(Crônica incidental)
Era
natal, ano novo ou qualquer outra data, mesmo as menos especiais, lá estava ele
com seu sorriso a tiracolo e a bolsa sempre recheada. Os amigos, todos o
rodeavam e as amigas o amavam. E não eram poucas. Esses momentos se
multiplicavam, entre doses de uísque ou cervejas importadas, não importava, o
importante era beber se divertir e comer. O trabalho era diversão, a toda hora
era visto de prancheta nas mãos e caneta nos lábios, reflexivo. Em casa os
filhos tinham conforto, a esposa, vivia confortavelmente, o único desconforto
eram as línguas da maledicência. Não se importava. Por que o faria, se tudo
estava bem, e ele sempre regressava para os braços de seu perdão? E a vida
seguia. Antes fora menino estudioso, as notas altas em Matemática o
credenciaram a também ser o mestre das meninas, as mais bonitas, as mais
fúteis. Formado, logrou ser o primeiro da turma, mas não havia concorrência,
havia colegas de trabalho. Era, portanto, feliz, e assim era a sua vida, sua
comédia.
Certo
dia, era outubro, e ele fez aniversário, deixou para trás a curva da segurança,
entrou num tempo em que tudo é frágil. E o que era apenas brincadeira se tornou
avassalador. Era a paixão que finalmente o arrebatava, ficou cego, de tanto
vê-la e querer ser visto por ela, a clareza de visão da realidade, as
animações, os boleros foram descartados. As amigas sentiram a troca, se
afastaram, já não lhe tinham a atenção. Os filhos e a companheira foram
desprezados. Que sentimento era aquele, que lhe obnubilara a razão, que o
transformara tão radicalmente. Agora ele vivia por ela, para ela, dela. Que não
era dele. O outro, enciumado pela iminência da perda, foi às vias de fato. Um
tiro resolveria tudo. Não resolveu. Mas o entrevou-o uma cama, sem visitas, sem
amigos, sem amigas e sem ela. O pouco de dinheiro que lhe restara, os remédios
o consumiram, vorazmente, como os ratos de Dionélio. Sem hospital, sem médicos,
restou-lhe a indigência. A casa agora era um quarto, a cama, sempre tão confortável,
era umas palhas, os alegres companheiros agora era um cão vira-latas que o
vinha visitar de quando em vez. As lágrimas, somente elas, eram abundantes
quando lembrava dos momentos de outrora. Compreendeu o sentido de sua comédia
humana, não dava pra rir, mas era assim sua humana comédia.
Mas
o destino nos mostra o caminho. E, assim, cada anel daquele inferno transposto
era uma luz que se abria na sua realidade, na sua consciência. A lembrança dos
banquetes, das risadas dos que lhe rodeavam pela anedota mais sem graça, das
orgias regadas a bebida farta o entristecia, entretanto aclaravam sua atual
visão das coisas, apesar de quase cego. A cada dia os efeitos dos remédios
dados pelo Estado iam-lhe molestando mais e mais o já debilitado organismo.
Enquanto as migalhas negadas aos necessitados, às crianças, aos mendigos o
convertiam paulatinamente numa pessoa, se não melhor, mas cônscia da lei da
ação e reação. E a aceitação daquela nova situação o deixava sóbrio. Abriu-lhe
os olhos, e fê-lo perceber que mesmo a solidão, sua companheira inseparável,
era uma mera ilusão, como tudo sempre fora. Dessa forma, o que de início era
assombroso, aterrador, agora era aprendizado. Não procurou ninguém, perdoou-se
e foi perdoado. E, no momento em que o rompeu-se a fibra que o enlaçava àquela
dor vivente, ninguém veio chorar, nem ele o queria. Aos restos, a prefeitura se
encarregou de dar termo. Do outro lado, não foi molestado, nem molestou. Já
recuperado, refeito, buscou os seus para preparar uma nova experiência na
carne. E nesse momento, compreendeu a comédia divina. Fora assim sua divina
comédia humana.
(Alves Andrade, janeiro de 2019)
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