sábado, 8 de novembro de 2008

CAPÍTULO II

CAPÍTULO II

“Se lembra do jardim, ó maninha,
coberto de flor?
Pois hoje só da erva daninha,
depois que ele chegou.”
(Maninha, Chico Buarque)


Era julho de 1982, portanto quase um ano após a repetição de meu sonho. Nós estávamos de férias na praia de Canoa Quebrada, no Ceará. Nessa época a especulação turística ainda não havia modificado a beleza natural daquele paraíso. Eu jogava futebol com alguns garotos da minha idade, num esforço fenomenal para conter a bola em função da velocidade do vento, esforço esse só justificado pela realização da copa do mundo, evento que transforma um país inteiro em jogadores e técnicos de futebol.
Cansado, esbaforido pelo esforço inútil, sentei-me na areia, à espera de minha mãe, que deveria estar atrás de mim com uma água ou coisa que o valha, quando se aproximou de mim uma garotinha de mais ou menos quatro anos, sentou-se ao meu lado e disse com uma voz de falsete o mais natural possível:
─ Onde você esteve! Eu te procurei por toda parte.
Assustado eu perguntei:
─ Mas quem é você? Eu não conheço você.
─ Conhece sim, eu sou Aliel, sua irmã. Vamos, me leve até nossa mãe, ela deve estar preocupada.
Foi aí que eu percebi a semelhança física da menina com a moça que eu tentara salvar no sonho. Os olhos de um verde fascinante, envoltos por espessa sobrancelha, a boca pequena formando um M e um ar de desamparo que cativava, juntos com uma cabeleira negra contrastando com os olhos, completavam a imagem daquela moça. Como eu me demorei a responder, a menininha começou a choramingar dizendo que eu não queria voltar para casa com ela. Eu percebi então como aquela garotinha precisava de mim, tomei-a então pelo braço e, pela intuição, conduzi-a pela praia. Nesse momento vinha, como louca, correndo, uma mulher que, ao nos ver, abraçou a menina, que era sua filha.
─ Muito obrigada, garoto, por ter encontrado minha filha. – Disse segurando a menininha e fitando meu rosto – ela nunca se afastou da gente, mas hoje sumiu de repente. Ainda bem que apareceu você, meu anjo.
A menina olhou para a mãe e com a mesma naturalidade como se dirigira a mim falou:
─ Mas, Mamãe, eu não lhe disse que ia procurar meu irmão!
─ Desculpe – disse a mãe, voltando-se na minha direção – ela sempre fala nesse irmão que não tem.
Passou a mão no meu rosto, deu-me um beijo e se afastou arrastando com um pouco de violência, pelo braço, a pequena Aliel, que teimosamente andava com a cabeça voltada para mim. Fiquei só, pensando no que havia acontecido. Era realmente tudo muito singular, a familiaridade daquela criança me assustava. Eu tinha apenas dez anos e me deparava com um mistério que me poderia ser revelador ou se tornar por demais doloroso. À minha mente, para me salvar, veio a lembrança de que quando se é filho único, criam-se ilusões de amigos ou irmãos invisíveis. Minha mãe mesma me contara que, quando eu era bem pequeno, passava os dias todos brincando com um amigo, que ninguém via. Contra fatos não há argumentos. E isso me consolou.
Eu ando por uma rua de piçarra e ao longe ouço o marulho, o que me indica estar próximo à praia. Ao contrário das outras vezes, está anoitecendo. Para chegar à praia, é necessário saltar sobre muitas pedras, que formam os diques, vistos nas vezes anteriores. Só que eu não desço. Caminho ao longo do espigão deitado que ladeia toda a praia. Mais à frente sento-me e me ponho a admirar a lua, que surge no além. A praia não existe, a água do mar ocupa toda sua extensão e eu posso tocá-la e brincar com as algas que bóiam. Nesse momento aproxima-se de mim uma mulher, vestida com um roupão marrom e um véu escuro sobre a cabeça. Senta-se à minha frente, retira o véu. É a mesma moça dos outros sonhos. Eu a amo, ela é linda, de uma beleza que não se pode descrever porque ela só é perceptível à luz do coração. Eu miro o seu rosto e no fundo dos seus olhos eu vejo a impossibilidade de ficarmos juntos, algo conspira contra nós, e eu a amo, amo-a tanto que sinto dores, e as lágrimas me correm pelas faces. Ela abraça-me e ficamos assim por um tempo indefinido.
Quando minha mãe me chamou eu já estava acordado e chorava por não ter Aliel ao meu lado. Era ela. A moça do sonho era a mesma garotinha da praia. Eu não sabia explicar o que estava ocorrendo, mas eu sabia que tinha de encontrar aquela menina. A minha existência estava, de uma forma ou de outra, ligada à dela, e isso me parecia inexorável.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CAPÍTULO I

“ Mas onde se achará a sabedoria?
E onde está o lugar do entendimento?
O homem não conhece o valor dela,
Nem se acha ela na terra dos viventes.”
(Jó: 28, 12 e 13)



Não me lembro bem da primeira vez que tive aquele sonho. Mas sei que era muito pequeno. Talvez tivesse menos de oito anos. As marcas que ele me deixou na época, entretanto, me são lembradas até hoje. Até porque ele se repetiu indefinidamente, até que um dia sumiu; suas lembranças, porém, ficaram registradas, e eu, na rua, chegava a identificar pessoas as quais não conhecia, mas que estavam lá, povoando esses momentos oníricos.
Mas o que na verdade é o sonho, que magia é essa que nos acompanha durante nossa existência e para qual não temos explicação, enquanto seres materiais? É realmente uma incógnita esse estado de espírito. Para alguns é a realização de um desejo. Mas como se pode desejar a morte de um ente querido, como um filho ou os pais? Seria então uma projeção do futuro ou uma memória do passado? Ou será tudo isso, dependendo do estágio de nosso pensamento e de nossa alma? Vamos, pois, ao sonho que me impressionou a infância e que me abriria finalmente as portas da compreensão da existência.
Como havia afirmado anteriormente, à primeira vez que tive esse sonho deveria ter por volta dos oito anos. Até então nenhum sonho me havia chegado com tanta clareza, não que eu me lembre. Esse sim. Posso ainda sentir o cheiro da maresia e a cor do céu. Eu estou numa praia nunca vista antes por mim, a cor da terra é escura e há enormes diques de pedras, e há muitas pedras por toda parte, como se estivéssemos sempre esperando uma invasão do mar. Eu caminho pela praia catando conchas as quais deposito numa sacola feita de couro que trazia à tira colo. Próximo e um pouco além muitas pessoas caminham, pescam ou admiram o mar. De repente ouço um barulho semelhante ao rugido de um leão. Ao levantar a cabeça, vejo uma enorme onda, despontando no horizonte, vindo em direção à praia. Apesar do grande susto, olho em volta para ver se posso fazer algo pelas pessoas, e sem pensar corro na direção de umas crianças que brincam inocentemente e procuro afastá-las para o ponto mais alto possível. Com uma mão transporto algumas delas dali, enquanto com a outra escalo as pedras. Ajo rápido porque a onda se aproxima da praia com uma ira destruidora. Desesperado, vejo uma moça com os cabelos cobertos por um véu marrom tentando subir as pedras, entretanto sua roupa longa a impede de fazê-lo. Com pouco esforço, consigo alcançá-la. Mas é tarde! A onda com sua fúria indescritível nos arremessa contra o rochedo.
E eu acordei, mas não apavorado como quem tem um pesadelo, era como se eu apenas recordasse de um acontecimento de um passado remoto. Afinal, aquilo fora um sonho, não um pesadelo.
Durante os dias que se seguiram, eu não conseguia me livrar da imagem daquela moça. Seu rosto moreno e olhos assustados, no momento em que a peguei nos braços, fitaram meu rosto com um ar de gratidão e isso me abalou os nervos. Aquele rosto não me era estranho, por esse motivo eu o busquei em todas as pessoas adultas que cruzavam o meu caminho, até que cansei e voltei a ser criança. Passados alguns meses não me lembrava mais do sonho.
Não posso afirmar com precisão quanto tempo, mas um ano depois, aproximadamente, o sonho se repetiu. Era o mês de setembro. Depois eu me perguntaria se tinha algo a ver com o mês do meu aniversário, outubro. O certo é que nesse ano e nos outros que viriam o sonho me vinha sempre no mês de setembro. Não era o mesmo sonho ipse image, mas era parecido. Às vezes eu penso ser o mesmo sonho apenas com algumas alterações da minha imaginação, como se eu quisesse refazê-lo para adequá-lo a uma situação contemporânea.
Dessa feita eu não estou na praia, e sim no mar, no entanto o ambiente é o mesmo, a cor do céu, a tez escura das rochas e o verde da água. Eu estou insulado numa pedra, pescando. A minha fisionomia é a mesma da vez anterior. Minha pele escura, curtida pelo sol não contrasta com meus cabelos da mesma cor. Da vez anterior eu não lembrava de meus sentimentos, mas agora eu os tenho bem claros, meus sentidos estão alerta como se meu espírito captasse algo de anormal por acontecer, ou se estivesse ansioso por algo prestes a se realizar. Assim eu ouço o rugido do leão enfurecido, é a onda gigante que desponta no horizonte. Como da outra, vez viro-me para a praia e vejo pessoas correndo, dirijo-me com fortes braçadas até a areia e lá consigo salvar as três crianças, mas meu pensamento está na mulher que eu pretendo desesperadamente tirar do perigo. Desta vez salto para a praia numa busca quase insana daquela minha protegida, vejo-a correndo para mim de braços abertos, mas antes que a abrace a onda nos atinge novamente, sinto, então, uma dor profunda no peito, mas não sei se é dor física ou se é meu coração que dói por falhar novamente na minha missão.
E mais uma vez, como uma imagem de tevê é cortada quando há falta de energia, o sonho se apagou. Eu acordei.
Novamente minha curta existência se transformou numa busca daquele rosto, até que a infância e tudo que a compõem me chamaram novamente à vadiagem, as imagens daquele sonho tornaram-se latentes.






segunda-feira, 27 de outubro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE RENCONTROS

A partir dessa semana, será publicado um romance de nossa autoria. Toda segunda, será úblicado um capítulo desse romance, cujo título provisório é DE SONHOS, DE VIDAS, DE REENCONTROS. Abaixo segue a primeira postagem que é a introdução capítulo.


INTRODUÇÃO

“Beija-me com os beijos de tua boca;
porque melhor é o teu amor do que o vinho.
Suave é o aroma dos teus ungüentos;
como ungüento derramado
é o teu nome.”
(Cânticos: 1 – 2;3)

Como é Veneza? Em uma única palavra: apaixonante. Não existe outra cidade como ela. Não há melhor lugar para se passar uma lua-de-mel. E assim, eu casado com a solidão, de quem há muito havia me separado, resolvi ir até lá. É realmente embriagante andar pelas vielas de Veneza, sente-se o cheiro da Idade Média, pisando-se nas ruas de pedra. Mas a maior atração, com certeza, são os canais. Para minha sorte, cheguei a essa magnífica cidade no primeiro sábado de setembro, e no domingo, debruçado numa das cem janelas do Hotel Carlton e Grand Canal, que estão de frente para o Grande Canal, conforme o nome já sugere, já assisti à Regata Storica. Trata-se de uma competição de gôndolas de diferentes categorias. Nos dias que se seguiram fiz o que todo turista faz, ao lado de sua esposa: fui à praça San Marcos; visitei a Igreja de mesmo nome, depois de encarar uma fila quilométrica; passeei numa gôndola com almofadas em formato de coração, e... cansei. Era mais ou menos o décimo quinto dia em Veneza e minha esposa já me aborrecera. Uma impaciência me percorria as costas e me formigava o cérebro. Precisava urgentemente encontrar alguém para conversar ou pelo menos para observar.
Era uma tarde de sexta-feira quando um casal me chamou a atenção. Eu havia acabado de chegar de uma caminhada pelas verdadeiras ruas de Veneza, que são aquelas onde moram seus habitantes, dir-se-iam ruelas que deixam-nos ver um monte de pontezinhas sobre os inúmeros canais. Estava debruçado na janela do quarto admirando a beleza do Grande Canal, tentando descobrir os mistérios medievais submersos naquelas águas, quando esse casal passou numa gôndola. Era um casal como outro qualquer, entretanto algo, que não sei o quê, chamou-me a atenção, com certeza não foi o fato de ambos serem brasileiros, pois não dava para fazer essa identificação da distância que eu me encontrava deles.
À noite, estava em um restaurante observando as luzes da cidade refletida nas águas, quando os vi novamente. Ele deveria ter uns cinqüenta anos, enquanto ela era um pouco mais jovem. Os dois conversavam, enquanto a mulher com um brilho sapeca no olhar fazia trejeitos para diverti-lo, oferecendo-lhe os lábios umedecidos de vinho. Ele ria e beijava-lhe os lábios, beijava-os não, acarinhava-os com os seus. É esse o verbo que melhor define aquela atitude. Ela, então, molhava novamente os lábios no vinho e ofertava-os a ele, que sorvia o líquido e permanecia alguns segundos, embriagado na beleza do rosto da companheira. De súbito me veio uma idéia: aproximar-me deles e conhecer a magia daquele amor, afinal não é todo dia que vemos um casal com tamanha demonstração de carinho. “Devem ser recém-casados” – pensei. Por outro lado, indagava-me se tinha o direito de interrompê-los, pois se eles estavam ali, tão longe de casa, sozinhos, é porque não queriam companhia. Entretanto, para minha surpresa, foi ele que se aproximou de mim. Enquanto ela saiu, para ir ao toalete, ele levantou e veio até mim:
─ Boa noite! Você é brasileiro, não é? – perguntou-me, passando a mão pelos cabelos grisalhos que também brilhavam sob o reflexo das luzes.
─ Sim – respondi apertando-lhe a mão.
─ Aqui é tão difícil encontrar alguém de casa que, quando o vi, não pude controlar a vontade de falar português, com alguém que não seja lusitano. – justificou-se quase impaciente por eu não convidá-lo a sentar-se. Quando percebi essa minha gafe, prontifiquei-me a fazê-lo.
Logo estávamos familiarizados. Quando sua bela esposa chegou, ele ma apresentou e os três ficamos conversando sobre o Brasil e sobre Fortaleza. Coincidentemente eles também eram da capital alencarina. Por mais que eu me esforçasse, entretanto, não conseguia tirar os olhos de sua adorável senhora. Se os amigos leitores a vissem, com certeza saberiam o motivo. Quando voltei para o hotel levei deles a promessa de no dia seguinte almoçarmos juntos.
No dia seguinte, tínhamos acabado de almoçar, quando Daniel, era esse o nome do homem, virou-se para mim e disse:
─ Senhor Rodrigo, pode ser que o senhor não acredite em reencarnação, mas eu lembro do senhor de alguma vida anterior.
Eu estava estupefato. Afinal não é todo dia que alguém lembra de você de uma outra vida. O mais comum é alguém lembrar de você de algum lugar. Ele então repetiu a afirmação e virando-se para sua bela esposa, como quem casara há poucos dias, disse que a primeira vez que os dois se viram foi numa outra encarnação, há centenas de anos. Diante da minha surpresa ele contou rapidamente sobre seu dom de reconhecer as pessoas com quem vivera ou com quem apenas cruzara em outras vidas. Em seguida com poucas palavras me contou sua história. Eu estava entre surpreendido e impressionado. Aquela era, se não a mais bela, a mais surpreendente história de amor que alguém pode ter vivido. E ela estava ali ao alcance de meus ouvidos. No dia seguinte devolvi o favor. Fui almoçar com meus novos amigos. Levei comigo meu editor de texto portátil e o gravador. Pedi então para que Daniel me contasse sua história de sonhos e encontros. Ele assentiu, mas com uma condição: que, ao escrevê-la, eu o fizesse em primeira pessoa, pois queria que os leitores ouvissem sua voz e os ecos do passado recente e do passado remoto. É claro que eu aceitei essa condição, e, durante uma semana, em pontos diferentes de Veneza, ele me contou a história que vocês lerão a seguir.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

NÃO COMETA ESSE ERRO


A SINA DO ESCARAVELHO

Assim, como humanos seres há,
Que grande poder a si se arrosta,
Existe inseto que também se dá,
Falo do nojento rola-bosta.

Rola-bosta é apenas apelido,
Seu nome verdadeiro é escaravelho,
Como Narciso, o inútil é atrevido,
Coa caca, só descansa ante um espelho.

Vi-o enquanto olhava meu jardim,
Fiquei incrivificado com a criatura
Que desfilava bem perto de mim,
Cara fechada, preso em sua feiúra.

Ostentava tanta empáfia o infeliz,
Que chamou deveras minha atenção,
Resolvi logo ser dele aprendiz,
Para não repetir sua lição.

Duma lorica pesada era preso,
Erguia sua tromba como um falo,
Olhava os colegas com desprezo,
Como em sua cabeça houvesse um halo.

Os insetos menores tinham medo,
Pois não sabiam que, apesar de tudo,
Ele guardava um enorme segredo
Debaixo de seu focinho trombudo.

Por muitos dias perscrutei atento,
Aquele pesado fardo levar,
Aquele ser de penúria e lamento,
De viés aos outros seres olhar.

Eu juro que fiquei com muito dó,
Dele, vestido como um cavaleiro,
Porém levando a vida muito só,
Sem nunca ter momento alvissareiro.

Em surdina, dos insetos ouvi
Que ele tinha sido mais coitado,
Entanto era mais humilde ali,
E a ninguém ele tinha humilhado.

Um dia, deram para ele cuidar,
Porém, uma bosta bem grande e suja,
Que carrega então de lá para cá,
Vigiando como mamãe coruja.

Adora aos pequeninos indagar:
Sabem para que seve esta caca?
Respondem ingênuos: para brincar!
Dando um sorriso frio o babaca,

Mas não sabendo também responder
O que acabara de perguntar,
Sai trombudo a cumprir seu dever,
Sua grande bosta vai empurrar.

Entanto todo mundo tem alguém
Para consigo se preocupar.
Com ele aconteceu também,
Uma amiga havia pra consolar.

Disse-lhe ela: não seja tão sisudo,
Procure uma parceira para o ajudar,
Não seja assim, colega, tão cascudo
Há uma companheira para te amar.

Diante de grande demonstração,
O pobre resolveu pra ela se abrir
Não posso, amiga, dar meu coração,
Às fêmeas de lá tampouco daqui.

Só a você vou dizer a verdade,
Vou segredar o que sempre serei,
Que não se sabe na comunidade,
A verdade, colega, é que sou gay.

Estupefato ao ouvir-lo fiquei,
Diante de tamanha confissão,
Não sabia de nenhum inseto gay,
Sabia até de veado leão.

Mas sua amiga, do rola-bostas,
Era dessas amigas de verdade,
Disse-lhe passando a mão nas costas:
Todos precisam da felicidade.

Para tudo nesta vida tem jeito,
Não se importe meu amigo querido,
Ser boiola não é nenhum defeito,
Por que não arranja você um marido?

Arranje, amigo, um companheiro, então,
Que o ame de fato e ame-o também,
Formando de dois um só coração,
E que os anjos enfim digam amém.

Ele então seguindo esse conselho,
Logo passou com outro a desfilar,
Quando o via ficava vermelho,
E saíam os dois a namorar.

Mas não mudou nada o pobre coitado,
O motivo disso logo direi:
Não se pode amar inseto veado
Por um inseto que também é gay.

Juro sobre a bíblia e ante Deus,
Isso tudo aconteceu no meu jardim,
Passou-se assim perante os olhos meus
Descortinou-se bem perto de mim.
(Professor Alves, 03/08)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

DÊ UMA CHANCE A PAZ


IMPOSSÍVEL SONHAR
Professor Alves

“Minha mão não tem mais palma!
Dói em reverência! Violência calma!”

Hoje queria escrever um texto no qual fizesse transbordar minha admiração infinda pela humanidade, que levasse aos olhos do leitor lágrimas de felicidade e lhe desse uma vontade enorme de sair às ruas e cumprimentar seus semelhantes. Queria contar uma história, pequena que fosse, mas que narrasse uma atitude digna de uma espécie a qual se orgulha de ser racional, e que servisse de exemplo para toda humanidade, principalmente à que se diz cristã.

Não, hoje eu não queria falar em políticos e seu cinismo indecente, diante da população rota, transida pela falta de tudo que lhes dê uma condição minimamente humana. Hoje eu queria dormir tranqüilo, ter sonhos bons que elevassem meu astral para o dia seguinte.

Queria falar sobre o sorriso das crianças; do amor, verdadeiro, dos anciãos; da ingenuidade dos namorados; da puerícia das cartas de amor; do infinito mistério do beija-flor e da impossibilidade do besouro.

Mas não é possível, depois do que eu presenciei. Uma cena indigna da inteligência humana. Foi um sonho dantesco, porém indigno da Divina Comédia Humana. Numa avenida, há tão pouco tempo calma, porém, já hoje, tumultuada pelo ir e vir dos carros, ironicamente, próximo a uma escola. Após uma pequena colisão, dessas que se vêem a todo instante numa cidade que cresce, sem nenhuma estrutura para dar alicerce a esse crescimento. O proprietário do veículo colidido, de arma em punho humilhava o outro, o vilão daquele sinistro. Enquanto vociferava, ordenando que o outro entrasse no seu veículo e fosse embora, mudava o revólver de mão. Naquele momento, como os cabelos de Sansão, a arma empunhada lhe dava poder, e ele crescia perante o outro, que, humilhado, constrangido, diminuía, apequenava-se diante da superioridade da arma. Não sei quem era maior, se o revólver ou o homem que se escondia por trás dela. Não sei quem era menor, se o homem humilhado ou a sua dignidade. Súbito percebi que a humilhação não era privilégio dele, ela era coletiva Todos que por ali passavam, fechados nos seus escudos de aço, sentiam-se abatidos por aquele homem poderoso e sua arma. Em câmara lenta, (Essa era a velocidade do momento, uma vez que a cena tornava-se infinita como num filme de John Woo), o homem com a moral destroçada entrava em seu carro.

Não vi o desfecho da cena. Não precisava. O desfecho foi a morte do homem, suposto responsável pela colisão. Impossível alguém sair vivo, pelo menos moralmente, depois de passar por aquilo. Infelizmente hoje à noite terei pesadelos.

(Fortaleza, 29/04/08)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O SAL DA TERRA


O SAL DA TERRA

“Vós sois o sal da terra. E se o sal é insípido, com que se há de salgar? Servirá apenas para ser jogado fora e ser pisado pelos homens.”

Voltando para casa, sete e meia da noite, mais ou menos, vejo um furdunço urbano. Uma turba jazia ante um cadáver, sobre o qual profissionalmente já se debruçava o fotógrafo da “perícia”. Ladeando a cena, dois carros do já famigerado “Ronda do quarteirão”. Passando lentamente, mais por curiosidade que por impedimento, pude vislumbrar o pé do ex-vivente. Era um pé pequeno, desses que ainda não trilharam muitos caminhos nem o farão por já não terem futuro. Era uma criança. Quantos anos? Não importa. Era uma criança. Causa mortis? Bala. Motivo: tentativa de assalto. Não, ele não foi assaltado. Tentou fazê-lo e o resultado foi esse.

Infelizmente, não se trata de um fato isolado. Acontecimentos como esse ocorrem todos os dias numa cidade como Fortaleza. O que me leva a narrá-lo aqui, a dedos frios e coração palpitante foi o fato de me virem à mente naquele momento as palavras do mestre: “Vós sois o sal da terra...” E se o sal não tem sabor? Na verdade, quando Jesus disse isso não estava pensando em salvar almas, mas estava dizendo para todos os jovens, que são o sal da terra, a luz da vida. Mas infelizmente cada vez mais o sal está perdendo o sabor, e a luz, o brilho. Sem educação, sem orientação, o sal já não serve para dar sabor à vida, somente para ser pisado, humilhado, manipulado pelos outros.

Minha ignorância diante de algumas coisas me constrange às vezes. Uma vez, ante uma prateleira de supermercado, ainda lembrando as palavras do sábio filho de José, fiquei impressionado com a variação de preço do sal. Ao que um senhor me acorreu explicando que o valor do sal oscilava de acordo com o grau de pureza, ou com a procedência. Quanto mais refinado, mais caro se torna. Pensei assim que mesmo aqueles jovens que ainda têm algum sabor precisam ser refinados, pois mesmo que não sejam jogados fora, serão mal aproveitados, serão discriminados na prateleira do mercado de trabalho. Não sei como um país quer alcançar o topo onde se encontram os países de primeiro mundo sem refinar seu sal, sem lhe tirar as impurezas, sem lhe acrescentar a quantidade de iodo necessária!

Infelizmente, enquanto não houver vergonha na cara das autoridades, nossa juventude será sal grosseiro, daquele manipulado por mãos rudes, molhado no sal das lágrimas e suor. A falta de iodo no refino levará ao bócio social. Um grande número, crescente a cada dia, sem gosto, será jogado fora, pisado pelos homens; alguns servirão para enrijecer a argamassa que se multiplicará em prédios país a fora; e só alguns poucos servirão para a mesa do “chef” francês.

(Professor Alves)

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A FLOR E A DOR




A FLOR E A DOR
OU A ETERNA LUTA DO BEM CONTRA O MAL
(para Dra. Karol, uma flor vestida de anjo)

A dor surgiu sub-repticiamente,
De leve, cansada, espaçosa,
Logo foi tomando espaço na mente,
Em breve, era toda vitoriosa,
Impedindo os atos comumente.

Até que de triunfo deu seu grito,
Quedou-me com violência no chão.
O doutor mandou-me seguir o rito,
Ressonância era o exame padrão.
Saiu então o diagnóstico maldito.

“Exuberante protrusão discal
Póstero-mediana” – disse o médico
Descrevendo qual era o meu mal –
“Contraindo” – continuou sádico –
“A margem ventral do saco dural”.

Sentia-me como se fosse fuzilado,
Estava perplexo diante daquilo,
Ele ria por ter-me humilhado,
Recompus-me e perguntei tranqüilo:
– Há vida pra mim depois desse laudo?

Não é nada para desesperar,
Vamos fazer forte medicação,
Fisioterapia muita se fará,
Após dez meses de dedicação,
Bom de novo você estará.

Triste, macambúzio e desolado,
Voltei então dessa forma para casa,
Sem contar com a dor física do lado.
No tratamento, logo mandei brasa,
Pior, juro, nunca havia estado.

Em poucos dias estava arrasado.
Os comprimidos e as injeções
Deixaram-me o corpo debilitado,
Fui afastado, pois, das diversões
E do trabalho fui logo sacado.

A angústia e a má solidão
Tornaram-se assim minhas companheiras,
Fui presa fácil da televisão,
Nem em sonhos ia a brincadeiras,
Mas pensava: “dias melhores virão”.

Meu consolo era o computador,
Do orkut, os amigos e amigas,
Xadrez, música, e, como leitor,
Jornais e até revistas antigas,
Eram os lenitivos para a dor.

Bons dias vieram antes que eu pensava!
“Há malas as quais vem para o trem”
Há pouco um amigo, brincando, falava,
– Há males os quais vêm para o bem –
Esse provérbio ele parodiava.

E foi no momento em que adentrei
A sala de fisioterapia:
Um ente celeste encarnado encontrei!
A tal dor de repente não sentia,
De pronto, logo, logo melhorei.

Era um anjo meigo e lindo, Meu Deus!
Desses os quais pouco vêm à terra –
Que encanto para os olhos meus –
Quando vêm, numa redoma se encerram.
Inacessível a um coração ateu!

Era um ser feito de luz e harmonia,
Era um manto de pura perfeição,
O jaleco branco e o que dele fluía!
Tomou a minha dor em sua mão,
Senti-me conduzido à sacristia.

Mas passado o primeiro momento,
A dor voltou, plena, aguda, fria.
Era para mim deveras tormento
Quando vinha então a analgesia,
Só seus olhos me traziam lenimento.

Ela era assim como uma flor,
Cujos espinhos do conhecimento
Combatiam naquele vale de dor,
Impondo-nos severo tratamento,
Severamente, entanto com amor.

Era bastante um discreto sorriso,
Mostrando duas ebúrneas fileiras,
Para o mal se abater ante esse viso,
Pois sabia que não era brincadeira,
Recuava, mostrando ter bom siso.


Era a luta dos seres antitéticos:
Quando a dor sorria cinicamente,
Utilizando seus meios ecléticos;
A flor agia pacientemente,
Utilizando expedientes éticos!

Até que do bem começou a vitória.
A dor tentou, ainda em desespero,
Ostentar uma enganosa glória,
Mas a bela flor tinha o dom do esmero
E mudou por completo a história.

As noites, torturadas pela dor,
Ganharam agora uma nova feição,
São embaladas pela voz da flor,
Que, palpitante tal qual coração,
Abre os lábios, pétalas de olor.

O mal, vendo-se por fim derrotado,
Saiu deixando o campo da batalha.
Era o disco, que antes protrusado,
Pedia desculpas por sua falha;
Vitória do bem, em anjo encarnado.

Quando voltei então ao ortopedista,
Ele ficou assim sobressaltado,
Vendo-me andar como um nacionalista,
Senti-o um pouco decepcionado,
Pois, passou de leve a mão na vista.

O que vejo, amigo, um sério colosso!
Que fizeste, pois o que miro é raro,
Andas forte como se fosse um moço,
Encontraste algum santo, meu caro!?
Respondi-lhe – Uma, de carne e osso”

(Porofessor Alves)