Trata-se de textos escritos a partir de experiências com pessoas, jovens e/ou adultas, para levar à reflexão sobre alguns aspectos da vida, como política, literatura, História, Felicidade. DEIXE UM COMENTÁRIO
quinta-feira, 28 de novembro de 2024
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
NA ESCURIDÃO MISERÁVEL
FERNANDO SABINO
“Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente, encostada ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:
ELOQUÊNCIA SINGULAR
Crônica de Fernando Sabino
Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:
— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que…
O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:
— Não sou daqueles que…
Não sou daqueles que recusam… No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que… Resolveu ganhar tempo:
— …embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou…
Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.
— …daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa…
Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:
— Não sou daqueles que…
Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:
— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada…
Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:
— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.
Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão “daqueles que” era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:
— …não sou daqueles que, conforme afirmava…
Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:
— Senhor Presidente. Meus nobres colegas.
A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que…
— Como?
Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:
— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.
Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.
— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.
— Eu? Mas eu não disse nada…
— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte.
O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.
— Que é que você acha? — cochichou um.
— Acho que vai para o singular.
— Pois eu não: para o plural, é lógico.
O orador seguia na sua luta:
— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente…
Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta…
— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.
— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública…
E entrava por novos desvios:
— Muito embora… sabendo perfeitamente… os imperativos de minha consciência cívica… senhor Presidente… e o declaro peremptoriamente… não sou daqueles que…
O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:
— Senhor Presidente, meus nobres colegas!
Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:
— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.
Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.
domingo, 12 de novembro de 2023
UMA VELA PARA DARIO
DALTON TREVISAN
Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que façam um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados com vários objetos de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade.
Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio quando vivo só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
A última boca repete. Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.
Conto publicado no livro 33 Contos Escolhidos, Ed. Record
terça-feira, 15 de agosto de 2023
O PROFESSOR INVENTIVO
(Por Alves Andrade)
Fazia seis anos que eu ministrava aula naquela conceituada escola. Não vou citar seu nome porque ela não existe mais, e é complicado falar dos mortos a não ser coisas boas. E o que eu vou narrar aqui, nisso que chamo crônica, apesar de não ser ruim, também não é nada de bom. É um episódio que ficou registrado mais em minha memória do que nos anais daquela instituição, que não existe mais.
Como já afirmei, fazia seis anos que ali trabalhava no departamento de Língua Portuguesa. Fazia pouco tempo que havia me iniciado nessa inglória luta que é vender algo que ninguém quer comprar, a educação, o conhecimento. Somos bárbaros, invadindo o desconhecido, impondo nossos saberes, mesmo sabendo que seremos a todo instante combatido pela ignorância e a decisão de não abandonar essa bastilha. Mas com jeitinho, vamos conquistando um e outro território, muitas vezes inexplorados. E assim vamos, espada em riste, sorriso nos lábios e uma vontade danada de ver todo mundo compreendendo as entranhas de um texto. É esse o desejo do professor de Língua Portuguesa. Pois bem. Apesar de todo esse embate havia muitos alunos e alunas que admiravam nosso trabalho. Tinha, inclusive, recebido alguns elogios de alguns pais, cujas palavras elogiosas me foram repassadas pela direção daquela instituição de ensino.
Até que chegou, para completar o quadro de Língua Portuguesa, Janjão. Seu nome era João Luiz, mas todos o conhecemos pelo apelido. Chegou na segunda antecedente ao carnaval daquele ano. Um sorriso largo, uma viola debaixo do braço e muita brincadeira na sala de aula. Além disso trazia um monte de anedotas que desfolhava na sala dos professores para alegrar a todos nós.
A partir daquele momento ficou difícil entrar na sala de aula depois que Janjão saía. Todos queriam acompanhá-lo, levá-lo até à outra sala aonde deveria levar sua alegria. Ouvia-se de longe os aplausos dos outros alunos ao recebê-lo. Começávamos a aula ainda vendo nos olhos dos alunos a lembrança da passagem de Janjão. Para mim era mais complicado. Minhas aulas se resumiam a leitura, debate sobre a leitura feita, apresentação por parte dos alunos de alguns textos, trazidos por eles ou não e, uma vez por semana, contação de história. Os alunos adoravam, antes da chegada de Janjão. Suas aulas eram regadas a piadas, canções, gramática mnemônica. Certa vez, o diretor, na sala dos professores sugeriu que fôssemos como Jãnjão, criativos, boas pintas, modernos.
Até que acabou. O repertório se esvaiu, as piadas tomaram o caminho da repetição, aquela forma de ensinar gramática, tão atraente, tornou-se um carrilhão de bordões de cansar os ouvidos. O baile foi aos poucos se acabando.
Era véspera de sete de setembro daquele mesmo ano, quarta feira. O feriado seria na quinta. Nosso inventivo professor resolveu inventar um feriadão. Aproveitando sua boa relação com os alunos e alunas, combinou que ninguém iria na sexta. Assim, sua falta não seria notada e ele poderia gozar aqueles quatro dias de folga. E assim se deu. Na sexta feira, estavam presentes todos os alunos e todas as alunas, menos o professor. E as conversas eram uma só: “Ele pediu pra gente não vir”, “Ele disse que confiava na gente”, bla, bla, bla. Não preciso dizer o que aconteceu na segunda feira. As aulas dele foram divididas entre os demais professores da área. As aulas voltaram ao normal, e vez por outra fazíamos uma aula diferente, mas que sempre voltavam ao normal na sequência dos dias letivos.
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