura que teve na infância a pena de ser torturada por imagens de outras vidas enquanto a mãe sempre censurando-a, certa de que ela era louca. Ela sentia agora um grande desespero pela perda do marido, que talvez tenha sido seu verdadeiro pai, porque soubera compreendê-la e reeducá-la. Naquele momento ela era uma mulher saudável, entretanto frágil e fragilizada. Nas vezes que fui visitá-la e levar sua afilhada para lhe pedir a bênção, encontrei os pais fazendo-lhe companhia. Havia, no entanto, certo desconforto entre ela e eles. Quando me via, A pobrezinha abria um sorriso de gratidão como se dissesse “obrigado por ter vindo, por me tirar desse constrangimento compulsório”. Em breve eles se iam e nós podíamos, às vezes em silêncio, confrontar nossas dores. Eu brincava com Nadiel, e Aliel se encantava com o riso espontâneo de Leila. Em outros momentos, deixávamos os dois brincando e nos dispúnhamos a uma partida de xadrez. Ficávamos a mirar as peças e a pensar em tudo que nos rodeava. Às vezes erguíamos os olhos um para o outro, como se quiséssemos dizer algo, mas as circunstâncias nos impediam. Outras vezes, íamos juntos ao centro espírita, depois a uma pizzaria ou coisa que o valha.
CAPÍTULO XXI
“Minha alma de sonhar-te anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois se tu és já toda minha vida!”
(Florbela Espanca)

Uma vez Aliel me surpreendeu. Era um sábado à tarde, eu estava atendendo um paciente quando a enfermeira me chamou para atender ao telefone. Apesar de o celular já ser quase moda, em 1997, nós médico éramos proibidos de usá-los dentro do hospital, como minha vida toda era dentro dele, eu nunca pensei sequer em comprar um. Só depois, pelos idos de 2002, é que a vida tornou-se impossível sem eles. Ao atender ao telefone, surpreendi-me com a voz de Aliel do outro lado da linha. Ela, com sua voz jovial, me perguntou se eu não queria dançar. A princípio eu não entendi, estava meio atônito. E ela percebendo meu embaraço, tratou de explicar:
─ Olha, eu tomei a liberdade de vir à sua casa e liberar a Marlene durante o dia para que ela venha à noite, pra gente sair um pouco. Ou você não quer?
Pensei um pouco, ainda surpreso com suas palavras. Naquele momento imaginei Aliel tomando conta das duas crianças. A casa devia estar uma bagunça só. Tive ímpetos de correr para casa para presenciar aquela cena, mas me contive. Como me demorei em responder, ela brincou:
─ Alô! Tem alguém aí? – ao que eu respondi:
─ Sim, claro, é que você me pegou de surpresa. Quando terminar o expediente eu vou para casa e a gente resolve.
─ Certo, mas eu quero dançar. Ouviu? – respondeu ela.
O restante da tarde se arrastou a passos de tartaruga, enquanto eu imaginava a cena pela qual eu esperava, mesmo que fosse de brincadeirinha. De súbito tive remorso daquelas idéias, mas algo mais forte do que eu me dizia “deixa de ser tolo, se o destino assim quis, que assim seja”. E me lembrei de uma frase lida ou ouvida em algum lugar: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando precisam acontecer.” Repassei como num filme todo o meu passado, refleti sobre o de Aliel e concluí que não devemos ter medo de ser felizes, pelo menos por alguns instantes. Essa é a eternidade de que nos fala o poeta Vinícius de Morais: “Mas que seja infinito enquanto dure!” Era isso! O que eu realmente tinha medo era de sofrer mais uma vez, eu tinha medo da desilusão. Ademais eu nunca tive certeza dos sentimentos de Aliel, por isso temia um golpe mais forte. De repente as idéias me vieram cristalinas como as águas de uma lagoa azul: “vamos agir de forma espontânea, sem forçar o momento, deixar que nossos seres se encontrem de fato”. Pensando nisso, balancei a cabeça para espantar as minhocas que se enrolavam em meu cérebro e fui atender a um paciente.
Quando cheguei a casa, encontrei uma cena merecedora de um quadro. as crianças batiam palmas compassadamente ao som de uma música infantil cantada por Aliel que as rodeava, fazendo os movimentos que eram imitados por elas. Ao lado Marlene se deleitava, com a cena, formando o pano de fundo do quadro uma desarrumação completa: livros de histórias infantis pelo chão, papéis rasgados, tesouras, tubo de cola derramando o líquido pelo chão. A única coisa que estava organizada era a cabeça das crianças. Aliel estava suada com toda aquela trabalheira. Difícil foi fazer com que os pequenos lhe deixassem sair para tomar banho. Reclamavam a toda hora que queriam dançar, bater palmas, mas devido o adiantado da hora e a prática da Marlene eles se renderam ao cansaço e dormiram, ambos no sofá, tomando a mamadeira.
Quando por fim aquela bagunça saiu de minha retina, fui-me aprontar. Aliel demorou uma hora e meia para fazê-lo, enquanto eu tentava distrair a impaciência folheando sem ver uma e outra revista. Finalmente pudemos sair. Estava uma noite linda. A lua branca parecia nos premiar com sua luz imensa e amarela. Eu respirei o ar da noite, mirei as estrelas. Como é bela a noite! Infelizmente devido ao corre-corre do dia não vemos a noite, só sua negritude; assim como não admiramos o dia, só sentimos a luz e o calor do sol. As pessoas seriam, com certeza, melhores e bem mais felizes se vivessem mais o sol e menos o dia; a lua e a noite, menos a escuridão. Eu estava feliz, e Aliel possuía um sorriso de menino que acabou de inventar uma brincadeira, mas que não pode contar para os colegas.
Fomos à Praia de Iracema (Ah! que saudades!), depois a um restaurante para jantar. Por fim realizamos o desejo de minha companheira: dançamos. Fomos a um bar-restaurante e lá ficamos por muito tempo, nossos corpos se confrangeram e por toda a noite dançamos como se nunca tivéssemos feito outra coisa na vida. Embalado pela música e pelo perfume de Aliel não vi o tempo passar. Durante todo esse tempo, não falamos senão alguns monossílabos. Era que não havia necessidade, a música falava por nós, enquanto nossos corpos e nossas almas respondiam à altura. Até que em determinado momento eu a beijei. E ficamos assim, por um tempo que os relógios não marcam. O cheiro da boca de Aliel se confundiu com a maresia e com o cheiro de Ranjicniami: foi o beijo de uma eternidade.
Já era madrugada quando saímos do bar, mas aliel não estava satisfeita. Queria ver o nascer do sol. Voltamos para a praia e lá ficamos esperando o sol surgir com toda sua magnitude apolínea. Aliel dormiu no meu colo e não viu o espetáculo de Hélio. Eu assistia a tudo quando de súbito me vi em uma outra época bem remota. Eu era um menininho negro e estava aguardando o mesmo espetáculo do Sol, quando passou por mim um grupo de homens vestidos de lorica, trazendo à cabeça um elmo e na mão uma lança. Próximo ao líder do grupo, um indivíduo de pele curtida trajando uniforme civil, dizia algo como “dar-lhe-ei um beijo no rosto e vocês o reconhecerão”. Os olhos dele brilhavam, preso à sua cintura estava um saquinho de onde, com o movimento rápido dos pés por entre o chão pedregoso, tilintavam umas moedas que lá estavam. O homem ao seu lado ainda perguntou: “Tens certeza de que ele reagirá?” ao que ele respondeu: “Ele não deixará que o levem a termo.” O sol naquele momento nascia, mas sua luz era opaca, triste. Aliel como uma borboleta espanejou em meus braços. Eu acordei. Estivera dormindo? Aliel também despertou de seu sono e reclamou por eu não tê-la acordado para ver o nascer do sol. Fomos tomar café numa merendeira que já abrira suas portas. Depois fomos para casa. Naquele dia eu tinha plantão a partir de uma da tarde, por isso dormi feito uma pedra. Quando acordei, Aliel já tinha ido para casa, entretive-me um pouco brincando com Leila e fui para o hospital, onde me esperava uma legião de enfermos, para quem deveria dedicar toda a minha atenção.

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