quinta-feira, 22 de abril de 2021

COLETÂNEA DE CRÔNICAS DE AIRTON MONTE, PUBLICADAS NO JORNAL O POVO



NAÇÃO DOS BIRITEIROS, 01/08/2012


Pode ser que muitos dos meus compatriotas ainda desconheçam que não é somente no futebol, na violência crescente das grandes e pequenas cidades, nos alarmantes índices de corrupção generalizada que o nosso intimorato Brasil desponte com inaudito brilhantismo em meio ao conturbado cenário mundial. No disputado ranking dos biriteiros de todo o universo conhecido, nós, impávidos filhos desta nação sem jaça, também não chegamos a fazer feio em matéria de encher a cara. Pelo que me foi dado saber de fontes as mais fidedignas, os brasileiros estão bebendo cada vez mais cerveja durante o passar dos últimos dez anos. Iniciando-se nas lides etílicas, pasmem vocês que ora me leem, a partir da precoce idade das quinze primaveras. Nem mesmo a minha tresloucada geração, nos seus áureos tempos, ousou chegar a tanto. Nessa década, o consumo de cerveja sofreu um considerável aumento de trinta por cento por cabeça, o que, pelo andar da carruagem, vai nos levar a alcançar, mais cedo ou mais tarde, o lugar mais alto do pódio entre os contumazes bebedores do “pão líquido”. Isso sem contar com os outros tipos de alcoólicas beberagens. Como se vê, estamos indo bem em nossa marcha para a glória.



Por enquanto, vamos nos segurando, com certa inegável galhardia, num invejável décimo-sexto lugar, mui honroso por sinal, entre os povos cervejeiros, ficando atrás apenas de gigantes da cervejagem como República Checa, Irlanda, Alemanha, Áustria, Austrália e outros candidatos fortíssimos à medalha de ouro nas olimpíadas biriteiras. Entanto, nem tudo está perdido, meus amigos. Resta-nos o honorável consolo de sermos, ainda, os eternos campeões mundiais no que diz respeito à ingestão da nossa popularíssima, tradicional cachacinha de todos os dias. É isso aí, moçada. Pra Frente, Brasil, Brasil. E haja aperitivo para matar a nossa sede insaciável. E tome cachaceiro vicejando por todos os cantos e rincões dessa festejada, festiva Taba de Tupã. Eu particularmente acredito e tenho plena convicção de que o nosso Ceará também dá a sua importante contribuição nesse interminável campeonato de bebedores, participando ativamente para que o Brasil haja alcançado tal digníssima posição no rol dos apreciadores daquela que foi chamada, nos seus primórdios, de bebida sagrada dos faraós. Que beleza. Que maravilha. Que coisa linda é o meu país. Enquanto pudermos nos embriagarmos à tripa forra, estará tudo bem como esteve dantes no etílico Quartel de Abrantes.



Claro que nada melhor para aliviar a barra e fazer esquecer as costumeiras desditas e agruras vividas na dureza do cotidiano citadino do que reunir-se com os amigos nos finais de semana, para jogar conversa fora e beber umas tantas umas e outras. Existe até quem garanta, não sei se em tom de blague ou expressando o que verdadeiramente pensa, que beber é bom, mas que beber todos os dias é bom demais. Eu também achava isso, comungava de tal ideia e seguia ao pé da letra este todo aforisma, sorvendo a minha cervejinha diária em quantidades industriais, prática que por muito pouco não acabou com o meu precioso fígado, levando-me desta para pior mais cedo do que eu desejava. Portanto, amigos meus, mirem-se no meu péssimo exemplo e vão mais devagar com o andor que o santo é frágil feito o barro. E não aconselho nem ao meu pior dissidente afetivo a se arriscar a ver de perto a antipática face da ossuda. Melhor beber com moderação, sem sobrecarregar o organismo com excessos do copo, porque o álcool é um inimigo poderoso, um veneno solerte, perigoso, traiçoeiro, useiro e vezeiro em passar a perna em quem dele faz uso abusivo, sem medir as futuras consequências. E por favor, não me lancem a alcunha de falso moralista, a cuspir no prato em que bebeu. Relato apenas uma experiência que vivi, mais nada. Quem quiser beber que beba até empapuçar os gorgomilhos.



Antigamente, no auge dos meus bons e saudosos tempos de boemia desregrada, quando eu varava noites seguidas pelos bares afora, costumava afirmar peremptoriamente que boêmio era boêmio e alcoólatra era alcoólatra, sem me dar conta de que a fronteira entre boêmios e alcoólatras era sutil e tênue como jamais supunha a minha vã filosofia de botequim. Treda ilusão, mais ledo engano. Assim descobri quase um muito tarde demais. Hoje, sei que os boêmios são, pela própria natureza, dotados de uma exacerbada tendência em tornarem-se escravos vitalícios do seu próprio prazer. E que seu desmesurado amor pelo copo por vezes é capaz de superar, de vencer o seu instinto de sobrevivência. Por isso, amigos meus, eu lhes peço encarecidamente que bebam com sapiente morigeração e amem mais as suas vidas do que o alcóolico produto. Bebam devagar para beber sempre, de modo duradouro, porque nenhum fígado é de ferro, é blindado. E assim, poderão beber durante a existência inteira, celebrando Baco saudáveis e felizes por anos a fio. E lembrem-se de que é inútil tentar acabar com a bebida existente no mundo, pois quanto mais a gente bebe, mais a turma dos produtores fabrica. Ah, luta inglória.


DOMÉSTICOS PERCALÇOS

08/08/2012


Tudo vai bem, tudo legal neste domingo providencial do comecinho de agosto. Pelo menos até as duas horas da tarde. De um dia que parece transcorrer pacificamente, apesar de uma ou outra surpresa um tanto quanto desagradável, porque seria até demais querer uma total tranquilidade o tempo todo. Isso só acontece em obras de pura ficção escritas por um autor entediado demais para criar um enredo com conflitos. Parto do princípio de que uma casa é verdadeiramente um simulacro do mundo lá fora, onde não é raro que as coisas de uso habitual de vez em quando entrem em pane, se quebrem ou os caseiros objetos findem lá por entrar em greve, gerando aporrinhações de duração longa ou passageira. É a descarga do banheiro que se recusa a trabalhar. É o ferrolho do portão da rua que se solta inesperadamente dos parafusos que o prendem. É uma lâmpada que se queima inesperadamente quando mais se precisa dela. É o botijão de gás que se esvazia sem dar aviso prévio, a borracha da máquina de lavar que amanhece furada, partida em dois pedaços feito uma cobra dividida ao meio por um facão afiado. As coisas quebram, terminam seu ciclo de vida igualzinho a todos nós e precisam ser substituídas, algumas com certa urgência, outras nem tanto.



Nessas horas em que campeiam essas domésticas preocupações, mais difícil do que manter-se calmo é encontrar um profissional em pleno domingo para salvar a nossa pátria, resolver a aflitiva situação. Bombeiros, eletricistas, encanadores, pedreiros, todos os quebradores de galhos sumiram de vista como por um passe de mágica, desapareceram na buraqueira como sombras fugidias e sem deixar vestígio. Por mais que se procure os já conhecidos por outras intervenções, todo esforço é vão, pois não estão em lugar nenhum e desligaram os telefones qual estivessem combinados numa geral insurreição. Não há como encontrá-los, nem por força e obra de um milagre. E assim, a sujeitos imprestáveis como eu, totalmente desprovidos de qualquer habilidade numa dessas mecânicas atividades, incapaz até de pendurar um quadro na parede sem derrubar a própria utilizando martelo e pregos, só resta esperar que o outro dia chegue para mandar providenciar os devidos e necessários reparos e consertos. Afora esses pequenos distúrbios, nada mais surge no céu do que os aviões de carreira, além das brancas nuvens polvilhando o azul solar da tarde acima de minha cabeça atarantada.



Sem nada o que fazer pra resolver tantas aporrinhações, tantos percalços domésticos, ligo a televisão e começo a me distrair vendo um documentário, longo demasiado para o meu gosto, sobre o tão falado e assaz comentado Caminho de São Thiago, pelo qual transitam em êxtase e em transe os verdadeiros e falsos peregrinos vindos de todas as partes do mundo, caminhando centenas de quilômetros à procura de um suposto e peripatético nirvana, em busca de supostos conhecimentos esotéricos, místicos e revelações espirituais de grande monta e significado ímpar. Enquanto marcham, incansáveis, rumo ao seu anímico destino, apoiados em rústicos cajados ou em sofisticadas bengalas, todos trazem estampada nos rostos uma expressão indefinível de quem procura o pote de ouro no fim do arco-íris. Têm no coração a esperançosa certeza de que o simples ato de fazer esta caminhada os purgará de todos os pecados passados, presentes, futuros. Como se o Caminho de São Thiago fosse assim uma espécie de lavanderia da alma, uma cornucópia de milagres infindos. Desse ponto de vista, o Caminho de São Thiago tem a mesma serventia mística das romarias brasileiras.



A meu ver, a única diferença é que por lá romeiro atende pelo aristocrático epíteto de peregrino. Cá por mim, não acredito no pensamento mágico de que andar até Juazeiro, Canindé ou qualquer outro santuário daqui e d’alhures consiga mudar magicamente a existência de um indivíduo que nem eu e vocês. Eu também não creio que mortificar o corpo com qualquer tipo de sacrifício físico venha nos causar uma mais que milagrosa evolução espiritual, nos transformando de demônios em anjos da noite para o dia. Ora pílulas, caminhar nada mais é do que uma condição natural dos bípedes, pensantes ou não. Jamais um passaporte infalível e com firma reconhecida nos cartórios sagrados para alcançar a paz e a felicidade espirituais. Se o fosse, o homem feliz não seria o homem sem camisa. Seria o carteiro. E o esmoler pediria esmola dando gargalhadas de porta em porta sob o sol quente. Entanto, o Caminho de São Thiago virou moda, point místico, uma estrada mágica, cujo garoto-propaganda mais conhecido chama-se Paulo Coelho, que descobriu o que para ele foi o verdadeiro e legítimo caminho das pedras.


PENSAMENTOS À DERIVA

16/07/2012


Hoje é domingo, dia de feriado universal. De trabalhar vontade nenhuma eu tenho, para ser sincero. Mas de gozar a folga tradicional em toda a sua plenitude. Passar o dia de pernas pro ar, sem fazer absolutamente nada de prático como a maioria das pessoas. Vejo os meus vizinhos, que mal conheço, tirando os seus carros da garagem com um ar tão feliz estampado nos rostos que chega a me dar uma tímida inveja desses alegres felizardos ansiosos por uma gandaia. Meus desdobramentos celulares já se mandaram, cedinho da matina, doidos para começar o mais breve possível a sua festança dominical. E, em verdade, estão cobertos de razão. Exibindo uma generosidade que não lhes é peculiar, até chegaram a me fazer um discreto e pouco insistente convite para acompanhá-los seja lá para onde forem. Naturalmente recusei a filial oferta de deslocar-me rumo à longínqua Praia do Futuro, porque só em pensar nos paulificantes engarrafamentos que certamente haveremos de enfrentar, preferi restar no confortável sossego do lar, acompanhado dos meus discos, meus livros e a indispensável televisão a cabo, um dos meus poucos luxos de agora.



Além do mais, por serem as ideias de diversão da garotada bastante diferentes das minhas, poderia atrapalhar, com a minha falta de costume, como um trambolho paternal, o sadio divertimento de meus amados pimpolhos. Não é que eu pense que lugar de velho é mesmo em casa ou junto com seus iguais, seus pareceiros de cãs, em torno de uma mesa dos botecos preferidos, conversando sobre nossos semelhantes interesses em comum. Também não posso me arriscar a deixar a casa sozinha, provisoriamente desabitada, por medo de que, ao regressar das peripécias, seja vítima da desagradável surpresa de ver o meu suburbano tugúrio invadido e saqueado pelos solertes amigos do alheio, que pululam livremente em todos os rincões da cidade. Não se trata de exagero paranoico de minha parte, basta dar uma passadinha de olhos pelos jornais do dia, para ver se tenho ou não motivos suficientes para assoberbar-me de cuidados. Principalmente agora, nesse momento crítico, de campanhas eleitorais desencadeadas pelos candidatos ao trono de prefeito, que nos deixam mais desprotegidos do que já o somos, mesmo com os homens da lei trabalhando a todo vapor. Certo que mantenho, soltos no quintal, meus diligentes sentinelas caninos, mas sabe-se lá de que artimanhas são capazes os ladrões profissionais.



Tirando esses pequenos problemas concernentes ao quesito segurança, é-me impossível fugir, apesar de ser domingo, da labuta obrigatória de tomar do papel e da caneta e escrever, por cima de pau e pedra, a compulsória croniqueta do dia, antes do início da pelada televisiva dominical, quando os insossos prélios do triste pebol brasileiro viram estrelas da telinha em quase todos os canais. E haja festival de chutões, de passes errados, de quebração de bola pelos gramados da nação. Sem falar nas intermináveis e repetidas mesas-redondas comandadas pelos contumazes entortadores do idioma pátrio, como Sérgio Porto chamava os comentaristas esportivos. Tem nada, não. Falta pouco para o bemvindo mês de setembro dar as caras, anunciando o tempo de tirar as minhas férias merecidas do jornal e meu exaurido bestunto finalmente entrará no ansiado descanso anual. Enquanto isso não acontece, amigos, tenho de continuar lavorando, futucando cotidianamente o juízo em busca de assunto para traduzir em palavras feito um padeiro preparando o pão do espírito. Desculpem-me, se acaso puderem, se estou sendo um tanto quanto repetitivo ao falar dos domingos nestas mal traçadas. Porém, cada um escreve do jeito que pode e não como desejaria.



Que bom seria, caso houvesse em mim a capacidade de escrevinhar uma obra prima a cada jornada. Entanto, estou muito aquém de tal magnífica condição de ser um escriba genial. Uma de minhas raras qualidades é reconhecer as minhas literárias limitações neste mister que escolhi como ofício ou, quem sabe, haja sido escolhido por ele por razões que me são ignoradas. Deitado a meus pés, meu cachorro me olha, quando em vez, cheio de um carinho e de uma afetividade quase humanos. Alguns podem não acreditar, mas os animais que a gente cria, mostram-se dotados de nos transmitir os sentimentos que lhes povoam a alma, se é que os bichos possuem alma igual a nós. Pelo menos eu creio que sim e deve haver, disso nem cogito em duvidar, um Deus dos cachorros, e que, talvez, seja o mesmo em que nós acreditamos. Penso que todos os animais, sem exceção, vão direto para o céu, porque o inferno não foi criado por eles nem para eles. Estarei eu a divagar, perdido entre tolos e ingênuos pensares? E se realmente estiver equivocado, que mal me podem causar tais distraídas divagações, essas elocubrações sem qualquer utilidade pragmática. Tudo o que se pensa tem alguma serventia. Preencher o vazio e evitar o tédio e me fazer praticar o saudável exercício de rir de mim mesmo.



CORAÇÃO FORASTEIRO

27/12/2011


hega. Basta de falar e escrever sobre natais e viradas do ano. Pelo menos, no que me diz respeito, tal assunto já me encheu as medidas até a tampa. Não tenho mais saco e minha paciência não mais suporta abordar esses temas. Para mim, de há muito se faz chegada a hora de partir pra outra, de navegar outros mares de ideias, embora a maciça e massiva propaganda dessas datas nos seja repetidamente bombardeada por tudo quanto é mídia. A ordem do dia é comprar, comprar, consumir, consumir sem cessar, gastando o que não tempos para adquirir o que não precisamos. Afinal, o décimo- terceiro está aí pra isso mesmo. E todos estão mergulhando de ponta-cabeça num festival de gastança despropositada, se endividando às tontas, sem sequer pensar, por um só momento, de que o preço a pagar custar-lhes-á muito caro e, na maioria das vezes, estará furos acima de suas posses. E o orçamento doméstico que se dane e vá para as cucuias.



O que importa nessa época de falsa fartura e concreto desperdício é entrar na onda de tentação dos shoppings e deles sair com os braços abarrotados de sacolas, pacotes, embrulhos com um de felicidade bovina largamente estampado no rosto, arrastando pela mão os insaciáveis pimpolhos, que sempre querem mais do que lhes é ofertado pelos generosos papais e mamães. Estamos vivendo em plena estação na qual o amor é obrigatoriamente medido pela quantidade de presentes que ofertamos, mais nada. Aqueles infelizes que não podem consumir, dar e ganhar mimos se situam à margem da vida e só lhes resta estender a mão aos passantes, nas esquinas e nos sinais de trânsito, esmolando as parcas moedas que lhes são atiradas como os restos de um banquete. Para esses deserdados da sociedade só resta duas opções: virarem esmoleres ou partirem para o assalto puro e simples. Exagerando um pouco na dose, nos vemos cercados, por todos os lados, de pedintes e de bandidos.



Eu, que não participo desse desenfreado consumismo do natal e fim de ano, me ponho voluntariamente à beira desse rodamoinho, permanecendo em meu posto costumeiro de observador. Não fui feito para ser mais um membro do imenso rebanho de estroinas sazonais e compulsórios que se espalham desordenadamente, invadindo a cidade para onde quer que se olhe. Porém, além de recusar-me firmemente a dançar conforme a dança, nada tenho a ver com toda essa loucura estabelecida à minha volta. E, afinal, quem sou eu para me pensar dotado do direito de julgar o comportamento alheio? Cada um faz o que bem quer e gosta, porque não sou eu quem vai pagar o custo das atitudes dos meus semelhantes. É assim que a banda toca e quem desejar pode naturalmente fazer parte do cordão dos seus seguidores, como acontece no ancestral conto de fadas do Flautista de Hamelim. Acho que poucos leram a história do hipnótico personagem pelo qual me fascinei durante as leituras da infância.



Não fui a nenhuma festinha de “amigo secreto”, porque as acho de uma chatice sem tamanho. Nem mesmo às organizadas por amigos e familiares, embora sentindo um discreto receio de que alguns se magoassem com a minha habitual ausência. Temores infundados, pois os que gostam de mim já estão acostumados com meu papel de ermitão que desempenho invariavelmente nessas ocasiões. Se não me sinto à vontade nesses congraçamentos, por qual razão iria estragar a alegria dos outros? Ah, tomara que esses dias passem rápido e logo comece o próximo janeiro, trazendo-me o desconhecido envolto em seus cueiros. Estou realmente cansado, aborrecido, aporrinhado com o furdunço que me rodeia. Preso às circunstâncias e ao calendário, só me resta esperar, cheio de ânsia, que tudo passe e tudo passará inevitavelmente, bem sei, embora seja demorada a passagem. Entanto, como o bom cabrito não berra, vou ficando na minha, nem falante nem mudo. Apenas com esse sentimento de estranheza grudado no coração de forasteiro.


ELEGIA DO SÁBADO

04/01/2003


Em sendo sábado, é dia de vadiar noturnamente feito um velho gato de beira de telhado, desses que são íntimos da noite. Aliás, sábado tornou-se o único dia da semana em que posso me dar ao luxo de exercer a boêmia em tempo integral. Sem horários fixos, sem pressa nem compromissos urgentes com nada e com ninguém. Romanticamente, chego a definir meu estado de espírito sabatino como um homem que arrebentou as grades de uma prisão após longo e tenebroso cativeiro.

Entanto, há que se ressalvar, nada de sentir-me um agoniado fugitivo, desesperadamente à procura de um esconderijo ou de um abrigo dentro da noite. Simplesmente deixo-me levar pelos instintos poéticos de minha alma enfim liberta, sem essa de bancar o predador, a sair por aí caçando companhia feito um doido como se o mundo fosse acabar amanhã, antes da madrugada chegar.

Prefiro degustar os prazeres que a noite me dá inesperadamente de forma generosa e imprevisível. Poetas não vivem sem o maravilhoso risco das descobertas. Aos sábados, estou mais pra carta sem destinatário do que pra mensagem de náufrago. Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro, se houver motivo é mais um poema que eu faço. Aos sábados, de noite, a cidade se torna misteriosamente minha.

Já não careço de portos seguros. Só me interessa navegar, o que não me impede de olhar em torno e ver o que há. Principalmente a madrugada ainda bonita de Iracema estender-se preguiçosamente lúbrica sobre os horizontes da cidade. Sábado de noite não estou a fim de consolos, confortos, um ombro amigo para chorar as minhas mágoas. Meu negócio é cair numa merecida gandaia até pegar o sol com a mão e depois voltar pra casa cada vez mais apaixonado pela vida.







A HORA DA VERDADE

02/01/2003


Pelo amor de Deus, amigos meus, prestem bastante atenção no que ora vos direi, pois se trata de assunto de suma gravidade e crucial relevância. Todo cuidado do mundo ainda será pouco, já que está em jogo um dos medos ancestrais do homem. Sim, o velho pavor de ser traído pela mulher amada. Fiquem sabendo, pois li numa dessas revistas semanais, que o adultério está se tornando, de modo cada vez mais preocupante, uma prazerosa rotina no cotidiano do imbatível mulheril.

E esta tal aflitiva constatação me foi cientificamente confirmada pelo eminente psicólogo grego Jode N. Simera, num encontro na casa do amigo Neno Cavalcante. E dentre aquelas que mais gostam de praticar o excitante esporte de cornear os indefesos parceiros estão as mulheres entre os 30 e 40 anos. Como se vê, as adoráveis balzaqueanas sempre a quebrar tabus, deliciosamente revolucionárias que são.

As mulheres andam pulando a cerca à vontade, sem a menor dor na consciência, sem o mais anêmico remorso. Na implacável opinião do Dr. Simera, as mulheres estão assumindo, diante de sua infidelidade uma desfaçatez tipicamente masculina. Querem mesmo é rosetar, e não mais traem somente por vingança, por necessidade, por uma louca paixão. E sim, por puro prazer, igualzinho aos homens, na base do ''lavou, tá limpo''.

Quem ficou coberto de trêmula apreensão foi meu compadre Chico Newton, o paxá da Gentilândia. Também não é para menos, pela simples razão de que quem tem seis esposas como ele, tem seis chances de ser passado pra trás. As mulheres parecem estar levando a sério demais o seu papel de Eva. Só que uma Eva meio psicanalisada, que perdeu a culpa do chamado pecado original e que não tem medo nem de cobra.



HERANÇA PATERNA

29/03/2003


Pelo amor de Deus, amigos meus, prestem bastante atenção no que ora vos direi, pois se trata de assunto de suma gravidade e crucial relevância. Todo cuidado do mundo ainda será pouco, já que está em jogo um dos medos ancestrais do homem. Sim, o velho pavor de ser traído pela mulher amada. Fiquem sabendo, pois li numa dessas revistas semanais, que o adultério está se tornando, de modo cada vez mais preocupante, uma prazerosa rotina no cotidiano do imbatível mulheril.

E esta tal aflitiva constatação me foi cientificamente confirmada pelo eminente psicólogo grego Jode N. Simera, num encontro na casa do amigo Neno Cavalcante. E dentre aquelas que mais gostam de praticar o excitante esporte de cornear os indefesos parceiros estão as mulheres entre os 30 e 40 anos. Como se vê, as adoráveis balzaqueanas sempre a quebrar tabus, deliciosamente revolucionárias que são.

As mulheres andam pulando a cerca à vontade, sem a menor dor na consciência, sem o mais anêmico remorso. Na implacável opinião do Dr. Simera, as mulheres estão assumindo, diante de sua infidelidade uma desfaçatez tipicamente masculina. Querem mesmo é rosetar, e não mais traem somente por vingança, por necessidade, por uma louca paixão. E sim, por puro prazer, igualzinho aos homens, na base do ''lavou, tá limpo''.

Quem ficou coberto de trêmula apreensão foi meu compadre Chico Newton, o paxá da Gentilândia. Também não é para menos, pela simples razão de que quem tem seis esposas como ele, tem seis chances de ser passado pra trás. As mulheres parecem estar levando a sério demais o seu papel de Eva. Só que uma Eva meio psicanalisada, que perdeu a culpa do chamado pecado original e que não tem medo nem de cobra.


COISAS DO FUTEBOL

04/02/2003


Sim, devo confessar, depois de longas meditações, que já não resta em mim a menor dúvida. O que o fatídico dia 16 de julho de 1950 representou para a geração de meu pai, o terrível 5 de julho de 1982 significou para a minha. A mesma desesperada tristeza da morte do sonho, o sonho ingênuo e belo de ver a ''Pátria de Chuteiras'' ganhar a copa do mundo, o Oscar do futebol.

Até hoje, o sentimental autor dos meus dias enche os olhos d'água quando lembra a tragédia do Maracanã. Eu, certamente, falarei a meus netos da catástrofe de Sarriá, Barcelona, Espanha. Com a Itália no lugar do Uruguai e Paolo Rossi desempenhando o papel de carrasco que foi de Gighia. Lembro que chorei, ao ver o Brasil desclassificado, feito menino a quem roubaram a primeira bola de couro. Dava gosto assistir àquela seleção do Telê jogar.

Era pura arte, alegria. O escrete de 82 tinha alma de Garrincha e a inteligência do maestro Paulo Roberto Falcão. Ainda sei de cor a escalação da maravilhosa onzena canarinha: Valdir Perez, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior seguravam as pontas lá atrás. No meio do campo o quadrado mágico Toninho Cerezzo, Falcão, Zico e Sócrates esbanjavam categoria e classe. Na frente, o artilheiro Serginho, que, diga-se de passagem, nunca vi perder tanto gol feito.

Na ponta esquerda, a habilidade e o talento de Éder, que botava a bola onde queria, como se tivesse uma fita métrica no olhar. Um time que tinha tudo pra ser campeão acabou a copa num melancólico quinto lugar. Perdemos de três a dois dos italianos como poderíamos ter enfiado uns cinco a zero na esquadra ''Azurra''. Justamente por ser uma arte e não uma ciência exata, o futebol é a surpresa, o susto, o inusitado, o Sobrenatural de Almeida, o Acaso da Silva, o Imponderável de Sousa.



PLATÃO

27/07/2012

Platão foi, é e continuará sendo, quer queiram, quer não, um dos nomes fundamentais da história da filosofia ocidental, apesar de haver nascido em priscas eras, no ano da graça de 429 antes da advinda do Cristo. E a sua doutrina filosófica se caracteriza principalmente pela famosa e popular teoria das ideias e por sua preocupação constante com os temas relacionados ao campo da ética e toda e qualquer meditação filosófica se destina, segundo ele, essencialmente ao conhecimento do Bem. Conhecimento este que Platão supunha mais do que suficientemente capaz para a implantação definitiva da Justiça entre os Estados e os Homens. O comportamento humano, de acordo com o velho e bom pensador grego, deriva de três fontes básicas, principais: o desejo, a emoção e o sentimento. Essas seriam as nossas forças motrizes desde que nascemos. O desejo reside no centro das nossas virilhas, explosivo reservatório de nossa energia sexual. O coração, por sua vez, seria o centro da emoção. Já o conhecimento habitaria a cabeça, a mente e poderia, se devidamente cultivado, se transformar no mestre-piloto de nossa conturbada alma. Será que fui claro ou compliquei o assunto ora em pauta?



Há determinados homens que são a personificação do desejo, cujas vidas estão completamente absorvidas pela ganância pelos bens materiais. Outros existem dotados de um corajoso espírito guerreiro, que não se importam tanto com os objetivos de suas lutas, sejam eles bons ou maus, mas pela luta como um fim em si mesma e são obcecados pela conquista da vitória. Entanto, alguns poucos, e muitos poucos, que não anseiam pela posse infinita, interminável de riquezas nem pela glória efêmera de serem considerados vencedores das olimpíadas da vida mundana. Estes dedicam toda a sua existência a obter conhecimento sobre si mesmos, sobre a sociedade em que vivem, sobre o mundo que os cerca, mergulhadores obstinados na meditação e nos prazeres do pensar, buscando a sabedoria. Platão também costumava afirmar, séculos antes que o Doutor Sigmund Freud inventasse a psicanálise, que determinados prazeres e instintos são considerados ilegais pelo corpo social em que estão inseridos. Todo homem parece possuí-los, mas certas pessoas conseguem, empregando desmesurado esforço mental e físico, submetê-los ao poder da razão, suprimindo-os quase inteiramente do campo consciente. Porém, o filósofo jamais esquece de nos advertir, mandando um sábio aviso aos navegantes: “Em todos nós existe latente essa natureza de animal selvagem, que espreita durante o sono”. Claro está para mim que Freud deve ter sido um atento leitor de Platão.



Como se vê, nem se pode negar, por mais má vontade que se tenha, que o nosso Platão bem sabia das coisas e conhecia as profundezas da alma humana como poucos conseguiram conhecer. E não estou eu a falar nenhuma novidade. Outrossim, cá me pergunto, espantado comigo mesmo, porque cargas d’água baixou-me, de repente, este impulso aparentemente inexplicável de falar em Platão e no que ele pensava, em plena noite de uma quinta-feira chocha e quente, já quase madrugadinha. Sei que sou dado a cultivar vadios pensamentos, mas nunca pensei que chegasse a tanto. É verdade. A mente humana, tal e qual a Seleção Brasileira, não passa de uma manjada caixinha de surpresas. Algumas agradáveis, outras igualmente desagradáveis. Claro que lembrar e pensar nos escritos imorredouros de Platão para mim é sempre um motivo mais que justo de alegria e satisfação, principalmente por constatar que a minha frágil, cambaleante memória ainda não entrou em processo senil de degradação neuronal. E que meus sambados neurônios permanecem fabricando a sua cota habitual de serotonina e outros demais neurotransmissores. Afinal, passei quase toda minha vida de olho pregado nos livros e tal exercício cerebral não deve ter sido praticado em vão, assim imagino.



Ah, somente agora veio-me à lembrança que um dia desses um amigo andou me confessando, pedindo-me o mais completo e absoluto dos sigilos, que estava platonicamente apaixonado por uma mulher que lhe era terminantemente proibida, interditada, devido a razões de ordem familiar. E ele, além de pelar-se de medo do escândalo que tal amor poderia provocar, ainda havia um outro intransponível empecilho aos seus desejos: era um infeliz sabedor de que seu imenso amor de agora jamais haveria de ser correspondido, pelo simples fato da feminina criatura nunca lhe haver dado a menor pelota, nem mesmo quando era solteira, livre, desimpedida. Quanto mais agora, bem casada, com filhos e supostamente caída de amores pelo sortudo maridão. Tentei consolá-lo o mais que pude dizendo-lhe, à guisa de afetivo conforto, que amor platônico é assim mesmo, feito para ser impossível de realizá-lo no plano físico e vivido à distância em toda a sua incomensurável imensidade. Sim, causa sofrimento tantálico como todo grande amor, porém possui um belo e maravilhoso mistério. Resta guardado dentro de nós para o resto de nossas vidas e muitas vezes, dura para muito além da eternidade.



A TEORIA DO NÓ

01/05/2005

Quanto mais se precisa dele, mais passa demasiado rápido esse trem-bala que se chama tempo. Já são quase cinco da tarde deste domingo infernalmente quente e ainda não consegui escrever sequer uma mísera linha da maldita crônica de hoje. Tem dias que é assim mesmo, as palavras se engancham no cipoal fechado da mente como caranguejos escondidos nos esconsos de um mangue. E o pobre do cronista fica coçando a cabeça ou outra parte menos nobre de sua anatomia sem saber direito o que fazer para cumprir a bom termo o seu ofício.

Entanto, as palavras estão lá, eu sei, ao alcance das mãos, dos dedos inertes sobre o teclado do computador como se eu tentasse em vão excitar uma mulher frígida. Por vezes, é assim mesmo, as palavras estão no limiar da sílaba e ao mesmo tempo imensamente inacessíveis. Jorge Amado tinha sua teoria do nó: quando o texto empaca num nó cego, o único jeito é esperar que o nó se desfaça sozinho e dar tempo ao tempo, fazer de conta que tudo vai acontecer como sempre aconteceu, na hora certa, no instante exato e jamais desesperar-se com o branco.

Eu poderia, por exemplo, falar do amor, da mulher que amo, dos filhos, dos amigos, dessa tarde de domingo que cai sobre mim feito uma bênção, falar de vinhos, do gosto do vinho em minha boca sequiosa de sabores, do pernil que comi no almoço, da noite de sábado quando uma estrela cadente cruzou os céus parquelandinos ou não passou de ilusão de meus olhos míopes? Eu poderia falar sobre o que espero da vida neste mês de maio que me traz meus 56 anos e que não sei se será um traiçoeiro presente de grego.

Eu poderia falar, inclusive, do lampejar de ódio que percebi nos olhos daquele menino esfarrapado que me pediu uns trocados no sinal fechado e eu fiz que não vi. Ou do bêbedo esparramado no meio da calçada que nem um trapo sujo, jogado fora. Ou do casal de jovens namorados que brigava em voz alta na mesa do bar como se estivessem sozinhos no mundo. Poderia falar de mim, dos meus medos do futuro, dos poucos, mas grandiosos sonhos que me restam. Porém, não quero falar mais nada, escrever mais nada, só aproveitar a tarde em toda a sua bela plenitude.



O ENGARRAFADO

26/12/2011

Seis horas de um fim de tarde agitado de sexta-feira. Eu, sem muita surpresa, me vejo preso, encarcerado em meio a um engarrafamento quilométrico, descomunal numas das principais avenidas da cidade. Estou completamente, indefesamente cercado, ilhado por um mar de automóveis, motocicletas, ônibus, caminhões. Os motoristas mais nervosos, impacientes, irritadiços fazem soar suas buzinas sem parar, causando uma zoada infernal, insuportável, como se tal sandice servisse para alguma coisa a não ser aumentar o pandemônio em volta. Encontro-me perdido, enjaulado em pleno efervescer do caos que ora domina o trânsito citadino. Não há para onde fugir nem como escapar da armadilha em que me meti. O sinal à frente passa do verde ao vermelho numa lentidão agoniada, desesperante, o que nos transforma a todos em bombas ambulantes prestes a explodir a qualquer instante. Aqui e ali estouram discussões e sou tomado por uma apreensão de que, súbito, aconteça uma briga braba entre os que pilotam os semoventes.

Embora tente me manter calmo, mesmo enfiado na confusão caoticamente instalada, sinto que pouco a pouco uma leve irritação começa a me acometer devido ao cansaço da longa espera. Olho o relógio. Quase uma hora já se passou e o carro se move a passos de tartaruga como se estivesse atolado na lama. E eu, que tinha a ilusão de chegar mais cedo em casa, logo abandono esse ilusório desejo pela concreta impossibilidade de realizá-lo. Quanto mais olho pelas janelas, mais parece aumentar o número de veículos como se brotassem do chão a cada minuto. Pra que tanto carro, meu Deus, pra que tanto carro? Eu me pergunto, ansioso, mergulhado no centro da enorme balbúrdia. Dentro do carro parado ao lado do meu, um casal discute acaloradamente, posso perceber. Apesar dos vidros fechados, estamos tão próximos que posso ouvir os gritos raivosos do homem, enquanto a mulher, por sua vez, berra histericamente ao celular.

 

Do meu lado esquerdo, um jovem permanece estranhamente calmo, indiferente ao inferno que nos cerca, batucando no volante, acompanhando a música que escuta em seus fones de ouvido. Posta à minha frente, uma caminhonete, dessas chamadas utilitárias, carrega na carroceria dois homens vestidos com desbotados macacões azuis segurando uma longa e larga lâmina de vidro perigosamente, pois a frágil mercadoria pode espatifar-se no caso de uma batida, espalhando cortantes estilhaços em todas as direções, inclusive na minha. Atrás de mim, quase colado ao meu para-choque traseiro, o vulto ameaçador de um ônibus lotado, pilotado por um cinesíforo demasiado impaciente. É, torno a pensar comigo mesmo, a coisa está preta e o que é pior, não tem hora pra acabar. O jeito é me conformar com a enlouquecedora situação até quando Deus quiser. Tento relaxar, reduzir a tensão que em mim vai se acumulando, cerrando os olhos e pensando no merecido sossego que me espera quando finalmente chegar em casa.

 

Todavia, me convenço de que o almejado e feliz querer de regressar ao sagrado recesso do lar vai se tonando uma tarefa difícil de ser alcançada, conseguida. Sem querer, entro num estado de hebetude, as pernas entorpecidas, o coração acelerando seu ritmo com o caminhar vagaroso do trânsito e do tempo nesse começo de noite infausto e enervante. De repente, ali imóvel, estático, parado perto da coxia, me bate um medo, aliás, muito natural, de ser vítima fácil de um assalto. O mais disfarçadamente possível, escondo a carteira debaixo do banco por via das dúvidas. Os indefectíveis flanelinhas surgem em enxame de todos os lados, munidos de suas garrafas de água suja e seus escovões imundos, querendo me impor um serviço que não pedi. Despacho um por um, recusando seus préstimos com um sorriso gentil, sei lá o que são capazes de fazer. Finalmente, o maldito engarrafamento se desmancha como um rebanho em fuga e posso seguir o meu caminho. Entro em casa como se entrasse no paraíso. Minha mulher me abraça e me beija. Felicidade tamanha duvido que haja.


"Olho o relógio. Quase uma hora já se passou e o carro se move a passos de tartaruga como se estivesse na lama"


Inventor de delicadezas

11/09/2012


Menino crescido na Gentilândia das décadas de 1950 e 1960, Airton Monte foi, antes de se formar psiquiatra e escritor, talentoso jogador de futebol, herança do pai profissional, e coroinha zeloso - o que chegou a nutrir na mãe a esperança do filho seguir carreira eclesiástica.


Da primeira vocação, restou a paixão pelo esporte, particularmente pelo Tricolor do Pici. Um misticismo profundamente humano permaneceu da segunda, que o fazia se referir a São Francisco de Assis como “meu Chiquinho”. Ateu desde os tempos da juventude, quando ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e no movimento comunista, Airton chegou a contar em entrevista sobre a dor de abandonar a fé cristã.

Encontrou em São Francisco de Assis o homem perfeito para mediar a relação com o “homem lá de cima”. “Ele achava que São Francisco era o maior cristão que havia existido, o exemplo mesmo do comunista”, contou sua filha Bárbara, 35.

Em casos mais graves, a exemplo de uma cirurgia dentária (tinha fobia de dentista), recorria a intercessão de Sônia, sua esposa. Nas últimas semanas, inclusive, quando o câncer no fígado diagnosticado em novembro de 2009 recrudesceu, orava diariamente, como ele mesmo confessou à filha. “Ele era um ateu fajuto”, constatou Bárbara. No domingo, por sinal, o amigo e livreiro Sérgio Braga foi à missa em Canindé em intenção do companheiro de boemia. Semana passada já havia trazido de lá dois escapulários para ele.

A devoção pelo santo representava a opção feita por uma vida demasiadamente humana de Airton, engajada nas lutas políticas do País, inspirada pelas mesas de bar de Fortaleza, envolvida no trabalho psiquiátrico com doentes mentais no Hospital Mira y Lopes. Deixou amigos ao montes, como o escritor Carlos Augusto Viana e o artista plástico Audifax Rios.

Airton Monte - que estreou na literatura com os contos de O Grande Pânico (1979), mas se notabilizou pela crônica, gênero cotidiano, corriqueiro, que exerceu diariamente neste mesmo jornal desde a década de 1990 - foi antes de tudo um profano.

Talvez por isso mesmo tenha recebido apenas oito votos - contra 26 do advogado Ernando Uchôa Lima - para a cadeira de número 14 da Academia Cearense de Letras, vaga com a morte de Barros Pinho. A eleição, realizada coincidentemente ontem, garantiu ironicamente uma homenagem às avessas. “Eu já dei os pêsames à família, estou dando à literatura cearense e também à Academia”, declarou sobre o fato Pedro Henrique Saraiva Leão, presidente da ACL.

Devido a complicações do quadro clínico, Airton não se alimentava mais, estava prostrado numa cama e há dois dias praticamente inconsciente. “O quadro foi de uma malignidade impressionante, mas teve um aspecto muito bom, que ficou exatamente de acordo com a bondade de Airton Monte. É que ele não sofreu”, garantiu o acadêmico, amigo e médico José Telles.

Airton morreu aos 63 anos, em casa, às 20 horas. Deixa a esposa Sônia e os filhos Bárbara e Pablo.



Perfil
Natural de Fortaleza, onde nasceu em 1949, Airton Monte era médico psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará em 1976. Escritor e jornalista, escrevia crônicas diárias para o caderno Vida & Arte, do O POVO; e participou de várias antologias de poetas e cronistas cearenses. Publicou seis livros. Entre eles, Memória de Botequim e Moça com Flor a Boca, que foi indicado para o vestibular da UFC.



Repercussão



Acho que ele não morreu de jeito nenhum. O problema nesse momento é a saudade, a gente vai sempre ficar com um gosto de saudade. Esse é o dano.

Demitri Túlio, jornalista e amigo


Airton escreveu com a alma na ponta dos dedos. E porque fez do afeto arma poderosa contra o esquecimento do que é demasiado humano, não será esquecido.
Fátima Mesquita, secretária de cultura do Município


Airton Monte era um cara muito alegre, muito criativo e gostava muito do improviso. Sempre com um conhecimento da língua bem apurado. Mas enquanto figura humana ele também vai deixar muita saudade.
Miguel Macêdo, jornalista e professor, ex-editor do caderno Vida & Arte



Airton Monte era um dos grandes cronistas do Ceará. Nós tivemos o Caio Cid, depois o Milton Dias e ele foi o terceiro e último grande cronista do estado do Ceará. Eu já dei os pêsames à família, estou dando à literatura cearense
Pedro Henrique Saraiva Leão, médico e presidente da Academia Cearense de Letras
Vai ser uma lacuna. A gente só tem mesmo a lamentar. E ele se foi tão novo, teria muito ainda a compartilhar
Vânia Dummar, jornalista e integrante do conselho editorial do O POVO


Inventor de delicadezas | O POVO





ENTREVISTA COM ALCIDES PINTO

 



(Por João soares Neto)

Agência Carta Maior – O que faziam os seus pais em São Francisco do Estreito, às margens do rio Acaraú, além de fazer filhos?

Alcides Pinto – Fazer filhos e fazer filhos sempre. Além dos 17, consignados em cartório, fora dos que morreram anjos, mais de um coro. Fazia de tudo para sustentar a ninhada. Trabalhava no eito batido, sol a sol, em terras alheias. Era destemido, dinâmico, honesto e de muita fé em Deus, manso e arrogante a um só tempo. Tenho muito dele. Levantava-se com a estrela da manhã e dormia no horário das galinhas. O tempo é pouco para tudo - dizia. Surpreendi-o, muitas vezes, chorando, premido pela necessidade extrema. Um dia, teve que abandonar cinco filhos menores na Estrada Real que dava para Sobral, para não vê-los morrer de fome. Aqui só há a verdade, porque haveria de mentir? Minha mãe tentava abafar seus soluços nas contas do rosário. Não sei dizer como e nem quando meus irmãos voltaram ao lar.


CM – Que atavismo impregnou-te para escrever a tua famosa trilogia?

AP - A experiência e, sobretudo, os sofrimentos pelos quais passei na infância. Atavismo! O sangue puxado da cabeceira da raça na reprodução da espécie. Por outro lado, vivi meus primeiros anos na aldeia numa promiscuidade sem limites. Tudo isso, está escrito em meu primeiro romance, O Dragão. Os costumes e as mazelas de seus habitantes fixaram-se em minha mente e juntaram-se à minha vocação para as letras e para as artes. Meu pai (esqueci-me de dizer) era um poeta nato, puxado aos varões mais primevos da família.


CM – Que ventos tangeram-te de Santana do Acaraú e pra onde?

AP - Meu pai foi morar em Massapê, trabalhar num curtume e carregou os filhos com os cacarecos. Fui estudar com D.Maria do Carmo, rebento da tradicional família dos Pontes. Professora “de casa” sem colégio. De Massapê ingressei no Líceu do Ceará e fui trabalhar com meu tio Hermano Frota, no seu escritório de corretagem da Rua José Avelino, e passei a morar na Casa do Estudante, na companhia do poeta boêmio Sidney Neto.


CM – O que era o Ceará quando você se mudou para o Rio e por que foi?

AP - Na época, Fortaleza era bem melhor. Havia sossego. Os estudantes eram mais idealistas e os professores mestres e educadores. Uma geração heróica, como a de Odilon Braveza (Colégio São João). No Liceu do Ceará, tínhamos Martins de Aguiar, Otávio Farias, Domingos Barroso, Edmilson Souza Lima e alguns outros. Não esquecer os educadores, propriamente dito: Lourenço Filho, Filgueiras Lima e poucos mais. Saindo da bonança para os “tornados”, falemos agora da mocidade e das mulheres, sobretudo das “mulheres livres” da famosa “Pensão da Graça” (veja-se o romance Doutora Isa, de Juarez Barroso). Voltamos ao tempo dos americanos em Fortaleza, mascando chicletes e comprando as garotas da sociedade. Detalhe importante: lembrar o consultório do Almeida na Rua São Paulo. Como a sala de espera era pequena, fazia-se fila na calçada, tinha até freira à espera. Almeida era farmacêutico de diploma e de anel. A maioria de seus clientes sofria de blenorragia (esquentamento, gonorréia) – eu mesmo era um deles. E sem falar aqui no clássico “Curral das Éguas” e da zona de mulheres da Franco Rabelo. Hoje, Fortaleza está enfestada de putas. A praia de Iracema virou passarela, nos becos, nas esquinas das ruas, e por onde se passa. Vamos ao fim da pergunta. Mudei-me para o Rio porque tinha uma vontade louca de trabalhar e estudar sempre pensando em ajudar meus pais.


CM – O que lia na sua juventude? De que forma?

AP - Tudo que me caía às mãos: Sem disciplina, regras, predileção. Mas o que mais me incitava era o romance, o canto, a poesia, e a biografia dos grandes homens etc.


CM – O Rio, antes do Aterro do Flamengo e do alargamento da Av. Atlântida, era um novo mundo ou o eldorado para quem tinha sede de saber?

AP - Eu peguei o Rio em pleno esplendor em 1945, época da guerra. A cidade era dos boêmios, infestada de cabarés. Andava-se em paz durante o dia e a noite. Não havia metrô, mas os bondes comunitários, sempre domésticos e solidários. E para quem tinha sede de saber, como eu, o Rio era ideal. Fui um dos freqüentadores mais assíduos da Biblioteca Nacional, que só fechava às 11 da noite.


CM – Como se meteu com biblioteconomia na Biblioteca Nacional? Repetia a saga inicial de Capistrano de Abreu?

AP - Acabara de ser fundada a Universidade Federal do Ceará (UFC). Eu, Artur Eduardo Benevides e alguns outros fomos os primeiros funcionários, foi quando ganhei uma bolsa de estudos do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação, no Rio, mas, para freqüentar o curso, tinha que possuir o diploma de Biblioteconomia, o que fiz depois, passando o carro à frente dos bois.


CM – Daí, mandou-se para o Ministério da Educação e passou a redigir. Algum dia extasiou-se com a beleza do prédio desenhado por LeCorbusier?

AP - O mural de LeCorbusier fica no rol na entrada do Ministério da Educação, de sorte que tinha que vê-lo todo dia quer queira ou não. Uma obra fina de arte que fascina o espectador. Eu me detinha a contemplá-lo antes de tomar o elevador para o Serviço de Documentação no nono andar.


CM – No início dos anos 50 resolveu fazer coletâneas. Qual a razão?

AP - Trabalhava como redator no Serviço de Documentação e tinha por finalidade fazer o acompanhamento e revisão dos cadernos de cultura e outras coleções, além de redigir com o escritor Xavier Placer, o Catálogo das Publicações do MEC.


CM – Dito por você: “Eu acho que a vida é diabólica. Sou uma pessoa em sintonia com o mundo desconhecido...”. Você ainda pensa, vive e age assim?

AP - Não há porque mudar. A vida, para mim, não oferece outra opção, e o sobrenatural faz parte de minha natureza e minha arte.


CM – Depois das coletâneas, surge o poeta com talento e uma nova linguagem. Isso se deve a quê?

AP - A leitura dos grandes poetas e escritores nacionais e estrangeiros incentivou-me cada vez mais a ingressar definitivamente na literatura.


CM – Como foi o seu reencontro com o Ceará literário dos anos 60?

AP - Não foi difícil a convivência com os intelectuais da época. Nunca perdi o contato com os escritores dos anos 60, uma vez que minha vida literária teve início no Ceará.


CM – Você considera-se um beato, demônio, religioso, maldito ou perdido nesta dimensão?

AP - Não me perco por caminhos nem por rodeios. Sei o que quero e onde quero chegar em qualquer sentido: na religião, com Cristo Nosso Salvador. E o diabo em minha literatura é apenas uma figura de retórica, emblemática. Valorizo-o e ridicularizo-o no decorrer de minhas histórias. É o bobo da corte. Papai Noel de chifre e rabo. Tanto faz aplaudi-lo como vaiá-lo. Nos meus escritos, ele ocupa sempre uma posição ridícula, burlesca, veja-se em meu teatro Equinócio. No Beato pego carona. Sou por natureza um homem místico.


CM – São Francisco é o lugar onde perdeu o umbigo, um santo, uma referência ou ume espírito que baixa em você?

AP - É mais que isso. Foi o lugar onde primeiramente perdi a virgindade, perseguindo os animais, atendendo aos meus instintos atávicos. Ainda hoje temo ser punido por isso. Tinha 10 anos, mas, no lugar, não havia rapariga. E espírito não baixa em terreiro, se em verdade baixa. Sou devoto de São Francisco. Vez por outra visto seu manto. Para mim é um objeto sagrado como uma imagem.


CM – Qual a parte, época ou livro da sua obra que jogaria nas profundezas do rio Acaraú? Ou nunca faria isso?

AP - Nenhuma parte, época ou livro de minha obra jogaria no Acaraú. O rio é a ama de leite que não tive. Às vezes, sonho com suas enchentes, às vezes, com seu leito cheio de vazantes ou simplesmente coberto de areia. Foi no Acaraú que aprendi a nadar e a pescar. Já joguei fora muitos poemas e alguns livros. Mas não faria isso com o rio de minha infância.

CM – Por que o poeta virou ficcionista, ensaísta e teatrólogo?

AP - Sou inquieto e trabalhador como meu pai. O sol não me pega na cama. Ser só poeta para mim era pouco, portanto abracei com mesmo ímpeto o romance, o conto, o teatro etc. E cheguei a enveredar pelo mundo das artes plásticas ao tempo de meu namoro com o concretismo.


CM – Concorda com Alceu de Amoroso Lima que dizia que “a qualidade nasce da quantidade”?

AP - Moreira Campos tinha a mania de dizer: “Eu o invejo, porque em todos os gêneros literários você se sobressai bem”. Mas eu rebatia: Deixe de besteira, Moreira. Tem gênio de um só livro, como o Augusto dos Anjos, ou de pouquíssima obras a exemplo de Flaubert, Moacir de Almeida, descoberto por Procópio Ferreira, autor de Gritos Bárbaros, tinha apenas 20 anos, gênio e continua ignorado no Brasil.


CM – Será que você não está se contradizendo ao dizer no livro Política da Arte (Ensaios de Crítica Literária), que: “o poeta é aquele que sabe apreender a beleza das coisas invisíveis e materializá-las em palavras, dentro das leis criativas e fora dos esquemas da lógica”?

AP - Nada tem lógica em matéria de arte, seja inventiva ou tradicional. Alguém encontra lógica, por exemplo, nos quadros e nos murais de Picasso, Portinari, ou mesmo em Barrica? Tristão de Athaide era um pensador e um grande crítico. Da quantidade, nasce a síntese, portanto a qualidade. O Alceu estava certo.


CM – O que é uma Academia de Letras?

AP - Um elenco de homens e mulheres que se reúnem, falam e discutem sobre literatura sem muita convicção. É mais uma sociedade de curiosos e especuladores que pensam que a imortalidade tem a ver com idéias individualistas. São, não obstante, pessoas de bem, a quem devemos aplaudir, pois se não fazem bem, também não fazem mal.


CM – Viver do que escreve, abdicando a burocracia e as regras do cotidiano, trouxe mais ventura ou pesadelo?

AP - Foi para mim, não obstante os percalços, a melhor coisa que me aconteceu. Em verdade, tirou-me todas as comodidades, fiquei mais pobre do que era, mas, ao mesmo tempo (e isso não se constitui contradição), mais rico. Possuo um tesouro que nem o fogo nem a inveja destrói. Sonhei a vida inteira ser um escritor, e consegui. E reconheço minhas limitações, que não são poucas, mas até o velho Machado dizia que as possuía.


CM – Floriano Martins, crítico literário, define a sua escrita como “a presença de uma linguagem fragmentada, entrecortada por imagens bruscas, e a busca atormentada de mais realidade”. É por aí mesmo?

AP- Floriano está certo. Não imito ninguém. Minha arte é o modelo de minha vida: fragmentada. Estou sempre criando, fazendo, destruindo e vice-versa, como disse Cassiano Ricardo no prefácio dos Cantos de Lúcifer: “Alcides Pinto muda sempre, no espaço e no tempo, pra nunca estar de acordo consigo mesmo”.


CM – Dos que nasceram na sua década de 20 e fizeram-se, entre coisas, poetas, quem você considera do seu nível? Francisco Carvalho, José Paulo Paes, Lêdo Ivo, João Cabral de Melo Neto? Ou serão outros?

AP - Não desejo morrer enforcado. Todos os nomes citados são grandes. É o que posso dizer.


CM – Se tivesse que associar a sua figura e arte a um vulto consagrado da literatura, quem seria?

AP - Ao Poeta Augusto dos Anjos no Brasil ou Rimbaud na França.

CM –Há crítica literária no Ceará? Como é a crítica literária brasileira?

AP–Não. O Brasil, no momento, ressente-se de bons críticos. Pinta um Wilson Martins, um Ivan Junqueira, Au revoir! Álvaro Lins, Haroldo de Campos, Fausto Cunha e poucos outros já “viajaram”. Temos bons comentaristas, mas a pergunta é sobre críticos…


CM – João Pinto de Maria: biografia de um louco tem tudo ou pouco a ver com você?

AP - Tem tudo a ver comigo. Era meu avô. É, sem favor algum, o ponto mais alto da Trilogia da Maldição, por ser João Pinto o único personagem que sustenta a narrativa do começo ao fim.

CM – Quem conta nas letras do Ceará nesta virada do milênio?

AP- Salte a pergunta por obséquio. Deu um branco.


CM – Do que se arrepende de não ter feito?

AP - Devia ter sido mais compreensível e gentil com as mulheres. Eu era muito egoísta e por isso mesmo sofri muito, e ainda sofro, pois algumas das mulheres que amei, estão mortas e outras vivas, mas amo mais aquelas do que estas. Que fazer?

CM – E o que dizer da política brasileira e das CPIs?

AP - A única esperança do povo brasileiro era o Lula na Presidência, mantendo a integridade do PT. Isso foi um sonho? Um pesadelo? Ou foi mais que isso? O certo é que o país está mergulhado num mar de lama e está difícil sair dele inteiro.


CM – Quem falará por você na hora do adeus? O beato, o fauno, o Dionísio ou o satânico?

AP - O Beato.


CM – Quantos livros já escreveu como Ghost Writer?

AP - Muitos. Para falar a verdade uns 10. A maioria no Rio. Alguns tornaram-se famosos. Que ironia! Mas que fazer? Vivo trocando os miolos da cabeça por miolos de pão.


CM – Você concorda com Oscar Wilde quando ele dizia que “vivemos numa época em que coisas desnecessárias são as nossas únicas necessidades?”


AP - O que diz Oscar Wilde reflete fielmente sua natureza e a natureza humana. Ele foi um equívoco na sociedade patriarcal de seu tempo. Tratou-a impiedosamente em seus escritos, tendo como castigo a prisão onde escreveu um dos mais belos poemas da literatura inglesa: A Balada do Cárcere de Reading” (The Ballad of the Reading Gaol).


Fonte: Entrevista com o poeta José Alcides Pinto - Carta Maior


domingo, 7 de março de 2021

A MORTE DO PESCADOR

 

A MORTE DO PESCADOR

As velas do Mucuripe não vão sair para pescar. Pelo menos hoje. A comunidade pesqueira está de luto. Os barcos, parados, tremem ao vento suas velas, num último adeus. Morreu seu Pedro. Não. Não morreu. Foi levado em sua última viagem pelo mar infinito, que guarda a carne dos peixes e dos pescadores, assim como o sussurro dos amantes e a solidão do poeta.

Seu Pedro era o último dos pescadores de sua época. Época em que o mar e a praia só a eles pertenciam, sem a especulação imobiliária, sem essa invasão imobiliária. Época em que o farol velho, o olho do mar, acenava para os barcos, chamando-os à praia, indicando-lhes o rumo. Quando os coqueiros balançavam ao suas palhas e lançavam seus troncos aos céus, como uma torre de babel, lenho a lenho. E a areia branca, quase virgem, ainda sentia o roçar dos pés níveos de Iracema. As casas, caiadas, se estendiam nas ruas com a simplicidade de sua riqueza, sem luz elétrica, sem geladeiras, mas com a alegria das histórias contadas à luz da lua. Quem precisava dos neons? As crianças corriam pela praia, escondiam-se nos barcos, namoravam na areia, e seus risos e sussurros ecoavam pelo céu negro sarapintado de ouro. No recôndito das águas, os mistérios saiam no lombo dos peixes pequenos e grandes e se transformavam em lendas, que os pescadores reproduziam nas portas das casas, entre a fumaça do cigarro de palha e a dose de cachaça, na cozinha o peixe chiava na caçarola ou se embebia na panela, sobre o fogo do fogão a lenha. No silêncio, ouvia-se a música dos ventos “vida, vento, leva-me”.

Seu Pedro conhecia tudo aquilo desde pequenino, quando na jangada do pai já saía mar a dentro. Conhecia o destino dos pescadores, quando a velhice chegava cedo, quando a carne secava nos ossos, enrijecendo as feições. Quando o corpo sumia nos mares e eram encontrados rasgados pelos cardumes. Ou simplesmente se encantavam, sequestrados pela mãe das águas. Conhecia as lágrimas que escorriam dos olhos dos órfãos, das viúvas e das noivas, que ficavam por casar. Ó mar, quanto do teu sal são lágrimas de saudade! Crescera ali e vira os seus indo um a um, inclusive os filhos, dor maior!

Mas a dor maior era ver seu povo expulso da praia. Os novos proprietários da terra precisavam espalhar cimento e pedra, que, como o cobreiro, que se estende até matar o organismo, se estenderam até matar a paisagem. E eles, os verdadeiros donos, tiveram de sair e subir a ladeira. Formar ruelas e casebres, onde hoje descansa o corpo de seu Pedro, numa mesa, rodeado por flores. Dona Raimunda ao pé do esquife não chora, apesar dos olhos chorosos. Lembra de quando o conhecera, há quarenta anos. Ele viúvo, ela moçoila, apaixonada por suas histórias, por ele desde sempre. Lembra que, quando ele ia ao mar, gostava de cantar os versos do poeta cearense Belchior: “As velas do Mucuripe vão sair para pescar...” e ele sempre confidenciava a ela que no meio da solidão do mar, ao ver uma estrela, cantava baixinho “aquela estrela é dela. Vida, vento, vela, leva-me daqui”!

Mas hoje as velas do Mucuripe não vão sair para pescar. A casa de Seu Pedro está cheia dos pescadores, dentro e fora, fumando, bebendo, rezando. Lembrando das histórias reais e imaginárias que seu Pedro contava, ele, o último pescador de sua época.

(Alves Andrade, janeiro de 2019)