domingo, 27 de janeiro de 2013

FALTA INJUSTIFICADA




               Chamava-se Anacleto e, como seu nome, era uma pessoa simples, conservadora. Dir-se-ia cumpridor dos direitos e deveres. No trabalho era infaltável, inchegável atrasado. Mas não criticava seus companheiros, quando o faziam. Tinha dó. Coitados, sempre que precisavam faltar ao trabalho ou chegavam atrasados, era devido a uma quase tragédia. Era a mãe ou um pai que passava dessa para uma melhor, um acidente com o filho pequeno, um desentendimento sério entre familiares. Quando isso ocorria, Anacleto não deixava de perscrutar discretamente o chefe retirar da gaveta um carimbo, que, depois de passar na almofada, pressionava contra o cartão de ponto: FALTA JUSTIFICADA. O mesmo carimbo servia para os atrasos, nesse caso, o funcionário não batia o ponto na saída.
               E foi num dia desses comuns, que Anacleto não compareceu ao trabalho pela manhã. Os colegas e o chefe já calculavam o tamanho da tragédia. Telefonaram pra sua residência, mas ninguém atendeu. Celular não tinha, pois esta história se passou na época em que esse instrumento ainda não havia sido difundido. Quando Anacleto chegou à tarde com um grande sorriso nos lábios e um ar de felicidade de fazer inveja, o patrão o olhou com certa desconfiança e o chamou-o ao birô, (Ah, nessa época ainda havia birôs. ) como sempre fazia. Inquerido por palavras e expressões faciais, certo de que seria perdoado e sua falta justificada, contou ao chefe o que ocorrera:
               — Pois é chefe. O Sr. Me desculpe pela falta de hoje de manhã, mas é que houve algo muito bom que me fez chegar tão atrasado. Quando vinha para cá, hoje pela manhã no horário de sempre, depois de tomar um cafezinho no bar de seu Ayrton, a pé mesmo já que o médico recomendou caminhada, mas como não tenho tempo, sempre venho caminhando. Pois bem, quando ia passando pela pracinha, deparei-me com Ana Amélia. O senhor precisava ter visto ela, como está linda, mais ainda que quando éramos jovens. Ela me abriu os lábios num sorriso bonito, com seus dentes branquíssimos, que mais pareciam ter saído de uma dessas propagandas enganosas de pasta de dente. Sentamo-nos no banquinho da praça e ficamos fitando um ao outro. Não dissemos nada, nossos olhos estavam observando nossas lembranças, os nossos lábios saboreando ainda o último beijo. Não discutimos o porquê de nossa separação, não nos ensaboamos  na água com que se lavam roupas sujas. O destino é simples, mas engenheiro. Não devemos discuti-lo. Só tempos depois, chefe, é que falamos, lembramos os nossos segredos, sorrimos nossa infância, balançamo-nos no trapézio feliz de nosso namoro. Ah, os versos, que dedicávamos um ao outro! Havia um que era assim, eu adorava dizer para ela e ela amava ouvi-los de mim:
                                            “Quando um dia eu for teu e fores minha,
                                            O nosso amor conceberá o mundo
                                            E de teu ventre nascerão deuses!”
Ah, chefe, o Sr. Não imagina como essa manhã foi maravilhosa, como foi bom rever Ana Amélia. O Senhor deve estar se perguntando por que não ficamos juntos, mas isso não interessa. O que interessa é que nos conhecemos na adolescência e nos encontramos hoje. Ela está casada, há muito tempo, eu também, mas isso também pouco importa...
               Guiados pelo tom das palavras de Anacleto, alguns funcionários  formavam um pequeno grupo de curiosos, sorvendo suas palavras como um bálsamos para seus sofrimentos e até sentiam um pouco de inveja. Chegaram mesmo a suspirar quando perceberam que um uma lágrima atrevida pousava de leve no sorriso do colega. Anacleto findou suas palavras da mesma forma como as tinha iniciado, com um sorriso de felicidade e um olhar perdido no passado.
               O chefe ouviu atentamente a justificativa de Anacleto. Abriu a gaveta retirou dela o carimbo e pressionou contra o cartão de ponto do romântico faltoso:
FALTA INJUSTIFICADA!
(Professor Alves, 01-2013)

Um comentário:

Unknown disse...

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