quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

DE VIDAS, DE SONHOS, DE ENCONTROS


CAPÍTULO VI
“Graças a Deus que as pedras são só pedras
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.”
(Fernando Pessoa)
No dia seguinte deixei o hospital e voltei para casa. Sentia-me um novo homem. Edificara em mim uma nova pessoa. Não sentia vontade alguma de fumar ou beber. Em mim só havia uma vontade grande de redescobrir a existência, de recuperar o tempo perdido, entretanto não havia pressa. Eu sabia que o futuro vem com o tempo, que eu conseguiria realizar aquilo para que fui destinado. Era final de ano e eu procurei dar vazão às coisas mundanas. Matriculei-me novamente no terceiro ano para me preparar para o vestibular, arrumei meu quarto, joguei papéis inúteis fora e me desfiz de tudo que fosse supérfluo. Precisava reorganizar minha biblioteca, meus discos. Até minha cama eu mudei de lugar. Antes ela ficava entre a janela e a parede, agora eu a pus ao lado da janela para durante as noites admirar a lua e as estrelas.
Às véspera de natal eu estava mais próximo de minha família, como forma de buscar energias para o futuro. Eu nunca havia percebido isso antes, mas o final de ano é um momento par refletir o nosso estar no mundo e nos prepararmos para o ano seguinte, quando temos de escolher caminhos e nos ausentarmos de casa. É nesse período que precisamos de fato armar a estratégia de ação para o ano vindouro. É certo que a questão tempo cronológico, como o concebemos, é apenas uma convenção, algo criado pelos homens para gerar o ciclo social. Mas não é menos certo que ao encerrarmos um ano encerramos uma etapa de nossa vida, pó isso é nesse momento que devemos nos preparar para a etapa seguinte. Isso tudo me fez reflexivo e eu pensava que o meu encontro com Aliel estava próximo, em uma dessas andanças das estrelas pelo céu, talvez sob a constelação de Virgem ou Libra, nós nos reencontraríamos.
Mas foi Ângela que encontrei, numa loja de um shopping. Eu remexia numa arara de camisas em promoção quando ela tocou de leve meu ombro. Ergui a cabeça e a vi sorrindo para mim, não sei se de alegria ou cinismo. Meu coração disparou e eu tive de me segurar para não desabar, meu rosto devia ter ficado branco e eu não encontrei palavra. Ao que ela indagou simplesmente:
─ Te assustei?
─ Que é que você acha? – Respondi, meio sem jeito.
─ Posso falar contigo? – Perguntou ao perceber que a resposta seria sim, pois notara todo o meu desmoronamento.
Saímos e nos dirigimos à praça de alimentação. Alguma coisa me inquietava, como se eu estivesse sendo conduzido para um abismo, como se eu pudesse dizer não, mas não conseguisse. Ela ia séria como um carrasco que leva o condenado ao cadafalso. Sentamos-nos e ficamos alguns minutos em silêncio. Ela pediu um chope e eu um refrigerante.
─ Você vai tomar refrigerante? O que você tem? Aliás, onde você esteve todo esse tempo? Te procurei por todo canto e ninguém tinha notícias.
Eu passei algum tempo calado enquanto ela esperava minha resposta. Até que eu abri a boca para responder e os meus olhos quiseram se encher de lágrimas.
─ Olha – comecei – eu passei por maus pedaços, estive doente, quase morro. Nesse ínterim descobri muita coisa sobre minha vida, tanta coisa que se eu fosse contar você não teria tempo para ouvir...
Ela levantou-se de onde estava e sentou-se ao meu lado, puxando a cadeira para o mais próximo possível de mim. Esse gesto me fez parar. Já sentada ela me beijou. Seus lábios mornos colaram-se aos meus, o cheiro de sua boca me invadiu e eu revi todos os momentos que tive ao seu lado. As lágrimas enfim romperam a barreira do desespero e banharam meu rosto. Eu tive uma vontade louca de abraçá-la, sentir seu cheiro, amá-la ali mesmo para depois adormecer em seus braços, enfim começar tudo de novo. Mas aí eu ouvi a voz do Wellington dizendo “Outras (pessoas) há cuja função é fazê-lo sofrer. Elas precisam desesperadamente de que você sofra, mas você não precisa passar por isso.” Foi então que eu, chorando, fitei-a nos olhos e lhe disse:
─ Eu te quero como nunca quis nada no mundo, às vezes penso que você é a coisa mais importante do mundo para mim, mas você me faz mal e eu não quero mais essa paixão, esse sofrimento. – Era assim que eu me sentia, tão louco por ela que o corpo inteiro reclamava o seu, por isso foi grande o esforço com que eu disse essas palavras.
Ela levantou-se me beijou nos olhos, disse-me “até mais” e se foi, deixando-me em soluços. Naquele momento, ainda com a vista turvada pelas lágrimas que não se queriam conter, eu vislumbrei um rosto me olhando. Era uma menina que estava parada a alguns metros. Fui me detendo e aos poucos pude reconhecer a dona dele. Ela se aproximou de mim e me indagou:
─ Desculpe, mas nós não nos conhecemos?
Enxuguei as lágrimas rapidamente para vê-la melhor. Era Aliel que me reaparecia. Tinha agora quatorze anos e era uma bela moça, os olhos verdes contrastavam com a pele morena, os cabelos soltos davam a ela um ar mais maduro do que a idade. Diante da minha hipnose, ela brincou:
─ Alôô, tem alguém aí? – e simulou bater na janela dos meus olhos. Eu sorri e lhe respondi:
─ Desculpe é que eu estava meio perdido. Senta por favor. – E lhe puxei uma cadeira.
─ Nós não nos conhecemos? – Tornou a perguntar demonstrando seu espírito de criança, que não desiste depois de fazer uma pergunta.
─ Aliel. É este seu nome, não é?
─ E o seu éé...
─ Você não sabe, quando nos vimos você era muito pequena, e eu não lhe disse meu nome, não houve tempo, lembra foi numa praia, creio que Canoa Quebrada, faz tempo.
─ ...Daniel! Acertei? – exclamou ela como se acabasse de acertar a pergunta de um milhão. E emendou – Foi numa praia mesmo, estava me afogando e você veio e me tirou da água, eu devia ter seis ou sete anos, depois eu desmaiei e quando acordei estava em seus braços, você me fez respiração boca a boca, minha mãe que disse. Quando ela chegou feito louca eu ainda estava desmaiada. Quando voltei a mim, havia um monte de gente ao redor, e todas falavam de sua coragem. Quando mamãe me pegou pelo braço eu perguntei seu nome e você disse. Não foi isso?
À medida em que ela ia relatando esse fato eu ia recordando dele e até antecipava algo que ela ainda ia dizer. Eu estava confuso, muito confuso, pois não fora assim que nos conhecemos. E lembrei-me das palavras de sua mãe, quando a encontrei há quase dez anos, que me dissera que a tinha filha o hábito de imaginar coisas. No entanto eu não disse meu nome a ela, e como ela o soube? Talvez tenha ouvido Ângela dizê-lo. Foi isso só podia ser isso. Eu estava perdido nesses pensamentos, enquanto minha antiga amiga pediu um sorvete e agia com muita naturalidade, como se todos os dias nos encontrássemos e ficássemos olhando um para o outro. Para quebrar o silêncio das palavras eu indaguei?
─ Você tem quantos anos, Aliel?
─ Que falta de educação perguntar o nome de uma dama, Sr. Daniel – brincou, como parecia ser a única coisa que fazia a vida inteira – mas para você eu digo, quatorze, fiz agora em setembro. Por quê, você quer namorar comigo?
Eu estava pasmo diante daquela garota, tinha uma espiritualidade que deveria irritar muita gente, e resolvi entrar no jogo.
─ Quero. Aliás, Aliel, eu espero por você há quase mil anos ou mais. Forjei um ar poético para recitar Leoni e comecei: sempre tive a impressão de que...
“Nascemos um para o outro dessa argila
De que foram feitas as criaturas raras
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu trago a alma dos faunos na pupila.

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranqüila

E é tanta a glória que nos encaminha
Nesse Amor de seleção profundo
Que ouço ao longe o oráculo de Elêusis:

Se um dia eu fosse teu e fosses minha
O nosso amor conceberia o mundo
E de teu ventre nasceriam deuses.”

E você quer me namorar? – Arrematei.
─ Quero, mas não posso. – falou sério – eu namoro um menino lá do condomínio. Nossos pais são muito chegados, dizem que nós vamos casar.
─ Você gosta dele? – Perguntei.
─ Não sei, a gente passou a infância toda junta, temos a mesma idade. Às vezes acho que ele é um irmão e tenho pejo de beijá-lo. – nesse momento seu rosto readquiriu o brilho habitual e ela disparou com os olhos de criança – que coisa bonita essa que você falou, e aquela moça que deixou você chorando, quem é? É sua namorada né, seu pérfido, brigou com a namorada e já está querendo arranjar outra...!
─ Você é linda demais – interrompi-a – queria vê-la de novo, pode ser?
─ Claro, podemos ser grandes amigos. Anota o meu telefone que eu anoto o teu e a gente se fala...
Conversamos por mais de uma hora. Depois nos levantamos, eu a beijei no rosto e ela se foi. À noite eu liguei para ela. Quem atendeu foi a mãe. Quando perguntei por Aliel, a mulher, com uma voz austera, quis saber quem queria falar. Tive vontade de dizer que era o menino que encontrou Aliel, perdida, na praia, há dez anos, mas achei estúpido e lhe disse que era um amigo. “Aliel não está” Respondeu a voz do outro lado mais austera ainda. Agradeci e desliguei.





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