terça-feira, 11 de junho de 2019

CONTINUAR A REVOLUÇÃO É PRECISO

(Por Alves Andrade)
31 DE MARZO
(JUAN GELMAN)

Ha terminado el mes
Y el hijo sin venir
Y mi hermano sin volver

Ha terminado el mes y no te amé las piernas
Y no escribí ese poema de Otoño en Ontario
Y pienso pienso pienso
Se fue otro mes y no hicimos la revolución todavía.

Juan Gelman é um dos poetas argentinos o qual podemos chamar de engajado. Sua poesia está sempre prenhe de convites para que façamos a revolução. Entre esses poemas está o supraescrito “31 de Marzo”. No primeiro verso, percebemos a preocupação com a passagem do tempo. Terminou o mês (Ha terminado el mes). Daí o título, 31 de Março, mas poderia ser 30 de abril, 31 de julho. A preocupação do eu-lírico é com a passagem do tempo e com a não realização do que é preciso acontecer.
Terminou o mês e o filho sem vir, sem chegar (“Y el hijo sin venir”). Acontecimento trágico, a não chegada do filho. Mas filho de quem? Os filhos da pátria,  exilados, torturados, ou já mortos pela ditadura argentina (1976 – 1988). São os filhos das “Madres de la Plaza de Mayo”, que ainda hoje se reúnem em torno dessa praça para chorar, orar, protestar contra uma ditadura que nunca acaba, por ser sempre uma ameaça à frágil democracia latino-americana. Sãos os filhos das mães brasileiras, chilenas, paraguaias. Muitas, como as da “Plaza de Mayo”, ainda esperando pelos restos mortais dos filhos, para lhes dar finamente descanso sepulcral. Ainda estão aquelas “madres”, hoje “abuelas” (avós), reunidas, e seus gritos, suas preces ecoam para lembrar dos dezoito anos de ditadura, de sofrimento, de arbitrariedade, mas, ao mesmo tempo, uma tentativa de impedir que a história se repita.
Terminou o mês e meu irmão sem voltar (“Y mi Hermano sin volver”). Outra tragédia. Mas irmão de quem? Irmãos de todos os que lutam por ou que pelo menos têm um ideal, todos que comungam da ideia de pacifismo, de liberdade, de justiça. Não precisa ser irmão consanguíneo, basta ser companheiro, compartilhar do mesmo pão. Como bem disse Hernesto Guevara: “Se você treme de indignação diante de uma injustiça social, então você é meu companheiro (irmão)”. Ou seja, faz parte da mesma confraria, pode sentar-se à mesa e con-frater-nizar comigo. Essa ideia de irmandade, presente no poema em questão e  nas palavras do médico citado, é muito profunda, vai muito além da consanguinidade. Beira o Amor de Cristo pela humanidade, nivela-se ao de Francisco em seu trabalho de reedificação da Igreja romana em Assis, e, perdoe-me, é maior que o de Madre Tereza, porque aqui temos o ideal de redenção dos povos através da união, da irmandade, da verdadeira fraternidade.
Terminou o mês e não te amei as pernas, não te admirei as perna (“Y no te amé las piernas”). Mas por que ele não desejou as pernas, metonímia semelhante à usada por Carlos Drumond em “Poema de sete faces” (“meu Deus, mas pra que tantas pernas”)? E é o mesmo Drumond que justifica Juan Gelman: “A tarde talvez fosse azul/ Não houvesse tantos desejos”. São os desejos gratuitos, ou mesmo fortuitos, por algo que não tem importância, como o interesse pela vida sexual de um jogador de futebol ou um cantor de pagode. E isso trava o processo de evolução que é o mesmo processo de revolução. Não fosse esse desvio, a humanidade já estaria em um patamar elevado, e as “madres” não teriam que retornar à praça ano após ano, pois a democracia estaria, no mundo, consolidada.
Esse é o mesmo motivo pelo qual o eu-lírico não teve tempo de ir a Ontário, escrever o poema Otoño. Há preocupações outras, pois o filho não chega, o irmão não volta. E ele pensa, pensa e se entristece porque mais um mês se foi e não fizemos a Revolução (“y no hicimos la revolución”).
É esse, portanto, o grande convite que o poeta nos faz, fazer a revolução. Mas o convite maior seria para continuar a revolução, uma vez que esta já se realiza no dia-a-dia. Não podemos pensar hoje em uma revolução sangrenta, como o foi a Revolução Francesa, a Russa, ou mesmo a Cubana, revoluções feitas pelas mãos do povo, das massas incitadas, mas que serviram a poucos. Chegados ao topo, faz-se necessário se desfazer daqueles que os colocaram nos ombros e os ergueram até o trono, o poder. Aprenderam bem a lição de Maquiavel. Para aqueles revoltosos da revolução é preciso a guilhotina. E assim estamos até hoje sob os pés de uma elite, seja civil ou militar (ou judiciária), que nos acossa, nos humilha e, sempre, que nos ver respirar, acocham um pouco mais o nó. E nos vem com a mentirosa ideia de que, quando as coisas melhorarem, o nós será afrouxado.
É por isso que o convite deveria ser para continuarmos a revolução, pois, cada vez que o poeta pega na caneta, no lápis ou nas teclas para escrever, está fazendo a revolução, lutando para transformar a consciência. Só a Literatura, a Arte, a Música engajadas são capazes de romper a estrutura de alienação que enclausura nosso pobre povo. Mas estamos afastados da Literatura, da Poesia, da Arte. E esse afastamento não é por acaso, uma vez que o acaso não existe. Está tudo devidamente calculado. A mídia televisiva dispõe todos os dias cerca de trinta minutos do seu horário nobre para tratar sobre assuntos sem importância alguma, como a vida sexual de um craque de futebol ou a morte de um cantorzinho de música sem sentido. As redes sociais não precisam dispor esse tempo, uma vez que a população escravizada, sem a presença dos meios de liberdade, já citados, buscam desenfreadamente essas notícias e, talvez, até sonhem com velórios de “celebridades” ou com viagens a Paris.
Recentemente, relendo o poema “Operário em Construção”, de Vinícius de Morais, uma estrofe me chamou em especial a atenção. Segue:



 Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce                                        
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
(disponível em  http://www.suasletras.com/letra/Vinicius-de-Moraes/O-Operario-Em-Construcao/10181)


Nesse poema, o operário (outra metonímia muito bem utilizada, já que representa toda classe trabalhadora) acorda de uma grande letargia que o impedia de ver a importância de um tijolo e do suor do seu rosto. Até que veio para ele o magno dia de sua libertação, quando percebe que tudo que existe era ele que o fazia, portanto era dele. Essa consciência leva-o à “dimensão da poesia”. Mas o que o teria levado à consciência? Possivelmente, a poesia levou-o à consciência e, assim, ele atinge a própria dimensão da poesia, da sensibilidade. A partir desse dia, o operário começa a dizer “NÃO”. Peremptoriamente! Sem delongas, ele começa a conscientizar outros operários e sofre por isso, apanha, é torturado, judiado. Mas continua dizendo “NÃO”. A revolução fez-se nele e consequentemente naqueles que o ouviram. Mas a revolução precisa continuar, porque já existe, já ocorre, só que na inconsciência. No momento em que as pessoas que a fazem tomarem consciência de sua existência, ela estará concretizada, e as mudanças necessárias à sociedade serão, em fim, realizadas.

Mas quem são esses revolucionários que já fazem inconscientes essa revolução? Todos que de alguma forma lutam por mudar uma sociedade, cuja elite (damas, socialites, empresários, oficiais de alta patente, políticos, juízes…) se entristece ao ver a possibilidade de um trabalhador pegar o mesmo avião que ela e/ou frequentar os mesmos shoppings. A elite que paga escolas caras e que não quer ver o filho do pobre ocupar o mesmo acento em uma universidade pública que o seu.  A elite que faz o apartheid social, que segrega, que discrimina. A elite culpada pelo fato de o filho da periferia estudar numa escola sem ar condicionado, sem internet, sem bibliotecas, sem merenda de qualidade, sem nada. Pois, repitamos, isso não é por acaso, o acaso não existe. Esses revolucionários são os professores que saem de casa em um carro popular ou em um ônibus lotado para ministrar aulas para 50 alunos numa sala onde cabem 30. Mesmo que alguns não saibam, mesmo que alguns achem que vão à escola buscar dinheiro, eles estão sim fazendo revolução, estão fazendo transformações. Esses revolucionários são os estudantes da escola pública, que saem todos os dias de casa, a pé, muitas vezes em sol escaldante, para passar até 5 horas sem uma alimentação decente, sem material escolar decente, sem inclusão digital decente. Embora eles pensem que vão para a escola para brincar, zombar das aulas de Geografia, História, Matemática, enquanto miram no celular os últimos acontecimentos da vidas das “celebridades”, com o perdão da palavra, mas estão fazendo a revolução. Imaginemos o dia em que a ficha cair, e o menino e a menina resolverem ser rebeldes e contrariarem as expectativas dessa elite inútil! Resolverem ser estudiosos, pois estudar e frequentar a escola não basta. É preciso ser estudioso, para romper de vez os elos dessa cadeia, desse ciclo vicioso que é gastar o tempo e não fazer nada. O estado mente, a federação mente, o município acompanha, e os três fazem proselitismo na mídia, fingem que gastam dinheiro, que é de todos nós, para educar o filho do pobre, fingem que estão preocupados com seus futuros. Mas entra ano e sai ano e nossos egressos do ensino médio, salvo raras exceções, e as exceções não contam, continuam ao deus dará, pelas esquinas, coçando literalmente o saco, na falta do que fazer.

É por isso que o convite de Juan Gelman para fazermos a revolução deve ser compreendido como um convite para continuarmos o que já está em curso. É preciso que os estudantes da escola pública se conscientizem do seu real papel de revolucionários e sejam rebeldes, para ratificar a frase de domínio público que diz:

“Quando se nasce pobre, o maior ato de rebeldia contra o sistema é ser estudioso”.




sexta-feira, 31 de maio de 2019

DE QUEM É A CULPA?

(Alves Andrade)
Há duas semanas, durante uma aula de Espanhol, trabalhando com adjetivos, enquanto analisávamos alguns exemplos em Português dessa classe gramatical e sua função de modificador, um aluno me perguntou se eu iria dar aula de Português. Expliquei-lhe, então, que estava trabalhando com aqueles exemplos para em seguida transitar para o Espanhol, lembrando-lhes o aspecto concordância nominal.  Feito.
Na mesma semana, em uma outra turma, trabalhando com o gênero sinopse, ao mesmo tempo em que trabalhávamos com vocabulário Ligado à teoria Literária, fiquei assaz surpreso ao perceber que para o grupo, que já havia estudado teoria literária em Literatura de Língua Portuguesa, aqueles vocábulos eram muito estranhos. Os vocábulos eram ficción, versión, argumento, técnica narrativa, novela etc. Era-lhes difícil relacionar esses termos com os outros que haviam estudado em Português.
Nesta semana, estudando os tempos do pretérito, buscando no apagar das luzes, uma definição para o pretérito pluscuamperfecto, encontrei em um site a seguinte definição:
"El pretérito pluscuamperfecto de indicativo se utiliza en español para expresar la anterioridad de una acción pasada respecto a otra también pasada. Es decir: es el pasado del pasado."
Transcrevi a explicação, omitindo a expressão “en español”. E fiquei me perguntando de quem é a culpa pelo pouco aprendizado dos alunos com relação aos conteúdos ministrados em sala de aula e em qualquer disciplina. Será dos professores, que não estamos lendo, estudando, nos preparando o suficiente para as aulas? Será dos alunos, os quais não estão nem aí para o que tentamos ensinar-lhes ou pela sua pouca inteligência? Será dos pais, que não estão preparando seus filhos para encarar com seriedade o mundo, a partir do universo sala de aula? Ou será da falta de peia, como adoram dizer alguns, criticando a juventude hodierna?
Observo dia a dia a prática dos meus colegas em nosso local de trabalho. Vejo sua faina diária como intuito de buscar a melhor forma de trabalhar cada conteúdo. Como são belos, em suas magistrais posturas. Cortando papel, preparando slides, ouvindo músicas, montando jogos, selecionando conteúdos… Estão, pois, devidamente absolvidos.
Se cada pessoa tem seu momento, ou o seu tempo, para aprender algo. Se cada aluno tem uma capacidade diferenciada de assimilar conteúdos diversos. Se cada criança possui uma predisposição para determinada área de conhecimento. Então todos têm o mesmo nível de inteligência, portanto todos estão aptos a aprenderem, em seu tempo, Português, Matemática, História… Também não podemos dizer que não estão nem aqui para os ensinamentos, pois sabemos que muitos se esforçam ano após ano, às vezes exaustivamente, mas no conjunto os ensinamentos não ficam. Estão, portanto, redimidos.
Os pais, por menos preparados que sejam, estão sempre preocupados com o futuro dos filhos, salvo raras exceções. Sabem que o melhor está na escola, no aprendizado de conteúdos que os levarão a uma universidade ou a um curso técnico que lhes possibilitará um emprego no futuro. Assim, estão isentos da culpa.
É sabido que à época da palmatória ou da vara no lombo foi um dos períodos negros da educação e que essa prática afugentava os alunos, sobremaneira da Escola Pública, onde essa prática era constante. O Educador Hippolyte Denizard Rivail, na França novecentista, alertava que educar é antes de tudo um ato de amor. Pregava Alan Kardec (pseudônimo de Rivail na codificação do Espiritismo) que o principal elo entre o educando, o educador e o aprendizado é a empatia, é o tratamento amigável. Pregava ainda que qualquer um que não tivesse esses atributos não poderia ser educador. Desse modo, a vara e a palmatória estão fora do processo.
Mas quem ou o que é o culpado do entrave no aprendizado dos alunos? Simples o sistema educacional vigente. Cheguei a essa conclusão a partir da reflexão feita sobre os ocorridos registrados aqui, nos três primeiros parágrafos. Os conhecimentos, que deveriam estar interligados, estão todos soltos, como se Português, História, Matemática e Literatura, por exemplo, fossem conhecimentos estranhos entre si. Mas o que me surpreende é quando se trata de ensino de línguas. Não existe adjetivo em Língua Portuguesa, Língua Espanhola, Língua Alemã ou mesmo Língua Chinesa. Adjetivos existem em todos os idiomas, assim como os tempos do pretérito e a Teoria Literária. Não nos esqueçamos que aprendemos linguística interativa através do russo Mikhail Bakhtin.  Mas, infelizmente, os alunos não sabem isso. O sistema, não só educacional, mas político, já que todas as nossas ações são políticas, busca em grande azáfama destruir o elo que une as pessoas. Para ele, quanto mais separar melhor. Assim a ideia do coletivo vai mais uma vez para o espaço. A desagregação é generalizada. Não somos mais um povo, somos católicos, mulçumanos, judeus, evangélicos, brasileiros, venezuelanos, petistas, nazistas. Nada temos em comum. É preciso que cada um ocupe seu espaço e tome o do outro, que cada um diga que é o melhor, que mande no outro, uma vez que não podemos trabalhar juntos. Assim a nossa Democracia nunca se consolidará. E no meio desses fogos cruzados, dessas balas cuspidas, está o jovem, devorado e devorador, destruído e destruidor, perdido e perdedor.
Como bem disse Caetano, precisaremos de mais zil anos, para juntar os pedaços do uno que fomos, porque enquanto os homens exercerem dessa forma seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede serão sempre gestos naturais.

terça-feira, 7 de maio de 2019

31 DE MARZO

POEMA DE JUAN GELMAN











Ha terminado el mes
y el hijo sin venir
y mi hermano sin volver.
Ha terminado el mes y no te amé las piernas
y no escribí ese poema del otoño en Ontario
y pienso pienso pienso
se fue otro mes
y no hicimos la revolución todavía.

quinta-feira, 14 de março de 2019

FOGO



Entendo o fogo
Porque sou daqui
(Belchior e Petrúcio Amorim)

Como é lindo o fogo
O fogo em toda sua plenitude
Em toda sua inquietude
Em toda sua destruição

Como é forte o fogo
Em suas reentrâncias
Desfolhado em miríades de pétalas
Separadas por negras sépalas
Em toda sua erudição

Como é sereno o fogo
Na subpele do gelo
No escaldar pleno do deserto
Nas imagens tremeluzentes
Em toda sua dispersão

Como é preciso o fogo
Com toda sua precaução
Queimando vidas
Destruindo corações
Em toda sua Evolução

Como é sábio o fogo
Com toda sua transfiguração
Fogo de riso, fogo de dor
Destruindo para refazer
O mundo sempre em construção!
(Professor Alves Andrade)

A MOÇA DA PONTE



          



Faz muito tempo
que eu não vejo
o verde daquele mar quebrar
nas longarinas da ponte velha
que ainda não caiu
(Ednardo, Longarinas)

            Vocês veem aquela moça, sentada no final da ponte? Claro que não, pois sequer a ponte existe mais. Só seus escombros ainda enfeitam a paisagem e remexem as recordações de quem esteve lá. Entretanto, se alguém olhar bem, não olhar querendo ver, mas olhar, imaginado que ali no final da ponte, que não mais existe, há uma jovem morena com as pernas cruzadas, fitando o mar, como se quisesse tragá-lo, talvez inundá-lo com sua cor, talvez devolver-se a ele, como se dele adviesse. Ela chega, senta-se, cruza vagarosamente as pernas e fita o mar. Ele, por sua vez, enfurecido, parece acalmar-se, como se necessitasse deveras daquela presença, igual a mim. Como se todo o perfume que emanasse dela fizesse um bem maior ao grande Netuno, e sua essência trouxesse calma ao espírito dos oceanos. Ela chega, senta-se, cruza as pernas, fita o mar e pensa. E seu pensamento traz consigo a noite, e, como num ato de pura cumplicidade, o Sol se vai, deixando o privilégio de a ciceronear para a Lua, que, de grande alegria, vem cheia para iluminar cada movimento seu. Mas o sol se retira feliz, já que no dia seguinte volta revigorado. A mãe, deliciada com aquela estada, reina absoluta. Ela chega, senta-se, cruza as pernas, fita o mar, pensa e desfia os dedos longos, um a um. E não toma conhecimento dos meus, nervosos, que estralam de desejos. As estrelas, essas brilham, regozijam com aquele gesto. E a Sírio, como amante regozijada, tremeluz intensamente àqueles movimentos. Ela chega, senta-se, cruza as pernas, fita o mar, pensa, desfia os dedos longos e segura levemente os cabelos, que o Zéfiro teima em leva-los consigo. Mas ela não tem maldade ao não permitir, apenas não quer causar inveja ao restante da natureza.
            Hoje eu fui à ponte que não mais é. E o mar estava violento, enfurecido com as pedras, que, em vão, tentavam contê-lo. Só eu sabia o verdadeiro motivo. Ela lá não estava. Sumiu dos meus olhos, sumiu do mundo. Entretanto se olharmos bem, não com os olhos que buscam o concreto, veremos que lá estará ela, linda, misturando  rusticidez da ponte à beleza do anoitecer.
            Quando a vi pela primeira vez... Quanto tempo, não importa, mil anos, quiçá um dia, o tempo aqui não conta. Quando a vi pela primeira vez, ela ali estava, e de súbito fui arrebatado para um lugar que não há igual. Talvez eu estivesse, a partir dali, dentro de seus olhos, na saliva que transparecia de seu sorriso, nas partículas secretas de seu perfume ou nas notas dissonantes de sua melodia predileta. Lá estava eu, e não sabia onde. Daquele momento em diante, não era mais eu, era tudo que emanava dela, vivi como o insano que me tornei. A vida era um sonho louco. Nada mais me importava, somente sua presença me era interessante.
            Nos lugares mais quiméricos estivemos. Passeava no céu de sua boca, surfando  beijos intermináveis, pelos bancos das praças; emaranhava-me em seus cabelos, em devaneios etéreos, nas mesas de bares. E meu viver tornou-se um entrelaçamento de seus braços em abraços encantados, pelas orlas dos mares. Não falava. As palavras nada diziam. A única coisa que me traduzia a vida era seu nome. Qual? Não sei. Não sei mais. Nem sei se o soube algum dia. Foi-me volátil. Como Hermes, sumia vida a fora para regressar pelas madrugadas. Mas é apenas um miúdo detalhe. O certo é que esses foram os momentos mais felizes da minha estéril vida. O nome possivelmente sequer existiu. É provável que fosse apenas mulher. Era bom sentir-me em seu âmago. Como explicar? Não sei... Eu estava passeando em meu íntimo, quando ela se enterrou em ser, adentrando as veias do coração e se espalhando cérebro adentro. Ocupou todos os neurônios, emperrou-me o raciocínio, e fui feliz. A felicidade era realmente aquilo! A felicidade era amá-la!
            Antes eu era um ser normal. Trabalhava simplesmente, comia nos refeitórios e ocupava os dormitórios pelas noites mortas. Sorria para agradar e imaginava o amor sempre. Saía às noites e tornava quando a Lua ainda não cumprira a metade de seu percurso. Era um mero habitante do planeta.
            E ela então surgiu, no dia em que a vi. Pernas cruzadas, mãos entrelaçadas e olhos fitos no mar. Surgiu como os mistérios que os oceanos guardam. E, assim, vivi como os deuses, acima de todos os bens, superior a todos os males. Eu era um deus, um deus louco, um deus sobre todas as mediocridades humanas! Um deus.
            Mas...
            Aí! Como éter, desapareceu! O mundo tornou-se negro, sombrio, nu. Não existiriam mais luares, e pranteei! Procurei-a em todos os lugares, vasculhei todas as gavetas, revirei todos os papéis. Busquei-a em todos os recantos onde sabia haver uma digital sua ou a marca de um suspiro. Não era mais um homem, tampouco um deus. Sofria, como sofrem as mães que perdem seus filhos para a guerra ou para as pestes. Sofria como os mortais que um dia conheceram a eternidade. Passei então a respirar o mundo, em busca de algo que a trouxesse. Aspirei todos os perfumes, mas não senti o olor que me restituiria a glória. Olhei todos os rostos e em nenhum vi os lábios que me restituiriam o sorriso. Abri todas as portas, e em nenhuma habitava aquela que vive em meu íntimo. Cansado, estafado, senti meus olhos secarem e não mais chorei. Resignei-me à fealdade do mundo.
            Certo dia, estava sentado em uma calçada às margens da vida, quando uma leve brisa tocou meus lábios, e juntamente com ela, seu perfume, o cheiro dela. E para minha maior surpresa, lá estava ela. Sorri e chorei, depois de muito tempo. Era a vida que se-me devolvia. Toquei-a. Era ela! Beijei-a e sorri-lhe. Era ela! Retomamos o trem das emoções e vivemo-las como nunca ninguém ousou. Não, não perguntei por onde voejou. Seria infantil. Amei-a simplesmente, e as pessoas puderam me ver, eu e a ela, por praças, bares, estrelas, mundos! Eu e a moça morena!
            Um dia, ela se foi de vez. Tornei a ser uma pessoa normal. A chuva molha meus cabelos, e às noites, amo-a em sonhos. Do que mais preciso? Ela existe. E essa certeza me basta. Ela pensa em mim. E essa dúvida não carrego. Só espero que aquela brisa volte, e, com ela, a Moça da Ponte, cuja presença, ali nas longarinas, só eu percebo, enquanto a Natureza toda se revolta por não vê-la no lugar de onde nunca se ausentou: a ponte.
(Alves Andrade)