CAPÍTULO XII
“O mar tem armas secretas
Que guardam a carne dos peixes
E a solidão do poeta.”
(Fagner/Abel Silva)
As atribulações pertinentes a períodos de provas me tomaram todo o restante do semestre. Em julho não tive descanso porque vieram os créditos de férias, uma forma de antecipar o término do curso, cujo tempo total chegava próximo dos nove anos, e como eu já o havia iniciado fora do tempo, urgia que buscasse recuperar o atraso. Assim o que deveria ser um tempo de lazer, tornou-se um esquadrinhar a anatomia humana sem fim. O pouco tempo livre que tinha, passava-o à beira mar admirando o infinito do oceano e imaginando os segredos ocultos nos labirintos submarinos. Enquanto andava enchia os pulmões de ar para espirá-lo todo de uma vez, em seguida aspirava mais ar. Esse exercício além de me renovar as energias fazia-me viajar no tempo, o vento soprando, a areia açoitando minhas pernas e a maresia penetrando meu ser era o veículo que me transportava a épocas imemoriais. Entretanto, apesar de toda essa afinidade com o mar, e seus mistérios eu não entrava na água. Dava-me imenso prazer ver e senti-lo, mas a idéia de me ver desafiando aquele monstro de água e espuma, rugindo como um dragão colossal me enregelava os nervos. Certa vez, fechara os olhos para ser inundado pela áurea oceânica quando de súbito me vi numa cena que remontava a milhares ou milhões de anos. Nela eu tenho uma barba rala como os soldados de Átila, o huno; tenho na mão esquerda uma lança tosca, primitiva; uma pele de animal e um gorro também de pele me protegem do frio, estou à margem de um oceano, era noite, eu estou ferido e, apesar da roupa, tirito de frio. Agarro-me à lança como se fosse uma tábua de salvação, como se estivesse me agarrando à própria vida, a dor me trespassa a clavícula, enquanto os dentes batem, formando um som monocórdio. Fora isso, o silêncio é ensurdecedor. Aos poucos vou fenecendo e vejo, já fora de mim, o corpo de um caçador, vermelho do sangue que emana de uma ferida imensa, inerte sob o céu de uma primitiva madrugada. Aos poucos vem surgindo uma luz que me conduz ao infinito. Quando abri os olhos vi novamente o impassível oceano me fitando e me desafiando com sua língua de espumas. Refleti sobre a visão que acabara de ter. Seria a visão de uma existência primitiva? Quantas vezes eu vivi? Ou será tudo isso, que me sugere a lembrança de encarnações anteriores, somente fruto da minha imaginação? A resposta para essa pergunta ninguém jamais me daria e eu deveria aprender a conviver com essa dúvida sem me molestar.
Outras vezes eu ia ao shopping. Entrava numa loja de discos, mexia, remexia, depois abandonava o lugar. Ia até a praça de alimentação, comia um sanduíche e voltava para os livros. Foi numa dessas incursões pelo shopping que revi Aliel. O sopapo que senti internamente daria para mover a terra se fosse numa alavanca postada no seu centro. As mãos começaram a suar e eu precisei respirar fundo para reaver parte da calma que me era necessária. Ela estava olhando uma vitrina em que havia uma porção de ursos de pelúcia, parecia escolher um. Ao seu lado, silencioso, um homem que mais parecia um guarda-costas, impassível, fitando-a embevecido, como eu fazia outrora. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos, enquanto o conjunto formado pelos cabelos fortemente grisalhos e os óculos de aros grossos davam-lhe um ar doutoral, como aqueles psicólogos saídos do século XIX, só lhe faltavam o cachimbo na mão esquerda e a direita escorando o queixo. Ou era o fato de prever que ali estava o noivo de Aliel que me fazia dele a imagem de um discípulo de Freud? Aproximei-me do casal, procurando fazê-lo o mais natural possível. Mas outro estremecimento me abalou os nervos, foi quando vi na mão esquerda de ambos o símbolo universal do matrimônio. Hesitei e parei a alguns passos daquela que deveria estar ao meu lado. Ela virou-se para o marido, fez um muxoxo e indicou um dos bonecos na prateleira. Ele assentiu com a cabeça e ela pulou em seu pescoço, rindo de felicidade e beijando-o por todo o rosto. Em seguida os dois entraram na loja, enquanto eu não sabia o que pensar ou o que fazer. Resolvi-me esgueirar pelos corredores e aguardar a saída dos dois. Não demorou muito e eles reapareceram. Com um urso enorme nas mãos, Aliel parecia um bebê de tão feliz. Os dois seguiram pelo imenso corredor na direção da praça de alimentação, seguidos de longe por mim. Foi ela quem indicou uma mesa no meio da praça, a mesma na qual ficávamos antes. Depois de acomodados ela virou-se algumas vezes, como se esperasse a chegada de alguém, talvez sentisse a minha presença. Enquanto isso, sentei-me a uma mesa onde não pudesse ser visto, por várias vezes tive vontade de ir ter com os dois. Aproveitei, então, o momento em que ele se levantou para ir, possivelmente, ao lavabo e me dirigi até Aliel. Para meu espanto, ela não se mostrou surpresa. Sorrindo ela me falou:
─ É difícil ver você, não?
Eu não sabia o que falar estava feliz por ela existir e se transformar na minha razão de viver, estava deslumbrado por ela ser assim tão franca, tão espontânea. Estático assim só pude perguntar:
─ Você casou com ele?
─ Foi. Ele não é tão garotinho como eu falei, é que tive vergonha... – e pela primeira vez eu senti certa falta de confiança em sua voz. Eu então indaguei:
─ Você é feliz?
─ E o que é a felicidade? Eu tenho dezesseis anos e nunca vi ou entendi o que significa isso. Ele me faz bem, é meu amigo e meu pai ao mesmo tempo. Faz e diz coisas tão carinhosas que às vezes acho impossível alguém fazer ou dizer o mesmo. Minha mãe vivia dizendo que sou louca que vivo inventando coisas. Ele me ouve e rir do que eu digo. Se eu o amo? Você pode me perguntar, e eu vou dizer que não sei. Assim como também não sei o que sinto por você. Você é meu irmão. Todas as vezes que sonho com você, você é meu irmão e eu tenho saudades de quando brincávamos na casa de nossa tia. Você não lembra? – perguntou com a mesma voz sumidinha de Miciane.
─ Lembro – afirmei – mas não foi nessa vida – continuei – foi numa outra. Um dia desses, eu tive a visão da nossa casa, chovia muito e você estava muito assustada... – Ela como que iluminada arregalou os olhos e disse:
─ Agora eu lembro – e seus olhos adquiriram uma expressão triste – nossa mãe havia morrido. Foi muito triste e nós sozinhos tínhamos voltado para casa, quando começou a chover. Eu me escondi na cozinha enquanto você me procurava.
Enquanto ela terminava essa narração o marido se aproximou. Ela apontando para mim disse, retomando o ar serelepe:
─ Ernani, esse é meu irmão que eu falei.
Ele olhou para mim sem demonstrar surpresa, seu ar era mais analítico, possivelmente hábito da profissão, do que de cisma. Eu balancei a cabeça afirmativamente, e ele perguntou com a voz pausada:
─ O que isso tem de verdadeiro?
Em poucas palavras eu lhe expus o que sabia até ali sobre mim e Aliel, inclusive a vida em que fomos irmãos.
─ Ninguém como eu deseja mais desvendar esse mistério do que eu. – Finalizei procurando ver no semblante o que pensava aquele homem, enquanto isso Aliel nos fitava séria como um paciente esperando um diagnóstico médico.
─ Olhe, Daniel... é esse seu nome, não é? – Perguntou-me, e diante da afirmativa, continuou – Eu sou psicólogo, portanto um homem de ciências. Sendo assim eu não estou credenciado a crer em nada que se não possa explicar à luz da razão e da experiência. Isso que você me contou me parece totalmente absurdo. Entretanto alguns colegas já me falaram algo semelhante à regressão a vidas passadas. Eu nunca lhes dei atenção, é claro. Mas por outro lado, há anos observo Aliel, e ela não apresenta nenhum sintoma que indique distúrbio mental. Ela sempre falava no irmão que não tinha, ou relatava fatos desconexos, e isso, certamente, causou muito receio a seus pais a ponto de eles praticamente ma entregarem. – ao dizer isso sua voz tornou-se mais pausada ainda, como se não quisesse que Aliel ouvisse. – Sendo assim, garoto, eu estou disposto, se ela quiser, é claro, a tentar sessões de regressão. Vou falar com alguns colegas que já têm experiências nessa área para providenciarmos as reuniões. Mas há um detalhe: eu quero que você esteja presente.
Dizendo essas últimas palavras ele me deu seu cartão de visitas e anotou o número da residência atrás. Apertou-me a mão e se despediu. Aliel abraçou-se a mim, e os dois saíram.
Eu não me sentia triste nem feliz. Sentia-me como alguém que está realizando uma tarefa e não pode esboçar nenhuma reação enquanto ela não estiver concluída, como um jogador na marca do pênalti, ou como uma dançarina no Teatro Municipal. Alegrava-me ter visto Aliel, apesar de ela estar casada. Talvez porque me confortasse a idéia de que o marido era alguém tão preocupado com sua segurança e saúde. Nada nele me parecia ser algum usurpador de inocências ou um velho libidinoso, como eu pensara outrora. Além disso, ele me demonstrara confiança ao me dar o número do telefone de sua casa. Isso, aliado a idéia das sessões de regressão, me colocava numa posição privilegiada quanto ao destino de Aliel e me fazia ver que eu continuava ligado a ele. Desde já eu ansiava pela seqüência dos fatos.
CAPÍTULO XIII
“Sic vos non vobis melificatis, apes.”
(Vieira)
Os dias que se sucederam àqueles acontecimentos me foram tomados pela faculdade. Cada dia a grade curricular me apertava mais, e as provas em cima de provas me deixavam às vezes sem noção do dia e da noite. Abria Atlas anatômicos, fechava-os; entrava em laboratórios, saía deles e o cheiro forte do formol me entontecia. De repente me pegava com a barba por fazer, entrava no banheiro, olhava o relógio, passava a mão no rosto e deixava a barba já crescida pra lá. Os cabelos acompanhavam o mesmo ritmo. Meu pai, talvez cansado de me ver pra lá e pra cá, fez um esforço, pediu emprestado um dinheiro e me presenteou com uma moto, uma CG125. E eu saí pelo meio do mundo de moto, corta carro aqui, entra em corredor estreito ali, avança um sinal acolá. Certa vez eu percorria um corredor formado por duas filas de carro quando apareceu bem na minha frente um homem puxando um garotinho pelo braço, mal deu tempo de desviar, quase bato no carro a minha direita. O homem me olhou bravo e vociferou:
─ Você não sabe que é proibido andar em corredor, seu merda!?
O sangue subiu-me a cabeça e eu retruquei com palavras ásperas das quais não me lembro agora, mas não foram de agradecimento. Mais tarde enquanto almoçava, fiquei pensando no ocorrido, e me veio o remorso por ter sido rude com o cidadão, que na realidade era quem tinha razão. Além do mais ele vinha com o filho e se eu não atropelei os dois foi porque ele teve cuidado ao atravessar o tal corredor. Entretanto o que mais me doía era a minha incoerência, uma vez que eu sempre achei os motoqueiros um bando de irresponsáveis, dizia para todo mundo que não entendia por que eles não andavam nas pistas, como todo veículo deve andar. No entanto uma coisa é você reclamar dos outros, outra é alguém reclamar de você. E eu pensei “meu Deus, como nós somos incoerentes, como somos hipócritas, como só pensamos em nós! Se alguém faz algo ilegal, está errado; se somos nós que o fazemos, estamos certos e ninguém pode reclamar.” Naquele momento lembrei-me de um vizinho que vociferava contra o adultério. Para ele mulher-adúltera boa era mulher-adúltera morta. Alardeava sempre que algum caso chegava a seus ouvidos “comigo é na bala”. Até que a sua esposa, a quem ele não permitia trabalhar para não “se perder” o traiu. O quarteirão todo ficou sabendo das puladas de cerca dela, menos ele. Ninguém lhe dizia o que estava acontecendo porque ninguém queria ser responsável por um crime passional. Até que deu-se o desmastreio, e ele a flagrou em péssima hora. Nada fez. Alguns dias depois saía de mudança para outro bairro, pois, segundo ele, “as pessoas dali eram muito fuxiqueiras, e nem ele nem a esposa tinham nomes para andar em bocas de matildes.” Seria irônico se não fosse trágico. Eu refletia naquela situação e novamente me perguntava como é interessante o pensamento e lembrei-me da letra da música: “O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Para minha surpresa, vi o homem e o filho, os quais eu quase atropelava, entrarem no restaurante. Ele não me reconheceu, é óbvio, devido ao fato de eu estar de capacete. Então pensei que ali estava uma boa oportunidade para eu me retratar, pedir desculpas, afinal eu reconhecera para mim o erro, mas isso só não bastava, precisava reconhecê-lo também para os outros, pois só assim poderia ficar em paz com a minha consciência. Dirigi-me então até ele e fiz o que devia. O homem ficou deveras agradecido e também se desculpou. Meu ser ganhou uma leveza excepcional, diria que fiquei feliz. Naquela noite eu não iria dormir com um peso sobre os ombros. Lembrei-me então do Wellington e sobre o que havia me falado sobre pedir desculpas a alguém a quem magoamos. Abri a janela e olhei as estrelas. Vênus brilhava intensamente e eu pensei que se os espíritos evoluídos realmente se tornam estrelas ao morrer, aquele rapaz com certeza está brilhando nessa imensidão espacial. Lembrei-me de súbito de fazer a barba e já me dirigia ao banheiro quando o telefone tocou. Era Aliel, para minha alegria. O marido havia viajado para um congresso e ela estava se sentindo sozinha. Conversamos por quase uma hora e percebi que ela alternava momentos de alegria e de tristeza. Quando ela desligou, eu pensei que talvez a regressão resolvesse alguns de seus dilemas e ela se tornasse uma moça normal para decidir seu futuro com mais clareza, e eu esperava fazer parte dele, é claro, enquanto uma voz interior me dizia “você já faz parte da vida dessa moça, aliás, você sempre fez”.
“O mar tem armas secretas
Que guardam a carne dos peixes
E a solidão do poeta.”
(Fagner/Abel Silva)
As atribulações pertinentes a períodos de provas me tomaram todo o restante do semestre. Em julho não tive descanso porque vieram os créditos de férias, uma forma de antecipar o término do curso, cujo tempo total chegava próximo dos nove anos, e como eu já o havia iniciado fora do tempo, urgia que buscasse recuperar o atraso. Assim o que deveria ser um tempo de lazer, tornou-se um esquadrinhar a anatomia humana sem fim. O pouco tempo livre que tinha, passava-o à beira mar admirando o infinito do oceano e imaginando os segredos ocultos nos labirintos submarinos. Enquanto andava enchia os pulmões de ar para espirá-lo todo de uma vez, em seguida aspirava mais ar. Esse exercício além de me renovar as energias fazia-me viajar no tempo, o vento soprando, a areia açoitando minhas pernas e a maresia penetrando meu ser era o veículo que me transportava a épocas imemoriais. Entretanto, apesar de toda essa afinidade com o mar, e seus mistérios eu não entrava na água. Dava-me imenso prazer ver e senti-lo, mas a idéia de me ver desafiando aquele monstro de água e espuma, rugindo como um dragão colossal me enregelava os nervos. Certa vez, fechara os olhos para ser inundado pela áurea oceânica quando de súbito me vi numa cena que remontava a milhares ou milhões de anos. Nela eu tenho uma barba rala como os soldados de Átila, o huno; tenho na mão esquerda uma lança tosca, primitiva; uma pele de animal e um gorro também de pele me protegem do frio, estou à margem de um oceano, era noite, eu estou ferido e, apesar da roupa, tirito de frio. Agarro-me à lança como se fosse uma tábua de salvação, como se estivesse me agarrando à própria vida, a dor me trespassa a clavícula, enquanto os dentes batem, formando um som monocórdio. Fora isso, o silêncio é ensurdecedor. Aos poucos vou fenecendo e vejo, já fora de mim, o corpo de um caçador, vermelho do sangue que emana de uma ferida imensa, inerte sob o céu de uma primitiva madrugada. Aos poucos vem surgindo uma luz que me conduz ao infinito. Quando abri os olhos vi novamente o impassível oceano me fitando e me desafiando com sua língua de espumas. Refleti sobre a visão que acabara de ter. Seria a visão de uma existência primitiva? Quantas vezes eu vivi? Ou será tudo isso, que me sugere a lembrança de encarnações anteriores, somente fruto da minha imaginação? A resposta para essa pergunta ninguém jamais me daria e eu deveria aprender a conviver com essa dúvida sem me molestar.
Outras vezes eu ia ao shopping. Entrava numa loja de discos, mexia, remexia, depois abandonava o lugar. Ia até a praça de alimentação, comia um sanduíche e voltava para os livros. Foi numa dessas incursões pelo shopping que revi Aliel. O sopapo que senti internamente daria para mover a terra se fosse numa alavanca postada no seu centro. As mãos começaram a suar e eu precisei respirar fundo para reaver parte da calma que me era necessária. Ela estava olhando uma vitrina em que havia uma porção de ursos de pelúcia, parecia escolher um. Ao seu lado, silencioso, um homem que mais parecia um guarda-costas, impassível, fitando-a embevecido, como eu fazia outrora. Ele tinha aproximadamente cinqüenta anos, enquanto o conjunto formado pelos cabelos fortemente grisalhos e os óculos de aros grossos davam-lhe um ar doutoral, como aqueles psicólogos saídos do século XIX, só lhe faltavam o cachimbo na mão esquerda e a direita escorando o queixo. Ou era o fato de prever que ali estava o noivo de Aliel que me fazia dele a imagem de um discípulo de Freud? Aproximei-me do casal, procurando fazê-lo o mais natural possível. Mas outro estremecimento me abalou os nervos, foi quando vi na mão esquerda de ambos o símbolo universal do matrimônio. Hesitei e parei a alguns passos daquela que deveria estar ao meu lado. Ela virou-se para o marido, fez um muxoxo e indicou um dos bonecos na prateleira. Ele assentiu com a cabeça e ela pulou em seu pescoço, rindo de felicidade e beijando-o por todo o rosto. Em seguida os dois entraram na loja, enquanto eu não sabia o que pensar ou o que fazer. Resolvi-me esgueirar pelos corredores e aguardar a saída dos dois. Não demorou muito e eles reapareceram. Com um urso enorme nas mãos, Aliel parecia um bebê de tão feliz. Os dois seguiram pelo imenso corredor na direção da praça de alimentação, seguidos de longe por mim. Foi ela quem indicou uma mesa no meio da praça, a mesma na qual ficávamos antes. Depois de acomodados ela virou-se algumas vezes, como se esperasse a chegada de alguém, talvez sentisse a minha presença. Enquanto isso, sentei-me a uma mesa onde não pudesse ser visto, por várias vezes tive vontade de ir ter com os dois. Aproveitei, então, o momento em que ele se levantou para ir, possivelmente, ao lavabo e me dirigi até Aliel. Para meu espanto, ela não se mostrou surpresa. Sorrindo ela me falou:
─ É difícil ver você, não?
Eu não sabia o que falar estava feliz por ela existir e se transformar na minha razão de viver, estava deslumbrado por ela ser assim tão franca, tão espontânea. Estático assim só pude perguntar:
─ Você casou com ele?
─ Foi. Ele não é tão garotinho como eu falei, é que tive vergonha... – e pela primeira vez eu senti certa falta de confiança em sua voz. Eu então indaguei:
─ Você é feliz?
─ E o que é a felicidade? Eu tenho dezesseis anos e nunca vi ou entendi o que significa isso. Ele me faz bem, é meu amigo e meu pai ao mesmo tempo. Faz e diz coisas tão carinhosas que às vezes acho impossível alguém fazer ou dizer o mesmo. Minha mãe vivia dizendo que sou louca que vivo inventando coisas. Ele me ouve e rir do que eu digo. Se eu o amo? Você pode me perguntar, e eu vou dizer que não sei. Assim como também não sei o que sinto por você. Você é meu irmão. Todas as vezes que sonho com você, você é meu irmão e eu tenho saudades de quando brincávamos na casa de nossa tia. Você não lembra? – perguntou com a mesma voz sumidinha de Miciane.
─ Lembro – afirmei – mas não foi nessa vida – continuei – foi numa outra. Um dia desses, eu tive a visão da nossa casa, chovia muito e você estava muito assustada... – Ela como que iluminada arregalou os olhos e disse:
─ Agora eu lembro – e seus olhos adquiriram uma expressão triste – nossa mãe havia morrido. Foi muito triste e nós sozinhos tínhamos voltado para casa, quando começou a chover. Eu me escondi na cozinha enquanto você me procurava.
Enquanto ela terminava essa narração o marido se aproximou. Ela apontando para mim disse, retomando o ar serelepe:
─ Ernani, esse é meu irmão que eu falei.
Ele olhou para mim sem demonstrar surpresa, seu ar era mais analítico, possivelmente hábito da profissão, do que de cisma. Eu balancei a cabeça afirmativamente, e ele perguntou com a voz pausada:
─ O que isso tem de verdadeiro?
Em poucas palavras eu lhe expus o que sabia até ali sobre mim e Aliel, inclusive a vida em que fomos irmãos.
─ Ninguém como eu deseja mais desvendar esse mistério do que eu. – Finalizei procurando ver no semblante o que pensava aquele homem, enquanto isso Aliel nos fitava séria como um paciente esperando um diagnóstico médico.
─ Olhe, Daniel... é esse seu nome, não é? – Perguntou-me, e diante da afirmativa, continuou – Eu sou psicólogo, portanto um homem de ciências. Sendo assim eu não estou credenciado a crer em nada que se não possa explicar à luz da razão e da experiência. Isso que você me contou me parece totalmente absurdo. Entretanto alguns colegas já me falaram algo semelhante à regressão a vidas passadas. Eu nunca lhes dei atenção, é claro. Mas por outro lado, há anos observo Aliel, e ela não apresenta nenhum sintoma que indique distúrbio mental. Ela sempre falava no irmão que não tinha, ou relatava fatos desconexos, e isso, certamente, causou muito receio a seus pais a ponto de eles praticamente ma entregarem. – ao dizer isso sua voz tornou-se mais pausada ainda, como se não quisesse que Aliel ouvisse. – Sendo assim, garoto, eu estou disposto, se ela quiser, é claro, a tentar sessões de regressão. Vou falar com alguns colegas que já têm experiências nessa área para providenciarmos as reuniões. Mas há um detalhe: eu quero que você esteja presente.
Dizendo essas últimas palavras ele me deu seu cartão de visitas e anotou o número da residência atrás. Apertou-me a mão e se despediu. Aliel abraçou-se a mim, e os dois saíram.
Eu não me sentia triste nem feliz. Sentia-me como alguém que está realizando uma tarefa e não pode esboçar nenhuma reação enquanto ela não estiver concluída, como um jogador na marca do pênalti, ou como uma dançarina no Teatro Municipal. Alegrava-me ter visto Aliel, apesar de ela estar casada. Talvez porque me confortasse a idéia de que o marido era alguém tão preocupado com sua segurança e saúde. Nada nele me parecia ser algum usurpador de inocências ou um velho libidinoso, como eu pensara outrora. Além disso, ele me demonstrara confiança ao me dar o número do telefone de sua casa. Isso, aliado a idéia das sessões de regressão, me colocava numa posição privilegiada quanto ao destino de Aliel e me fazia ver que eu continuava ligado a ele. Desde já eu ansiava pela seqüência dos fatos.
CAPÍTULO XIII
“Sic vos non vobis melificatis, apes.”
(Vieira)
Os dias que se sucederam àqueles acontecimentos me foram tomados pela faculdade. Cada dia a grade curricular me apertava mais, e as provas em cima de provas me deixavam às vezes sem noção do dia e da noite. Abria Atlas anatômicos, fechava-os; entrava em laboratórios, saía deles e o cheiro forte do formol me entontecia. De repente me pegava com a barba por fazer, entrava no banheiro, olhava o relógio, passava a mão no rosto e deixava a barba já crescida pra lá. Os cabelos acompanhavam o mesmo ritmo. Meu pai, talvez cansado de me ver pra lá e pra cá, fez um esforço, pediu emprestado um dinheiro e me presenteou com uma moto, uma CG125. E eu saí pelo meio do mundo de moto, corta carro aqui, entra em corredor estreito ali, avança um sinal acolá. Certa vez eu percorria um corredor formado por duas filas de carro quando apareceu bem na minha frente um homem puxando um garotinho pelo braço, mal deu tempo de desviar, quase bato no carro a minha direita. O homem me olhou bravo e vociferou:
─ Você não sabe que é proibido andar em corredor, seu merda!?
O sangue subiu-me a cabeça e eu retruquei com palavras ásperas das quais não me lembro agora, mas não foram de agradecimento. Mais tarde enquanto almoçava, fiquei pensando no ocorrido, e me veio o remorso por ter sido rude com o cidadão, que na realidade era quem tinha razão. Além do mais ele vinha com o filho e se eu não atropelei os dois foi porque ele teve cuidado ao atravessar o tal corredor. Entretanto o que mais me doía era a minha incoerência, uma vez que eu sempre achei os motoqueiros um bando de irresponsáveis, dizia para todo mundo que não entendia por que eles não andavam nas pistas, como todo veículo deve andar. No entanto uma coisa é você reclamar dos outros, outra é alguém reclamar de você. E eu pensei “meu Deus, como nós somos incoerentes, como somos hipócritas, como só pensamos em nós! Se alguém faz algo ilegal, está errado; se somos nós que o fazemos, estamos certos e ninguém pode reclamar.” Naquele momento lembrei-me de um vizinho que vociferava contra o adultério. Para ele mulher-adúltera boa era mulher-adúltera morta. Alardeava sempre que algum caso chegava a seus ouvidos “comigo é na bala”. Até que a sua esposa, a quem ele não permitia trabalhar para não “se perder” o traiu. O quarteirão todo ficou sabendo das puladas de cerca dela, menos ele. Ninguém lhe dizia o que estava acontecendo porque ninguém queria ser responsável por um crime passional. Até que deu-se o desmastreio, e ele a flagrou em péssima hora. Nada fez. Alguns dias depois saía de mudança para outro bairro, pois, segundo ele, “as pessoas dali eram muito fuxiqueiras, e nem ele nem a esposa tinham nomes para andar em bocas de matildes.” Seria irônico se não fosse trágico. Eu refletia naquela situação e novamente me perguntava como é interessante o pensamento e lembrei-me da letra da música: “O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Para minha surpresa, vi o homem e o filho, os quais eu quase atropelava, entrarem no restaurante. Ele não me reconheceu, é óbvio, devido ao fato de eu estar de capacete. Então pensei que ali estava uma boa oportunidade para eu me retratar, pedir desculpas, afinal eu reconhecera para mim o erro, mas isso só não bastava, precisava reconhecê-lo também para os outros, pois só assim poderia ficar em paz com a minha consciência. Dirigi-me então até ele e fiz o que devia. O homem ficou deveras agradecido e também se desculpou. Meu ser ganhou uma leveza excepcional, diria que fiquei feliz. Naquela noite eu não iria dormir com um peso sobre os ombros. Lembrei-me então do Wellington e sobre o que havia me falado sobre pedir desculpas a alguém a quem magoamos. Abri a janela e olhei as estrelas. Vênus brilhava intensamente e eu pensei que se os espíritos evoluídos realmente se tornam estrelas ao morrer, aquele rapaz com certeza está brilhando nessa imensidão espacial. Lembrei-me de súbito de fazer a barba e já me dirigia ao banheiro quando o telefone tocou. Era Aliel, para minha alegria. O marido havia viajado para um congresso e ela estava se sentindo sozinha. Conversamos por quase uma hora e percebi que ela alternava momentos de alegria e de tristeza. Quando ela desligou, eu pensei que talvez a regressão resolvesse alguns de seus dilemas e ela se tornasse uma moça normal para decidir seu futuro com mais clareza, e eu esperava fazer parte dele, é claro, enquanto uma voz interior me dizia “você já faz parte da vida dessa moça, aliás, você sempre fez”.