Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite
misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e
diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas
Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica!
Soturna! Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto,
acabado, perdido nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite
meditativa! Fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das
tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas paradisíacas,
dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas
auréolas tenebrosas, a eloquência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade
misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdos soluços que
rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores
Silêncios! Uma tristeza fina e incoercível errava
nos tons violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso ainda nos
vermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me nos olhos, quente, inflamada, na
linha longe dos horizontes em largas faixas rutilantes.O fulvo e voluptuoso Rajá celeste
derramara além os fugitivos esplendores da sua magnificência astral e
rendilhara d’alto e de leve as nuvens da delicadeza arquitetural, decorativa,
dos estilos manuelinos.Mas as ardentes formas da luz pouco a
pouco quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos, destacados, mais
agora flagrantemente crepusculavam a tarde, que expirava anelante, num anseio
indefinido, vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto sonho...E, descidas, afinal, as névoas, as
sombras claustrais da noite, tímidas e vagarosas Estrelas começavam a
desabrochar florescentemente, numa tonalidade peregrina e nebulosa de brancas e
erradias fadas de Lendas...Era aquela, assim religiosa e enevoada, a
hora eterna, a hora infinita da Esperança...Eu ficara a contemplar, como que
sonambulizado, como o espírito indeciso e febricitante dos que esperam, a
avalanche de impressões e de sentimentos que se acumulavam em mim à proporção
que a noite chegava com o séquito radiante e real das fabulosas Estrelas.Recordações, desejos,
sensações, alegrias, saudades, triunfos, passavam-me na Imaginação como
relâmpagos sagrados e cintilantes do esplendor litúrgico de pálios e viáticos,
de casulas e dalmáticas fulgurantes, de tochas acesas e fumosas, de turíbulos
cinzelados, numa procissão lenta, pomposa, em aparatos cerimoniais, de Corpus
Christi, ao fundo longínquo de uma província sugestiva e serena, pitorescamente
aureolada por mares cantantes. Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a
melopéia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos deixados para
trás na arrebatada confusão do mundo.Certos lados curiosos, expressivos e
tocantes do Sentimento, que a lembrança venera e santifica; lados virgens, de
majestade significativa, parecia-me surgirem do suntuoso fundo estrelado
daquela noite larga, da amplidão saudosa daqueles céus...Desdobrava-se o vasto silforama opulento
de uma vida inteira, circulada de acidentes, de longos lances tempestuosos, de
desolamentos, de palpitações ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos
fogos de cem cidades tenebrosas de tumulto e de pasmo...Era como que todo o branco idílio místico
da adolescência, que de um tufo claro de nuvens, em Imagens e Visões do
Desconhecido, caminhava para mim, leve, etéreo, através das imutáveis formas.Ou, então, massas cerradas, compactas, de
harmonias wagnerianas, que cresciam, cresciam, subiam em gritos, em convulsões,
em alaridos nervosos, em estrépitos nervosos, em sonoridades nervosas, em
dilaceramentos nervosos, em catadupas vertiginosas de vibrações, ecoando longe
e alastrando tudo, por entre a delicada alma sutil dos ritmos religiosos,
alados, procurando a serenidade dos Astros...As Estrelas, d’alto,
claras, pareciam cautelosamente escutar e sentir, com os caprichos de
relicários inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas intenso, a
abstrata função mental que estava naquela hora se operando dentro em mim, como
um fenômeno de aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando chamas
mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.Ah! aquela hora era bem a hora infinita
da Esperança!De que subterrâneos viera eu já, de que
torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um
século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração
lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas:
Esperar! Esperar! Esperar!Porque estradas caminhei, monge hirto das
desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha,
formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos
ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar!
Esperar!Por isso é que essa hora sugestiva era
para mim então a hora da Esperança, que evocava tudo quanto eu sonhara e se
desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo... Tudo quanto eu mais eloquentemente
amara com o delírio e a fé suprema de solenes assinalamentos e vitórias.Mas as grandes ironias trágicas
germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas e deprecações inquisitoriais
cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo, caíram martirizantes sobre a
minha cabeça, implacáveis como a peste.Então, à beira de caóticos, sinistros
despenhadeiros, como outrora o doce e arcangélico Deus Negro, o trimegisto, de
cornos agrogalhardos, de fagulhantes, estriadas asas enigmáticas, idealmente
meditando a Culpa imeditável; então, perdido, arrebatado dentre essas mágicas e
poderosas correntes de elementos antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a
influência de desconhecidos e venenosos filtros, a minha vida ficou como a
longa, muito longa véspera de um dia desejado, anelado, ansiosamente,
inquietamente desejado, procurado através do deserto dos tempos, com angústia,
com agonia, com esquisita e doentia nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!Fiquei como a alma velada de um cego onde
os tormentos e os flagelos amargamente vegetam como cardos hirtos. De um cego
onde parece que vaporosamente dormem certos sentimentos que só com a palpitante
vertigem, só com a febre matinal da luz clara dos olhos acordariam; sentimentos
que dormem ou que não chegaram jamais a nascer porque a densa e amortalhante
cegueira como que apagou para sempre toda a claridade serena, toda a chama
original que os poderia fecundar e fazer florir na alma...Elevando o Espírito a amplidões
inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual ao
cego, fui sombra, fui sombra!Como os martirizados de outros Gólgotas
mais amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha, através de urzes
eriçadas, e de brenhas, como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos,
mais tristes.De outros Gólgotas
mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto sombrio, tetro, extra-humano! —
a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue,
as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo
sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao
rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade,
transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos Destinos!...E, abrindo e erguendo em vão os braços
desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo
em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da
Judéia encontravam para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando,
caminhando, sempre com um nome estranho convulsamente murmurado nos lábios, um
nome augusto que eu encontrara não sei em que Mistério, não sei em que
prodígios de Investigação e de Pensamento
profundo: — o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e
mirtos e palmas verdes e hosanas, por entre constelações.Mas, foi apenas bastante todo esse
movimento interior que pouco a pouco me abalava, foi apenas bastante que eu
consagrasse a vida mais fecundada, mais ensanguentada que tenho, que desse
todos os meus mais íntimos, mais recônditos carinhos, todo o meu amor ingênito,
toda a legitimidade do meu sentir a essa translúcida Monja de luar e sol, a
essa incoercível Aparição, bastou tão pouco para que logo se levantassem todas
as paixões da terra, tumultuosas como florestas cerradas, proclamando por
brutas, titânicas trombetas de bronze, o meu nefando Crime.Foi bastante pairar mais alto, na
obscuridade tranquila, na consoladora e doce paragem das Ideias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas,
as Teorias, os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e
severas.Eu trazia, como cadáveres que me andassem
funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável
apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada
morta, quanta raça d’África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para
sempre com o riso haeckeliano e papal!Surgido de bárbaros, tinha de domar
outros mais bárbaros ainda, cujas plumagens de aborígene alacremente flutuavam
através dos estilos.Era mister romper o Espaço toldado de
brumas, rasgar as espessuras, as densas argumentações e saberes, desdenhar os
juízos altos, por decreto e por lei, e, enfim, surgir...Era mister rir com serenidade e afinal
com tédio dessa celulazinha bitolar que irrompe por toda a parte, salta,
fecunda, alastra, explode, transborda e se propaga.Era mister respirar a grandes haustos na
Natureza, desafogar o peito das opressões ambientes, agitar desassombradamente
a cabeça diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito.Era mister que me deixassem ao menos ser
livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal,
imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e
desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força impetuosa
e indomável da Vontade.O temperamento que rugia, bramava dentro
de mim, esse, que se operasse: — precisava, pois, tratados, largos in-fólios,
toda a biblioteca da famosa Alexandria, uma Babel e Babilônia de aplicações
científicas e de textos latinos, para sarar...Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio
admirável, cheio de sensações imprevistas, de curiosidades estéticas muito
lindas e muito finas — um compêndio de geometria!O temperamento entortava muito para o
lado da África: — era necessário fazê-lo endireitar inteiramente para o lado
Regra, até que o temperamento regulasse certo como um termômetro!Ah! incomparável espírito das estreitezas
humanas, como és secularmente divino!As civilizações, as raças, os povos digladiam-se
e morrem minados pela fatal degenerescência do sangue, despedaçados,
aniquilados no pavoroso túnel da Vida, sentindo o horror sufocante das supremas
asfixias.Um veneno corrosivo atravessa, circula
vertiginosamente os poros dessa deblaterante humanidade que se veste e triunfa
com as púrpuras quentes e funestas das guerra!Povos e povos, no mesmo fatal e
instintivo movimento da conservação e propagação da espécie, frivolamente lutam
e proliferam diante da Morte, no ardor dos conúbios secretos e das batalhas
obscuras, do frenesi genital, animal, de perpetuarem as seivas, de eternizarem
os germens.Mas, por sobre toda essa vertigem humana,
sobre tanta monstruosa miséria, rodando, rodomoinhando, lá e além, na vastidão
funda do Mundo, alguma cousa da essência maravilhosa da Luz paira e se
perpetua, fecundando e inflamando os séculos com o amor indelével da Forma.É do sabor prodigioso dessa essência,
vinda de bem remotas origens, que raros Assinalados experimentam, envoltos numa
atmosfera de eterificações, de visualidades inauditas, de surpreendentes
abstrações e brilhos, radiando nas correntes e forças da Natureza, vivendo nos
fenômenos vagos de que a Natureza se compõe, nos fantasmas dispersos que
circulam e erram nos seus esplendores e nas suas trevas, conciliados
supremamente com a Natureza.E, então, os temperamentos que surgissem,
que viessem, limpos de mancha, de mácula, puramente lavados para as extremas
perfectibilidades, virgens, sãos e impetuosos para as extremas fecundações, com
a virtude eloquente de trazerem, ainda sangradas, frescas, úmidas das terras
germinais do Idealismo, as raízes vivas e profundas, os germens legítimos,
ingênitos, do Sentimento.Os temperamentos que surgissem: — podiam
ser simples, mas que essa simplicidade acusasse também complexidade, como as
claras Ilíadas que os rios cantam. Mas igualmente podiam ser complexos,
trazendo as inéditas manifestações do Indefinido, e intensos, intensos sempre,
sintéticos e abstratos, tendo esses inexprimíveis segredos que vagam na luz, no
ar, no som, no aroma, na cor e que só a visão delicada de um espírito artístico
assinala.Poderiam também parecer obscuros por
serem complexos, mas ao mesmo tempo serem claros nessa obscuridade por serem
lógicos, naturais, fáceis, de uma espontaneidade sincera, verdadeira e livre na
enunciação de sentimentos e pensamentos, da concepção e da forma, obedecendo
tudo a uma grande harmonia essencial de linhas sempre determinativas da índole,
da feição geral de cada organização.Os lados mais carregados, mais fundamente
cavados dos temperamentos sangrentos, fecundados em origens novas e de
excepcionalidades não seriam para complicar e enturvecer mais as respectivas
psicologias; mas apenas para torná-las claras, claras, para dar, simplesmente,
com a máxima eloquência, dessas próprias psicologias, toda a evidência, toda a
intensidade, todo o absurdo e nebuloso Sonho...Dominariam assim, venceriam assim, esses
Sonhadores, os reservados, eleitos e melancólicos Reinados do Ideal, apenas,
unicamente por fatalidades impalpáveis, imprescritíveis, secretas, e não por
justaposições mecânicas de teorias e didatismos obsoletos.Os caracteres nervosos mais sutis, mais
finos, mais vaporosos, de cada temperamento, perder-se-iam, embora, na vaga
truculenta, pesada, da multidão inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu
lento ar parado e vazio, conduzindo em seu bojo a concupiscência bestial
enroscada como um sátiro, com a alma gasta, olhando molemente para tudo com os
seus dous pequeninos olhos gulosos de símio.Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria
e devoraria reconditamente todos esses Imaginativos dolentes, como se eles
fossem abençoada zona ideal, preciosa, guardando em sua profundidade o
orientalismo de um tesouro curioso, o relicário mágico do Imprevisto —
abençoada zona saudosa, plaga d’ouro sagrada, para sempre sepulcralmente
fechada ao sentimento herético, à bárbara profanação dos sacrílegos.Assim é que eu sonhara surgirem todas
essas aptidões, todas essas feições singulares, dolorosas, irrompendo de um
alto princípio fundamental distinto em certos traços breves, mas igual, uno,
perfeito e harmonioso nas grandes linhas gerais.Essa é que fora a lei secreta, que
escapara à percepção de filósofos e doutos, do verdadeiro temperamento, alheio
às orquestrações e aos incensos aclamatórios da turba profana, porém alheio por
causa, por sinceridade de penetração, por subjetivismo mental sentido à parte,
vivido à parte, — simples, obscuro, natural, — como se a humanidade não
existisse em torno e os nervos, a sensação, o pensamento tivessem latente
necessidade de gritar alto, de expandir e transfundir no espaço, vivamente, a
sua psicose atormentada.Assim é que eu via a
Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os sentidos,
vencendo-os, subjugando-os amplamente.Era uma força oculta, impulsiva, que
ganhara já a agudeza picante, acre, de um apetite estonteante e a fascinação
infernal, tóxica, de um fugitivo e deslumbrador pecado...Assim é que eu a compreendia em toda a
intimidade do meu ser, que eu a sentia em toda a minha emoção, em toda a
genuína expressão do meu Entendimento — e não uma espécie de iguaria agradável,
saborosa, que se devesse dar ao público em doses e no grau e qualidade que ele
exigisse, fosse esse público simplesmente um símbolo, um bonzo antigo,
taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o público A+B, cujo consenso a
Convenção em letras maiúsculas decretara.Afinal, em tese, todas as idéias em Arte
poderiam ser antipáticas, sem preconcebimentos a agradar, o que não quereriam
dizer que fossem más.No entanto, para que a Arte se revelasse
própria, era essencial que o temperamento se desprendesse de tudo, abrisse voos,
não ficasse nem continuativo nem restrito, dentro de vários moldes consagrados
que tomaram já a significação representativa de clichês oficiais e antiquados.Quanto a mim, originalmente foi
crescendo, alastrando o meu organismo, numa veemência e num ímpeto de vontade
que se manifesta, num dilúvio de emoção, esse fenômeno de temperamento que com
sutilezas e delicadezas de névoas alvorais vem surgindo e formando em nós os
maravilhosos encantamentos da Concepção.O Desconhecido me arrebatara e surpreendera
e eu fui para ele instintiva e intuitivamente arrastado, insensível então aos
atritos da frivolidade, indiferente, entediado por índole diante da filáucia
letrada, que não trazia a expressão viva, palpitante, da chama de uma
fisionomia, de um tipo afirmativamente eleito.Muitos diziam-se
rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa rebeldia e dessa
intransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas, as botas rotas
um dia. Intransigentes, por despeito, porque não conseguiam galgar as fúteis,
para eles gloriosas, posições que os outros galgavam.Era uma politicazinha engenhosa de
medíocres, de estreitos, de tacanhos, de perfeitos imbecilizados ou cínicos,
que faziam da Arte um jogo capcioso, maneiroso, para arranjar relações e
prestígio no meio, de jeito a não ofender, a não fazer corar o diletantismo das
suas ideias. Rebeldias e intransigências em casa,
sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito demolidor e
feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da trovoada e dos
celestes castigos imponderáveis!
Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e
do Mundo, perante o ferro em brasa da livre análise, mostrando logo as
curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais, mais clássicas, à decrépita Convenção com letras maiúsculas.
Um ou outro, pairando, no entanto, mais
alto no meio, tinha manhas de raposa fina, argúcia, vivacidades satânicas, no
fundo frívolas, e que a maior parte, inteiramente oca, sem penetração, não
sentia. Fechava sistematicamente os olhos para fingir não ver, para não sair
dos seus cômodos pacatos de aclamado banal, fazendo esforço supremo de
conservar a confusão e a complicação do meio, transtornar e estontear aquelas
raras e adolescentes cabeças que por acaso aparecessem já com algum nebuloso
segredo.Um ou outro tinha a habilidade quase
mecânica de apanhar, de recolher do tempo e do espaço as ideias e os
sentimentos que, estando dispersos, formavam a temperatura burguesa do meio,
portanto corrente já, e trabalhar algumas páginas, alguns livros, que por
trazerem ideias e sentimentos homogêneos dos sentimentos e ideias burguesas,
aqueciam, alvoroçavam, atordoavam o ar de aplausos...Outros, ainda, adaptados às épocas,
aclimados ao modo de sentir exterior; ou, ainda por mal compreendido
ajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir íntimo, próprio, iludidos
em parte; ou, talvez, evidenciando com flagrância, traindo assim o fundo fútil,
sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade estética, sem a ideal radicalização
de sonhos ingenitamente fecundados e quinta-essenciados na alma, das suas
naturezas passageiras, desapercebidas de certos movimentos inevitáveis da
estesia, que imprimem, por fórmulas fatais, que arrancam das origens profundas,
com toda a sanguinolenta verdade e por causas fugidias a toda e qualquer
análise, tudo o quanto se sente e pensa de mais ou menos elevado e completo.Mistificadores afetados de canaillerie
por tom, por modernismos falhos apanhados entre os absolutamente fracos, os
pusilânimes de têmpera no fundo, e que, no entanto, tanto aparentam correção e
serena força própria.Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a
integração final, sem mesmo o equilíbrio fundamental do próprio desequilíbrio
e, ainda mais do que tudo, sem esse poder quase sobrenatural, sem esses
atributos excepcionais que gravam, que assinalam de modo estranho, às
chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter imprevisto, extra-humano, do
Sonho.Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes,
acomodatícios, afetando pessimismos mais por desequilíbrio que por fundamento,
sentindo, alguns, até à saciedade, a atropelação do meio, fingindo desprezá-lo,
aborrecê-lo, odiá-lo, mas mergulhando nele com frenesi, quase com delírio,
mesmo com certa volúpia maligna de frouxos e de nulos que trazem num grau muito
apurado a faculdade animal do instinto de conservação, a habilidade de
nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos cálculos e efeitos
convencionais.Tal, desse modo, um prestidigitador ágil
e atilado, colhe e prende, com as miragens e truques da nigromancia, a frívola
atenção passiva de um público dócil e embasbacado.Insipientes, uns, obscenamente cretinos,
outros, devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos e lhes
dilacera os fígados, eu bem lhes percebo as psicologias subterrâneas, bem os
vejo passar, todos, todos, todos, d’olhos oblíquos, numa expressão fisionômica
azeda e vesga de despeito, como errantes duendes da Meia-Noite, verdes,
escarlates, amarelos e azuis, em vão grazinando e chocalhando na treva os
guizos das sarcásticas risadas...Almas tristes, afinal, que se diluem, que
se acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação, murchas e doentias, na
febre fatal das desorganizações, melancolicamente, melancolicamente, como a
decomposição de tecidos que gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo
irremediável e não podem mais viçar e florir sob as refulgências e sonoridades
dos finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados do Sol...Almas lassas, debochadamente relaxadas,
verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem não encontra fundo; almas
que vão cultivando com cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes e
curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência,
a majestade do Inferno!Almas, afinal, sem as chamas misteriosas,
sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores do Sonho —
supremo Redentor eterno!Tudo um ambiente dilacerante, uma
atmosfera que sufoca, um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a garganta
como uma poeira triste, muito densa, muito turva, sob um meio-dia ardente, no
atalho ermo de vila pobre por onde vai taciturnamente seguindo algum obscuro
enterro de desgraçado...Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho
tranquilo! Pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul, que vive em tédios
aristocráticos na Nuvem, que me deixe serenamente e humildemente acabar esta
Obra extrema de Fé e de Vida!Se alguma nova ventura conheço é a
ventura intensa de sentir um temperamento, tão raro me é dado sentir essa
ventura. Se alguma cousa me torna justo é a chama fecundadora, o eflúvio
fascinador e penetrante que se exala de um verso admirável, de uma página de
evocações, legítima e sugestiva.O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por
quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é a
Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para
sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para morrer,
agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos do
Ciúme...Agitando ainda a cabeça num derradeiro
movimento de desdém augusto, como nos cismativos ocasos os desdéns soberanos do
sol que ufanamente abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres
e ignorados hemisférios...Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a
característica que denota a seleção de uma curiosa natureza, de um ser d’arte
absoluto, essa, não a sinto, não a vejo, com os delicados escrúpulos e
susceptibilidades de uma flagrante e real originalidade sem escolas, sem
regulamentações e métodos, sem cotterie e anais de crítica, mas com a força
germinal poderosa de virginal afirmação viva.D’alto a baixo, rasgam-se os organismos,
os instrumentos da autópsia psicológica penetram por tudo, sondam, perscrutam
todas as células, analisam as funções mentais de todas as civilizações e raças;
mas só escapa à penetração, à investigação desses positivos exames, a
tendência, a índole, o temperamento artístico, fugidios sempre e sempre
imprevistos, porque são casos particulares de seleção na massa imensa dos casos
gerais que regem e equilibram secularmente o mundo.Desde que o Artista é um isolado, um
esporádico, não adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitável revolta
contra ele, num conflito perpétuo entre a sua natureza complexa e a natureza
oposta do meio, a sensação, a emoção que experimenta é de ordem tal que foge a
todas as classificações e casuísticas, a todas as argumentações que, parecendo
as mais puras e as mais exaustivas do assunto, são, no entanto, sempre
deficientes e falsas.Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas
como que um supercivilizado ingênito, transbordado do meio, mesmo em virtude da
sua percuciente agudeza de visão, da sua absoluta clarividência, da sua inata
perfectibilidade celular, que é o germen fundamental de um temperamento
profundo.Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no
tempo veiculado pela hegemonia das raças, pela preponderância das civilizações,
tendo, porém, em toda a parte, um valor que era universalmente conhecido e
celebrizado, porque, para chegar a esse grau de notoriedade, penetrou primeiro
nos domínios do oficialismo e da cotterie.Os de Estética emovente e exótica, os
gueux, os requintados, os sublimes iluminados por um clarão fantástico, como
Baudelaire, como Poe, os surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários supremos,
os inflamados, devorados pelo Sonho, os clarividentes e evocativos, que
emocionalmente sugestionam e acordam luas adormecidas de Recordações e de
Saudades, esses, ficam imortalmente cá fora, dentre as augustas vozes
apocalípticas da Natureza, chorados e cantados pelas Estrelas e pelos Ventos!Ah! Benditos os Reveladores da Dor
infinita! Ah! Soberanos e invulneráveis aqueles que, na Arte, nesse extremo
requinte de volúpia, sabem transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande
Significação eloquente e não amesquinhá-la e desvirginá-la!A verdadeira, a suprema força d’Arte está
em caminhar firme, resoluto, inabalável, sereno através de toda a perturbação e
confusão ambiente, isolado no mundo mental criado, assinalando com intensidade
e eloquência o mistério, a predestinação do temperamento.É preciso fechar com indiferença os
ouvidos aos rumores confusos e atropelantes e engolfar a alma, com ardente
paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e pensa com sinceridade, por
mais violenta, obscura ou escandalosa que essa sinceridade à primeira vista
pareça, por mais longe das normas preestabelecidas que a julguem, — para então
assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da grande Arte, da grande Arte
que é só, solitária, desacompanhada das turbas que chasqueiam, da matéria
humana doente que convulsiona dentro das estreitezas asfixiantes do seu torvo
caracol.Até mesmo, certos livros, por mais
exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por mais aclamados pela trompa do
momento, nada podem influir, nenhuma alteração podem trazer ao sentimento geral
de idéias que se constituíram sistema e que afirmam, de modo radical, mas
simples, natural, por mais exagerado que se suponha, a calma justa das
convicções integrais, absolutas, dos que seguem impavidamente a sua linha, dos
que, trazendo consigo imaginativo espírito de Concepção, caminham sempre com
tenacidade, serenamente, imperturbáveis aos apupos inofensivos, sem tonturas de
fascinação efêmera, sentindo e conhecendo tudo, com os olhos claros levantados
e sonhadores cheios de uma radiante ironia mais feita de clemência, de bondade,
do que de ódio.O Artista é que fica muitas vezes sob o
signo fatal ou sob a auréola funesta do ódio, quando no entanto o seu coração
vem transbordando de Piedade, vem soluçando de ternura, de compaixão, de
misericórdia, quando ele só parece mau porque tem cóleras soberbas, tremendas
indignações, ironias divinas que causam escândalos ferozes, que passam por
blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial do Mundo, contra o vício hipócrita,
perverso, contra o postiço sentimento universal mascarado de Liberdade e de
Justiça.Nos países novos, nas terras ainda sem
tipo étnico absolutamente definido, onde o sentimento d’Arte é silvícola,
local, banalizado, deve ser espantoso, estupendo o esforço, a batalha
formidável de um temperamento fatalizado pelo sangue e que traz consigo, além
da condição inviável do meio, a qualidade fisiológica de pertencer, de proceder
de uma raça que a ditadora ciência d’hipóteses negou em absoluto para as
funções do Entendimento e, principalmente, do entendimento artístico da palavra
escrita.Deus meu! Por uma questão banal da
química biológica do pigmento ficam alguns mais rebeldes e curiosos fósseis
preocupados, a ruminar primitivas erudições, perdidos e atropelados pelas
longas galerias submarinas de uma sabedoria infinita, esmagadora, irrevogável!Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor
da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que
me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febre?Ah! esta minúscula humanidade, torcida,
enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de animais bravios, de garras
aguçadas e dentes rijos de carnívoro, é que não pode compreender-me.Sim! Tu é que não podes entender-me, não
podes irradiar, convulsionar-te nestes efeitos com os arcaísmos duros da tua
compreensão, com a carcaça paleontológica do Bom Senso.Tu é que não podes ver-me, atentar-me,
sentir-me, dos limites da tua toca de primitivo, armada do bordão simbólico das
convicções pré-históricas, patinhando a lama das teorias, a lama das
conveniências equilibrantes, a lama sinistra, estagnada, das tuas insaciáveis
luxúrias.Tu não podes sensibilizar-te diante
destes extasiantes estados d’alma, diante destes deslumbramentos estesíacos,
sagrados, diante das eucarísticas espiritualizações que me arrebatam.O que tu podes, só, é agarrar com frenesi
ou com ódio a minha Obra dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la e
revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas, enodoar-lhe a castidade branca
dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da linguagem, riscar, traçar,
assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com labéus obscenos, com golpes
fundos de blasfêmia as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a
Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia.Mas, para chegares a esse movimento
apaixonado, dolorido, já eu antes terei, por certo — eu o sinto, eu o vejo! —
te arremessado profundamente, abismantemente pelos cabelos a minha Obra e
obrigado a tua atenção comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com
febre, com delírio, com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiar como
um ferro em brasa sobre o organismo da Ideia, cada vocábulo que eu tenha
pensado e sentido com todas as fibras, que tenha vivido com os meus carinhos,
dormido com os meus desejos, sonhado com os meus sonhos, representativos
integrais, únicos, completos, perfeitos, de um convulsão e aspiração supremas.Não conseguindo impressionar-te,
afetar-te a bossa inteletiva, quero ao menos sensacionar-te a pele,
ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao sol, pondo abertas e
francas, todas as expressões, nuances e expansibilidades deste amargurado ser,
tal como sou e sinto.Os que vivem num completo assédio no
mundo, pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro monstruoso de leis e
preceitos obsoletos, de convenções radicadas, de casuísticas, trazem a
necessidade inquieta e profunda de como que traduzir, por traços fundamentais,
as suas faces, os seus aspectos, as suas impressionabilidades e, sobretudo, as
suas causas originais, vindas fatalmente da liberdade fenomenal da Natureza.Ah! Destino grave, de certo modo funesto,
dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seus pensamentos e
sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de
opiniões, mistificar a insipiência dos adolescentes intelectuais, a ingenuidade
de certas cabeças, o bom senso dos cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a
missão que trazem, no espírito fraco, sem consistência de crítica própria, sem
impulsão original para afirmar os Obscuros que não contemporizam, os Negados
que não reconhecem a Sanção oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de
compadrismos interesseiros, de aplausos forjicados, por limpidez e decência e
não por frivolidades de orgulhos humanos ou de despeitos tristes.Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo
para ousadamente deflorar as púberes e cobardes inteligências com o órgão
másculo, poderoso da Síntese, para inocular nas estreitezas mentais o sentimento
vigoroso das Generalizações, para revelar uma obra bem fecundada de sangue, bem
constelada de lágrimas, para, afinal, estabelecer o choque violento das almas,
arremessar umas contra as outras, na sagrada, na bendita impiedade de quem traz
consigo os vulcanizadores Anátemas que redimem.O que em nós outros Errantes do
Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia infinita, esta sede santa e
inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma alma que nos veja com
simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame, que nos sinta.É de encontrar essa alma assinalada pela
qual viemos vindo de tão longe sonhando e andamos esperando há tanto tempo,
procurando-a no Silêncio do mundo, cheios de febre e de cismas, para no seio
dela cairmos frementes, alvoroçados, entusiastas, como no eterno seio da Luz
imensa e boa que nos acolhe.É esta bendita loucura de encontrar essa
alma para desabafar ao largo da Vida com ela, para respirar livre e fortemente,
de pulmões satisfeitos e límpidos, toda a onda viva de vibrações e de chamas do
Sentimento que contivemos por tanto e tão longo tempo guardada na nossa alma,
sem acharmos uma outra alma irmã à qual pudéssemos comunicar absolutamente
tudo.E quando a flor dessa alma se abre
encantadora para nós, quando ela se nos revela com todos os seus sedutores e
recônditos aromas, quando afinal a descobrimos um dia, não sentimos mais o
peito opresso, esmagado: — uma nova torrente espiritual deriva do nosso ser e
ficamos então desafogados, coração e cérebro inundados da graça de um divino
amor, bem pagos de tudo, suficientemente recompensados de todo o transcendente
Sacrifício que a Natureza heroicamente impôs aos nossos ombros mortais, para
ver se conseguimos aqui embaixo na Terra encher, cobrir este abismo do Tédio com
abismos de Luz!O mundo, chato e medíocre nos seus
fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula geométrica. Todo aquele que
lhe procura quebrar as hirtas e caturras linhas retas com o poder de um simples
Sentimento, desloca de tal modo elementos de ordem tão particular, de natureza
tão profunda e tão séria que tudo se turba e convulsiona; e o temerário que
ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a Dor imponderável que esse
simples Sentimento responsabiliza e provoca.Eu não pertenço à velha árvore
genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meios
lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas
de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...Num impulso sonâmbulo para fora do
círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, em
espiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos nevados, gelados e
peregrinos caminhos da Via-Láctea...E é por isso que eu ouço, no
adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores
enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na contemplatividade
mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que parece vir do fundo da
Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos mistérios da Noite — talvez
acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus
esquecidos, murmurar-me:-“Tu és dos de Cam, maldito, réprobo,
anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em
Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se
viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula,
tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de
sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios
convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras,
dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas,
desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga
fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormedido e
sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do
Mar Vermelho!Artista! Pode lá isso ser se tu és
d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando
de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas,
torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África
arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias
absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas
selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma
de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa
como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve
— pólo branco e pólo negro da Dor!Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso
ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa
África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados,
dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de
gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios,
sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste
letal e tenebrosa das maldições eternas!A África virgem, inviolada no Sentimento,
avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopéia
suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de
algum novo e majestoso Dante negro!Dessa África que parece gerada para os
divinos cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas e
fantásticas Inspirações convulsas de Doré - inspirações inflamadas, soberbas,
choradas, soluçadas, bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento
humano.Dessa África cheia de solidões
maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos de
esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero, gigantescamente medonha,
absurdamente ululante — pesadelo de sombras macabras — visão valpurgiana de
terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra e formando, com as
seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de
lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...Não! Não! Não! Não
transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de
ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra
sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado
de uma raça.Se caminhares para a
direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente
incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra
parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará
profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita
de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao
alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,
fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância,
te deixará num frio espasmo de terror absoluto...E, mais pedras, mais pedras se sobreporão
às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas,
caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E
as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir,
subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre
perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho..."
(CRUZ E SOUSA, DO LIVRO ANTOLOGIA DA POESIA AFRO-BRASILEIRA)
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