LITERATURA DE CORDEL
O CORTIÇO
POR ALVES ANDRADE
BASEADO NO ROMANCE DE ALUÍZIO AZEVEDO
FORTALEZA, 2020
O Cortiço, cordel baseado no
romance de Aluísio Azevedo,
Por Alves Andrade
O CORTIÇO (JOÃO ROMÃO)
João Romão foi, Por uns anos,
Empregado de um vendeiro
Que, morrendo, lhe deixou
A venda e algum dinheiro,
Somou-os ao que já tinha
Como lhe era costumeiro.
Achando pouco o que tinha,
Com uma negra ajornalada
Cama e quitanda juntou,
E a renda dela ajuntada,
Ficou dizendo pra ela
“Es agora libertada”.
Os dois assim amancebados
Vendiam o que podiam,
Do peixe até a cachaça,
O resto era o que comiam,
Só após muito cansaço,
Era que eles dormir iam.
Ele na sua ganância,
Umas terras situadas
Comprou ao lado da venda,
E a cabeça acelerada
Só pensava numa coisa:
A renda multiplicada.
Construiu umas casinhas
Formando grande quadrado
Logo logo ali já era
Cortiço bem afamado,
E o comércio de Romão
Já era o mais procurado.
Depois cuidou de comprar
Perto dali ua pedreira,
Enricava todo dia,
Vivia de suadeira,
Mas estava satisfeito
Com o dinheiro na carteira.
A vida assim lhe sorria,
Dinheiro ali circulava,
Quem labutava na pedra,
O salário que pagava
Tornava sempre ao seu bolso,
Se o pedreiro ali morava.
As mulheres lavadeiras
Que lhe alugavam a casa
Não pagavam pelas tinas,
Que usavam no sol em brasa,
Cantando e sempre voando,
Pois só o cantar te dá asa.
Mas momento então chegou
De pensar no que fazia,
Acumulando riqueza,
A vida era então vazia,
Olhou no alto o vizinho
Pra quem a vida sorria.
Resolveu assim o vendeiro
Ao vizinho se achegar,
Pois tinha ele uma filhinha
Que podia desposar,
Como queria muito ele
Então de vida mudar.
Encontrou em seu Botelho,
Lá da casa um agregado,
Que lhe facilitaria
Penetrar lá no sobrado
E então de Zumirinha
Ser assim seu namorado.
Comprou roupa se enfeitou
Pra seu destino mudar,
Comprou sapato e perfume
Para bem se apresentar,
Mas se lembrou que da negra
Precisava se livrar.
Isso não lhe foi difícil,
Pois a dela liberdade
Fora inventada por ele,
Que lhe escondeu a verdade,
Continuava então escrava,
Sofreria a crueldade.
O vendeiro então tratou
De aos senhores avisar
Que em casa tinha a escrava,
Que fossem lá resgatar
E assim ficaria livre
Pra Zulmira desposar.
A pobre negra entendeu,
Havia sido enganada,
Percebeu que por Romão
Fora vilipendiada,
Abriu-se, pois, com uma faca,
Tava agora libertada.
João Romão fez sua história
À custa de alheia ferida,
Bebendo o suor alheio
Foi vencedor nesta vida,
Pisando em tudo e em todos,
Mas tendo a alma perdida.
O SOBRADO (MIRANDA)
Criou-se de pedra e cal,
Do cortiço avizinhado
Arquitetado no chifre
Desse Miranda, coitado,
Passado pela esposa
De caráter amesquinhado.
Na loja que era sua,
A esposa surpreendeu
Gemendo com um caixeiro,
Dessa forma o mal se deu,
Mas deixá-la não podia
Por causa do dote seu.
Odiou a mulher sempre,
Por ela foi odiado,
O chifre que carregava,
Era por todos notado,
Resolveu mudar de ares
Construiu, pois, o sobrado.
O que mesmo atormentava
Era a sua vizinhança,
O Cortiço era uma afronta
Do sobrado à pujança,
Contra Romão só pensava
Costurar fria vingança.
Na verdade ele invejava
A liberdade do vendeiro,
Que não sentia vergonha
Pois ganhava seu dinheiro
Sem roer chifre nenhum,
Era livre por inteiro.
Ele, Miranda, coitado,
Usava ainda a mulher,
Seu gênio não permitia
Pernoitar em cabaré,
Vivia dia após dia
Do jeito que a vida quer.
Sempre quando ele saía
Do quarto da odiada,
Sentia-se na sarjeta,
Pois tinha a alma humilhada,
Porém, mais a detestava,
Menos via uma escapada.
Até mesmo o Henriquinho
Que estava em sua casa,
Filho de um bom cliente,
Comia a mulher em brasa,
Acobertado por Botelho,
Velho pássaro sem asa.
Foi então que teve a ideia
De atenuar a humilhação,
Comprar título pomposo,
Escolheu o de barão,
Logo o chifre aturaria
E se vingava de Romão.
Essa trama do Miranda
Fez Romão enlouquecer,
Cuidou pois mudar de vida,
Melhor vida a si fazer,
Já vimos que isso levou
Bertoleza a se morrer.
O SOBRADO (ESTELA)
Estela era uma mulher
Maculada de luxúria,
Andava de lá pra cá
Levianamente espúria,
Inquieta pelo amor,
Perseguia-o com loucura.
O ar poento das ruas,
Trazendo de homem o cheiro,
Deformando-lhe a razão,
O corpo vibrando inteiro,
Não importando o amante,
Se rico, ou mero caixeiro.
Não era, pois, por maldade,
Que tinha o sexo ardente,
Mesmo o marido lhe dando,
Nada enchia sua mente,
Nem o vazio do corpo,
Libidinoso, demente.
Com dois anos de casada,
Traiu o marido sem pejo,
Dando-lhe enorme tristeza
E sem conter o desejo,
Rompendo a união, traiu
Aproveitando esse ensejo.
Nunca caçava o marido,
Nas noites de solidão,
Sonhava com todo homem,
Descambava ao rés do chão
Como as cadelas da rua
Buscava suja ilusão.
Pois foi numa noite dessas
Que viu Miranda adentrar
E, pensando não ser visto,
Foi dela se apoderar,
Saciou-se assim covarde,
Fez ela se saciar.
Sempre quando ele chegava,
Ela o sexo oferecia,
E, com os olhos bem fechados,
Que dormia ela fingia
Ele então gozava muito,
Ela o orgasmo atingia.
Porém numa certa noite,
Ela não se controlou,
Segurando-o com as pernas,
Uma gaitada ela estalou,
O ódio que os afastara
Foi o mesmo que os juntou.
Mas ficara então só nisso,
Nas noites de agonia,
Miranda a procurava,
Não se olhavam pelo dia,
Ele sempre moendo chifre,
Que pra ele ela tecia.
Quando a ele veio a ideia
De comprar o baronato,
Viu-se ela baronesa
Uma mulher de fino trato,
Ele então se amaciou
Para cumprir o contrato.
E assim a vida seguiu,
Miranda sendo barão,
Querendo a filha casar
Com o vizinho João Romão,
Suportando assim o desprezo
Comendo o insagrado pão.
O CORTIÇO (AS LAVADEIRAS)
Eram elas do cortiço
Da Estalagem São Romão,
A essência feminina,
De muito bom coração,
Conversavam dia e noite
Ventura e desilusão.
Logo cedo já estavam
Brigando com seus filhotes,
Arrumando bem a casa,
Neles dando cocorotes,
Se dirigiam pra as tinas
Levantando seus saiotes.
Sentava então a Machona,
De origem bem portuguesa,
Mui feroz e berradora,
Pêlos grossos de tigresa,
Tinha um filho e duas filhas
Uma virgem por destreza.
A das Dores sua filha
Tinha moradia rasa,
Um indivíduo do comércio
Por ela quebrou a asa,
Mas quando voltou pra terra
O sócio assumiu a casa.
Carne Mole era apelido
De Leandra, lavadeira,
Casada com um polícia
Que tinha pose altaneira,
Era sempre bem honesta,
Por preguiça brasileira.
Com o Bruno que era ferreiro,
Leocádia era Casada,
Leviana sem limite,
Nunca deu uma disfarçada
‘Té que um dia ele a flagrou
E lhe deu muita pancada.
Ao seu lado senta a Paula,
Muito feia e respeitada
Pelas rezas curandeiras
E por Bruxa alcunhada
Tinha os olhos rasos d’água
Tinha uma cara assustada.
Sentava-se a Marciana
E sua filha Florinda,
Com a casa sempre alimpada,
Se não era mulher fina,
Era com afã que lavava
Cuidando da sua tina.
Florinda, de quinze anos,
E homem já ela pedindo,
Olho de animal no cio,
Pele bronze ao sol luzindo,
Se negando a um e outro,
A virgindade se delindo.
Dona Isabel, uma velhota,
Todos muito a respeitavam,
Era mãe de uma filhinha
Com quem todos se casavam,
Mas mesmo com seus dezoito,
Regras não a visitavam.
Mas ela já fora rica,
O destino tudo levou,
Marido e a vida boa,
Muito triste ela ficou,
Queria nova fortuna,
Mas a filha não casou.
Havia também o Albino,
Um sujeito afeminado,
Tendo sempre um ar bem lânguido
Era triste esse coitado,
Só carnaval o animava,
Punha-se logo assanhado.
Eram essas lavadeiras
Que se punham a lavar,
Assim que o sol clareava,
Começavam a labutar
E o zumzumzum começava,
Não paravam de falar.
Assim nunca se calavam,
Sempre a esfregar, e bater,
Torce camisa e ceroulas,
Os sonos do amanhecer,
E as bandeiras de lençóis
Enfeitando o entardecer!
O CORTIÇO (JERÔNIMO E RITA BAIANA)
Quando ali ele chegou
Com a família de uma vez,
Amante era do bom vinho,
Honesto e bem bom freguês,
Curtia a mulher e o fado
Era então bom português.
Conquistou a simpatia
Por ser bom trabalhador,
Seu João Romão o admirava,
Pois era madrugador,
Por colegas respeitado,
Mas não lhe tinham temor.
Porém num domingo desses,
Rita Baiana avistou,
O requebro da mulata
Logo logo o conquistou,
Foi um dia sem igual,
E a vida ali mudou.
Sentiu passar pelo corpo
Um calor bem diferente,
Gana grande de tomar
Logo um copo de aguardente,
Beber um café bem forte,
Transformou-se, certamente.
Da mulher pegou foi nojo,
Da filha não quis saber,
Trabalho em segundo plano,
Começou muito a beber,
Buscava sempre da Rita
O cheiro de enlouquecer.
Mas a negra tinha um homem
De nome firmo chamado,
Era um grande capadócio
Na casca do alho passado,
Gostava de briga e samba,
Era um cabra descolado.
Rita é negra mui danada,
Amante do bom pagode,
Com suas mãos na cintura,
O corpo todo sacode,
Com mulher daquele tipo
Nem mesmo o diabo pode.
Todo dia lhe era santo,
Trabalhar gostava não,
Se alguém pela mão puxasse,
Saía por esse mundão
Dançando e gozando a vida,
De farra num abria mão!
Foi quando um dia ela viu
Jeromo com um pau na mão,
Firmo dando cambalhota
Pondo as duas mãos no chão,
Jeromo dando paulada,
Firmo dando cabeção.
Foi então que ela entendeu
Que os dois brigavam por ela,
Sentiu-se mulher feliz,
Sentiu-se mulher bela,
Pois os dois já se matavam,
Lutando pelo amor dela.
Foi quando firmo sacou,
De repente uma navalha
Rasgando do outro o ventre,
Assombrou toda a canalha
Que disse “matou, matou!”
Findando aquela batalha.
Rita, vendo esse desfecho,
Temeu pelo português,
Que por ela mataria,
Ódio por Firmo se fez,
No seu rosto da mulata
Instalou-se a palidez.
Algum tempo no hospital
Deixou novo o cavouqueiro,
Retornando desse exílio
Buscou rita por primeiro,
Mas queria era acabar
Com a raça do brasileiro.
E foi triste aquela cena
Que na chuva aconteceu,
Firmo debaixo de paus
Como um rato ali morreu,
Foi na areia de uma praia
Que tudo isso aconteceu.
Depois daquele ocorrido
Os dois então se mudaram,
Morar bem longe dali,
Mulher e filha ficaram
Sem rumo na vida e assim
Tristes caminhos trilharam.
O CORTIÇO (POMBINHA E LEÔNIE)
Nhá Pombinha era uma flor
Que naquele charco viveu,
Mas num quase berço de ouro
Foi então que ela nasceu,
Filha de dona Isabel
Que, tadinha, empobreceu.
Mesmo com dezoito anos,
Não podia se casar,
Mesmo noiva de João costa,
Não podiam se juntar
Porque não era mulher
Sem o sangue a lhe jorrar.
Era a tristeza da mãe
Que via nessa união
A fuga daquele antro,
Sua grande redenção,
Mas isso era impossível
Sem vir a menstruação.
Amada por toda a gente,
Era um anjo de doçura,
Da igreja sabia as rezas,
De livros boa leitura,
Admirada era por todos
Devido a sua candura.
As cartas de toda gente
Era ela que escrevia,
Das tristezas desse povo
Ela o cálculo fazia,
A infelicidade sua
Ela também conhecia.
Leônie é uma cocote
A qual vive muito bem,
Bom carro pra passear
E boa casa ela tem,
Os homens ricos da rua
Explora como ninguém.
Dona Isabel certo dia
Leônie foi visitar
Juntamente com Pombinha,
Foi um bom dia passar,
Mas de fato não sabia
O que estava a planejar.
Queria era mariposa
Com pombinha só ficar,
Levando-a para o quarto,
A começou desnudar
E a lésbica conseguiu
A inocente macular.
Pombinha bem envergonhada
Para casa retornou,
Ficou muito ensimesmada,
Com tudo que se passou,
E num sonho avermelhado
O mênstruo se comsumou.
Que alegria pra Isabel,
O sonho a realizar,
Pois sendo a filha mulher
Já podia se casar
E assim as duas iriam
Em bom sítio habitar.
O cortiço era alegria,
Pois sabiam partilhar
Da satisfação alheia,
Não eram de invejar
Estavam todos felizes
Com pombinha a exaltar.
Houve então o casamento,
Tudo então se confirmou,
Isabel muito feliz
Com Pombinha se mudou,
Foram morar bem longe
No lar que o genro comprou.
Mas a verve da menina
Não era com homem viver,
Pombinha e a bela Leônie
Logo foram se entender
Juntaram o corpo e a manha
Foram homens surpreender.
O CORTIÇO (BERTOLEZA E PIEDADE)
Se havia nesse cortiço
Tanto horror e iniquidade
Grande horror também caiu
Sobre dona Piedade,
Também sobre Bertoleza,
Que agiu com ingenuidade.
De sua terra, Piedade
Com seu marido saiu,
Sofreu como condenada
Na capital do Brasil,
Viu perto a felicidade
Que de repente fugiu.
Mulher simples e honrada,
Casada com um cavouqueiro,
Tinha uma filha lindinha,
Comprava bem do açougueiro,
Mantinha a casa limpinha
E brilhando o mobilheiro.
Porém depois de o marido
A negra Rita conhecer,
A sorte foi pelos ares,
Ficou sem ter nem haver,
Pois o homem bom e amado
Mudou-se todo seu ser
Abandonada no mundo,
Perdeu todo seu pudor,
A qualquer desconhecido
Deu-se mesmo sem amor,
Presa fácil de Pombinha
A filha se transformou.
A outra mais desgraçada
Chamava-se Bertoleza,
Levou a vida de escrava,
Sofrendo grande dureza,
Pagava o jornal aos donos
Pra ser livre e não ser presa.
Amiga de um português
Que morreu estropiado
Depois de inumano esforço
caiu na rua o coitado.
Para não ficar sozinha,
Com Romão viu-se amigada.
Enquanto joão prosperava,
Ela, sem ter feriado,
Trabalhando dia e noite,
Comia o resto sobrado,
Ciente que estava livre,
Mas João a tinha enganado.
Deu-se então que um certo dia,
Começou a perceber
Que João Romão intentava
Outra vida conhecer,
E além do homem perdido
Via a vida enegrecer.
Ser escrava não seria
Foi assim que ela pensou
Quando viu o antigo amo
Que na cozinha adentrou,
Desceu então a peixeira
E o próprio ventre rasgou.
Viu-se, pois, do outro lado
Por ascendestes cercada,
Espíritos ancestrais,
Sentindo então abraçada,
Lembrou do Cristo Jesus,
Da boa nova ensinada.
O CORTIÇO (O CORTIÇO)
‘cordava o Cortiço abrindo
Não os olhos que não tinha,
Porém todas as janelas
Formando uma grande linha,
De onde bem cedo emanava
Cheiro fresco e ladainha.
Sussurros de todo canto,
De boca muito abrimento,
Conversas de outro dia
Retomavam de momento,
Meninos e papagaios
Retornavam seu lamento.
O céu com seu azulado
Grande abóbada formava,
No terreiro aquadradado,
O trabalho começava,
Eram então as lavadeiras
Que o trabalho inciavam.
Os telhados admiravam
O cinzelar na pedreira,
Homens em miniatura,
lapidando-a sem canseira,
No capinzal ele via
Meninos na brincadeira.
As paredes lá da venda
Viam frase repetida:
Quilo e mei de branco arroz,
Copo de boa bebida,
Um fumo bom pra mascar,
Um vinagre na medida.
Enquanto todos dormiam,
A cobra de pedra e cal
Pedia ao bom Deus por todos
Que nunca passassem mal,
Sabendo que no outro dia
Agiriam sempre igual.
Foi com grande tristeza,
Que o Cortiço conheceu
Chifre do Bruno ferreiro,
E bem muito o entristeceu
O sofrer de Marciana,
Desgosto que a filha deu.
Riu dos muxoxos da Rita,
De Romão as trapalhadas,
Dos suspirados do Albino,
De Leocádia as cabeçadas,
Da miséria de Libório,
E das paixões desgraçadas.
Mas aquele ser bruto
O fim próximo sabia,
Pois via outros se erguendo,
‘Té seu nome mudaria,
Ante espadadas e fogo,
Ele então sucumbiria.
Foi assim que grande incêndio
As paredes destruiu,
E no lugar do Cortiço,
Outra estalagem surgiu
Bem mais cara e mais robusta,
Que João Romão construiu!
(Alves Andrade)
FIM!