Mia
Couto, Vozes Anoitecidas, 2ª edição, pag. 51 a 57
Tarde
de madeira e zinco. Com telhados pendurados, a cacimba a raspar-lhe.
Molhadas, as pálpebras da tarde parecem soltar morcegos.
No
bairro de caniço a paisagem é beijada só pela morte. Saíde
regressa a casa, tropeçando pragas. É rasteirado pela cerveja. toda
a tarde entornada no seu desespero.
-Amigos?
Caraças, são os primeiros a lixarem um gajo!
Estoiram
risos nos umbrais das portas.
-Riam,
cabrões.
Remexe
os bolsos. Cigarros: nada. Fósforos: nada. As mãos impacientes
interrogam o vestuário. Apetecia-lhe o fumo, precisava da força de
um cigarro, da segurança dos gestos já feitos.
-Olha
o Lata de água. A mulher nem sai de casa, desde que ele meteu-se na
bebida.
Não
era verdade. As mulheres sempre recebiam o prémio de se ter pena
delas. Sacanas dos vizinhos. Só estão perto quando querem espreitar
desgraças. No resto ninguém lhes conhece.
Entrou
em casa e fechou a porta. A mão ficou no trinco, distraída,
enquanto ele passeava os olhos naquele vazio. Lembrou-se dos tempos
em que a encontrou: foram bonitos os dias de Júlia Timane!
Tinha
havido muito tempo. Está sentado numa paragem à espera de nada,
dessa maneira que só os bêbados esperam. Ela chegou e sentou-se ao
lado. A capulana que trazia sobre os ombros parecia pouca para um
frio tão comprido. Começaram de falar.
-Sou
Júlia, natural de Macia.
-
Não tens marido?
-
Já tive. Por enquanto não tenho.
-
Foram quantos os maridos?
-
Muitos. Tenho filhos, também.
-
Onde estão esses filhos?
-
Não estão comigo. Os pais levaram.
Ele
ofereceu o casaco para a cobrir de frio. Ala ajudou-o a encontrar o
caminho para casa. Mas acabou por ficar aquela noite. E as outras
noites também.
Quando
souberam que andava com ela, condenaram-no. Ela estava muito usada.
Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu corpo. Ele não
quis ouvir. Foi então que passaram a chamá-lo de Lata de água. Em
toda a parte a alcunha substituiu o nome. A água aceita a forma de
qualquer coisa, não tem a própria personalidade.
Com
o tempo foi-se apercebendo de uma coisa grave: ela não lhe dava
filhos. Isto ninguém podia saber. Um homem pode ter barba,
não-barba. Agora filhos tem que tirar: é um documento exigido pelos
respeitos.
Um
dia disse-lhe:
-Temos
que ter um filho.
-
Não podemos, você sabe.
-
Temos que arranjar maneira.
-
Maneira , como? Se eu não tenho a culpa? O hospital explicou o
problema: é você que não tira os filhos.
-Não
estou a falar de culpa. Já estudei o problema, a solução já
descobri: abastece-se lá fora, mulher.
-
Não estou a perceber.
-
Estou-te a dizer: dorme com outro. Eu não vou zangar. Só quero um
filho, mais nada.
À
noite ela saíu. Voltou muito tarde. As noites seguintes ela fez o
mesmo. Foram muitas noites.
Ele
perguntou:
-Uma
vez não chega?
-Não
quer um filhos? é bom garantir.
-
Faça lá maneira que vocês sabem. Mas rápido, não quero falta de
respeito.
Júlia
engravidou-se. Ele festejou a notícia. Aquelas primeiras semanas
foram muito felizes. Até que uma vez ela acordou-a no meio da noite:
-
Júlia, quero saber: quem é o dono da grávida?
-Armando,
você jurou que nunca havia de perguntar.
-
Agora já quero esse nome. Não podes dar parto sem eu saber a
verdade do pai dessa criança.
Júlia
permaneceu calada e arrumou-se outra vez na cama. Ele sacudiu-a com
violência.
-
Vais dar-me porrada? assustou-se
ela.
-
Quando não disseres, vou-te dar.
-
Não serei eu sozinha a batida. É capaz que vais aleijar o teu
filho.
Ele
olhou para si mesmo: estava de joelhos, parecia estar de rezas. Um
homem que exige não fica na posição dos que pedem. Levantou-se e
foi acender o xiphefo. Na sombra falou-lhe, já calmo:
-Dorme
Júlia, eu não quero ouvir esse nome. Mesmo quando te pedir outra
vez: nunca fales essa pessoa.
Ela
sorriu, destapou o lençol e mostrou aquele redondo da lua na
barriga.
-
É seu filho, Saíde. É seu.
A
criança nasceu. Ele confirmou, então, a suspeita de um sentimento:
o miúdo era um estranho, um remendo na sua honra. Mas um remendo
vivo, chorosa testemunha das suas fraquezas. Às vezes gostava-o e
ele era seu. Outras, o bébé era um intruso que o vencia.
Na
vizinhança ningém desconfiava da identidade do pai. Mas Saíde
estava cada vez mais inseguro: olhava a criança e parecia que ela
sabia de tudo. Quis um filho para esconder vergonha. Agora, tinha um
filho que ameaçava o segredo da sua vida. Cada vez era mais difícil
aquela morada. Ciumava dos cuidados que a mulher dedicava ao pequeno
rival. O futuro atrapalhava-o como um caminho escuro.Mais e mais
vezes batia na mulher, cada vez mais passeava nas bebidas. Nunca
bateu no miúdo. As porradas que lhe queria dar destinava-as na
mulher.
Sentiu
a força do vento na porta e acordou da lembrança. Sempre que se
recordava trabalhavam facas dentro da alma. Estava proibido de ir ao
passado. E tudo por causa de Júlia, raio de mulher. Fechou a porta
coma decisão da fúria.
-Sua
puta !
E
desatou aos pontapés. Queria feri-la, transferir para ela as dores
que sentia. Caíram latas, num barulho enorme. Ele não esmoreceu:
debruçado sobre a cama insultava-a, cuspia-lhe, ameaçava-a da morte
derradeira. Os vizinhos, ele já sabia, não viriam acudir. E, aquela
noite, a raiva era demais. Havia de lhe bater até sangrar. Puxou do
cinto e usou-o com tanta vontade que o balanço o fez cair sobre a
mesa. Pratos e copos caíram, rasgando outra vez o silêncio da
noite.
De
repente, sentiu um barulho na porta. Quando olhou esse alguém já
tinha entrado.
Era
Severino, o chefe do quarteirão.
-Que
queres, Severino?
-
Calma, Saíde. Para quê tudo isso?
Ele
respirava como se alimentasse muitas almas.
-
Senta-te, Saíde.
Ele
obedeceu.Nos suspiros cicatrizava o fogo da alma.
-Porque
você faz sempre isto? Já viu bater assim numa mulher?
Ele
não respondeu. Tentava baixar aquela quentura dentro do peito. Ficou
assim uns minutos, até que respondeu:
-
Eu não estou a bater em ninguém.
Severino
não percebeu. Deve ser está grosso, vai começar uma conversa de
muitas coisas. Mas Saíde insistiu.
-
Não há ninguém nesta casa. Só sou eu sózinho.
Severino
olhou em volta, desconfiado. Não havia, realmente, ninguém.
-Pode
ver em todo o lado. A Júlia não está, há muito tempo que foi-se
embora. Eu não estou a bater contra ninguém.
-
Desculpa, Saíde. Pensei...
E
como não encontrasse palavras decidiu-se a sair.
Andava
de costas como se a surpresa fosse uma cobra ameaçando saltar-lhe.
-
Severino?
-
Sim, estou a ouvir.
-
Eu faço isto não sei porquê. É para vocês pensarem que ela ainda
está. Ninguém pode saber que fui abandonado. Sempre que bato não é
ninguém que está por baixo desse barulho. Vocês todos pensam que
ela não sai porque sofre da vergonha dos vizinhos. Enquanto não...
Severino
tinha pressa de sair.Saíde estava com os braços desmaiados, caídos
ao lado do corpo. Parecia que a carne se mudara em madeira e que a
desgraça havia esculpido nela. Severino saiu, fechando a porta com o
cuidado que se guarda para o sono das crianças.
Lá
fora uma multidão aguardava das notícias. O chefe do quarteirão,
com um gesto vago, espalhou a sua voz:
-
Já podem ir. A mamã Júlia está bem. Ela está a pedir que voltem
para vossas casas, dormirem descansados.
Alguém
prostetou:
-Mas
Severino...Afinal, como é? Tanto barulho...
O
chefe do quarteirão, com sorriso atrapalhado:
-Eh
pá, você já sabe como são essas nossas mulheres."