segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 

LITERATURA DE CORDEL





O CORTIÇO





POR ALVES ANDRADE







BASEADO NO ROMANCE DE ALUÍZIO AZEVEDO










FORTALEZA, 2020












O Cortiço, cordel baseado no

romance de Aluísio Azevedo,

Por Alves Andrade


O CORTIÇO (JOÃO ROMÃO)

João Romão foi, Por uns anos,

Empregado de um vendeiro

Que, morrendo, lhe deixou

A venda e algum dinheiro,

Somou-os ao que já tinha

Como lhe era costumeiro.


Achando pouco o que tinha,

Com uma negra ajornalada

Cama e quitanda juntou,

E a renda dela ajuntada,

Ficou dizendo pra ela

“Es agora libertada”.


Os dois assim amancebados

Vendiam o que podiam,

Do peixe até a cachaça,

O resto era o que comiam,

Só após muito cansaço,

Era que eles dormir iam.


Ele na sua ganância,

Umas terras situadas

Comprou ao lado da venda,

E a cabeça acelerada

Só pensava numa coisa:

A renda multiplicada.


Construiu umas casinhas

Formando grande quadrado

Logo logo ali já era

Cortiço bem afamado,

E o comércio de Romão

Já era o mais procurado.


Depois cuidou de comprar

Perto dali ua pedreira,

Enricava todo dia,

Vivia de suadeira,

Mas estava satisfeito

Com o dinheiro na carteira.



A vida assim lhe sorria,

Dinheiro ali circulava,

Quem labutava na pedra,

O salário que pagava

Tornava sempre ao seu bolso,

Se o pedreiro ali morava.


As mulheres lavadeiras

Que lhe alugavam a casa

Não pagavam pelas tinas,

Que usavam no sol em brasa,

Cantando e sempre voando,

Pois só o cantar te dá asa.


Mas momento então chegou

De pensar no que fazia,

Acumulando riqueza,

A vida era então vazia,

Olhou no alto o vizinho

Pra quem a vida sorria.


Resolveu assim o vendeiro

Ao vizinho se achegar,

Pois tinha ele uma filhinha

Que podia desposar,

Como queria muito ele

Então de vida mudar.


Encontrou em seu Botelho,

Lá da casa um agregado,

Que lhe facilitaria

Penetrar lá no sobrado

E então de Zumirinha

Ser assim seu namorado.


Comprou roupa se enfeitou

Pra seu destino mudar,

Comprou sapato e perfume

Para bem se apresentar,

Mas se lembrou que da negra

Precisava se livrar.


Isso não lhe foi difícil,

Pois a dela liberdade

Fora inventada por ele,

Que lhe escondeu a verdade,

Continuava então escrava,

Sofreria a crueldade.


O vendeiro então tratou

De aos senhores avisar

Que em casa tinha a escrava,

Que fossem lá resgatar

E assim ficaria livre

Pra Zulmira desposar.


A pobre negra entendeu,

Havia sido enganada,

Percebeu que por Romão

Fora vilipendiada,

Abriu-se, pois, com uma faca,

Tava agora libertada.


João Romão fez sua história

À custa de alheia ferida,

Bebendo o suor alheio

Foi vencedor nesta vida,

Pisando em tudo e em todos,

Mas tendo a alma perdida.


O SOBRADO (MIRANDA)


Criou-se de pedra e cal,

Do cortiço avizinhado

Arquitetado no chifre

Desse Miranda, coitado,

Passado pela esposa

De caráter amesquinhado.


Na loja que era sua,

A esposa surpreendeu

Gemendo com um caixeiro,

Dessa forma o mal se deu,

Mas deixá-la não podia

Por causa do dote seu.


Odiou a mulher sempre,

Por ela foi odiado,

O chifre que carregava,

Era por todos notado,

Resolveu mudar de ares

Construiu, pois, o sobrado.





O que mesmo atormentava

Era a sua vizinhança,

O Cortiço era uma afronta

Do sobrado à pujança,

Contra Romão só pensava

Costurar fria vingança.


Na verdade ele invejava

A liberdade do vendeiro,

Que não sentia vergonha

Pois ganhava seu dinheiro

Sem roer chifre nenhum,

Era livre por inteiro.


Ele, Miranda, coitado,

Usava ainda a mulher,

Seu gênio não permitia

Pernoitar em cabaré,

Vivia dia após dia

Do jeito que a vida quer.


Sempre quando ele saía

Do quarto da odiada,

Sentia-se na sarjeta,

Pois tinha a alma humilhada,

Porém, mais a detestava,

Menos via uma escapada.


Até mesmo o Henriquinho

Que estava em sua casa,

Filho de um bom cliente,

Comia a mulher em brasa,

Acobertado por Botelho,

Velho pássaro sem asa.


Foi então que teve a ideia

De atenuar a humilhação,

Comprar título pomposo,

Escolheu o de barão,

Logo o chifre aturaria

E se vingava de Romão.


Essa trama do Miranda

Fez Romão enlouquecer,

Cuidou pois mudar de vida,

Melhor vida a si fazer,

Já vimos que isso levou

Bertoleza a se morrer.


O SOBRADO (ESTELA)


Estela era uma mulher

Maculada de luxúria,

Andava de lá pra cá

Levianamente espúria,

Inquieta pelo amor,

Perseguia-o com loucura.


O ar poento das ruas,

Trazendo de homem o cheiro,

Deformando-lhe a razão,

O corpo vibrando inteiro,

Não importando o amante,

Se rico, ou mero caixeiro.


Não era, pois, por maldade,

Que tinha o sexo ardente,

Mesmo o marido lhe dando,

Nada enchia sua mente,

Nem o vazio do corpo,

Libidinoso, demente.


Com dois anos de casada,

Traiu o marido sem pejo,

Dando-lhe enorme tristeza

E sem conter o desejo,

Rompendo a união, traiu

Aproveitando esse ensejo.


Nunca caçava o marido,

Nas noites de solidão,

Sonhava com todo homem,

Descambava ao rés do chão

Como as cadelas da rua

Buscava suja ilusão.


Pois foi numa noite dessas

Que viu Miranda adentrar

E, pensando não ser visto,

Foi dela se apoderar,

Saciou-se assim covarde,

Fez ela se saciar.





Sempre quando ele chegava,

Ela o sexo oferecia,

E, com os olhos bem fechados,

Que dormia ela fingia

Ele então gozava muito,

Ela o orgasmo atingia.


Porém numa certa noite,

Ela não se controlou,

Segurando-o com as pernas,

Uma gaitada ela estalou,

O ódio que os afastara

Foi o mesmo que os juntou.


Mas ficara então só nisso,

Nas noites de agonia,

Miranda a procurava,

Não se olhavam pelo dia,

Ele sempre moendo chifre,

Que pra ele ela tecia.


Quando a ele veio a ideia

De comprar o baronato,

Viu-se ela baronesa

Uma mulher de fino trato,

Ele então se amaciou

Para cumprir o contrato.


E assim a vida seguiu,

Miranda sendo barão,

Querendo a filha casar

Com o vizinho João Romão,

Suportando assim o desprezo

Comendo o insagrado pão.















O CORTIÇO (AS LAVADEIRAS)


Eram elas do cortiço

Da Estalagem São Romão,

A essência feminina,

De muito bom coração,

Conversavam dia e noite

Ventura e desilusão.


Logo cedo já estavam

Brigando com seus filhotes,

Arrumando bem a casa,

Neles dando cocorotes,

Se dirigiam pra as tinas

Levantando seus saiotes.


Sentava então a Machona,

De origem bem portuguesa,

Mui feroz e berradora,

Pêlos grossos de tigresa,

Tinha um filho e duas filhas

Uma virgem por destreza.


A das Dores sua filha

Tinha moradia rasa,

Um indivíduo do comércio

Por ela quebrou a asa,

Mas quando voltou pra terra

O sócio assumiu a casa.


Carne Mole era apelido

De Leandra, lavadeira,

Casada com um polícia

Que tinha pose altaneira,

Era sempre bem honesta,

Por preguiça brasileira.


Com o Bruno que era ferreiro,

Leocádia era Casada,

Leviana sem limite,

Nunca deu uma disfarçada

‘Té que um dia ele a flagrou

E lhe deu muita pancada.






Ao seu lado senta a Paula,

Muito feia e respeitada

Pelas rezas curandeiras

E por Bruxa alcunhada

Tinha os olhos rasos d’água

Tinha uma cara assustada.


Sentava-se a Marciana

E sua filha Florinda,

Com a casa sempre alimpada,

Se não era mulher fina,

Era com afã que lavava

Cuidando da sua tina.


Florinda, de quinze anos,

E homem já ela pedindo,

Olho de animal no cio,

Pele bronze ao sol luzindo,

Se negando a um e outro,

A virgindade se delindo.


Dona Isabel, uma velhota,

Todos muito a respeitavam,

Era mãe de uma filhinha

Com quem todos se casavam,

Mas mesmo com seus dezoito,

Regras não a visitavam.


Mas ela já fora rica,

O destino tudo levou,

Marido e a vida boa,

Muito triste ela ficou,

Queria nova fortuna,

Mas a filha não casou.


Havia também o Albino,

Um sujeito afeminado,

Tendo sempre um ar bem lânguido

Era triste esse coitado,

Só carnaval o animava,

Punha-se logo assanhado.


Eram essas lavadeiras

Que se punham a lavar,

Assim que o sol clareava,

Começavam a labutar

E o zumzumzum começava,

Não paravam de falar.


Assim nunca se calavam,

Sempre a esfregar, e bater,

Torce camisa e ceroulas,

Os sonos do amanhecer,

E as bandeiras de lençóis

Enfeitando o entardecer!




O CORTIÇO (JERÔNIMO E RITA BAIANA)


Quando ali ele chegou

Com a família de uma vez,

Amante era do bom vinho,

Honesto e bem bom freguês,

Curtia a mulher e o fado

Era então bom português.


Conquistou a simpatia

Por ser bom trabalhador,

Seu João Romão o admirava,

Pois era madrugador,

Por colegas respeitado,

Mas não lhe tinham temor.


Porém num domingo desses,

Rita Baiana avistou,

O requebro da mulata

Logo logo o conquistou,

Foi um dia sem igual,

E a vida ali mudou.


Sentiu passar pelo corpo

Um calor bem diferente,

Gana grande de tomar

Logo um copo de aguardente,

Beber um café bem forte,

Transformou-se, certamente.


Da mulher pegou foi nojo,

Da filha não quis saber,

Trabalho em segundo plano,

Começou muito a beber,

Buscava sempre da Rita

O cheiro de enlouquecer.



Mas a negra tinha um homem

De nome firmo chamado,

Era um grande capadócio

Na casca do alho passado,

Gostava de briga e samba,

Era um cabra descolado.


Rita é negra mui danada,

Amante do bom pagode,

Com suas mãos na cintura,

O corpo todo sacode,

Com mulher daquele tipo

Nem mesmo o diabo pode.


Todo dia lhe era santo,

Trabalhar gostava não,

Se alguém pela mão puxasse,

Saía por esse mundão

Dançando e gozando a vida,

De farra num abria mão!


Foi quando um dia ela viu

Jeromo com um pau na mão,

Firmo dando cambalhota

Pondo as duas mãos no chão,

Jeromo dando paulada,

Firmo dando cabeção.


Foi então que ela entendeu

Que os dois brigavam por ela,

Sentiu-se mulher feliz,

Sentiu-se mulher bela,

Pois os dois já se matavam,

Lutando pelo amor dela.


Foi quando firmo sacou,

De repente uma navalha

Rasgando do outro o ventre,

Assombrou toda a canalha

Que disse “matou, matou!”

Findando aquela batalha.


Rita, vendo esse desfecho,

Temeu pelo português,

Que por ela mataria,

Ódio por Firmo se fez,

No seu rosto da mulata

Instalou-se a palidez.


Algum tempo no hospital

Deixou novo o cavouqueiro,

Retornando desse exílio

Buscou rita por primeiro,

Mas queria era acabar

Com a raça do brasileiro.


E foi triste aquela cena

Que na chuva aconteceu,

Firmo debaixo de paus

Como um rato ali morreu,

Foi na areia de uma praia

Que tudo isso aconteceu.


Depois daquele ocorrido

Os dois então se mudaram,

Morar bem longe dali,

Mulher e filha ficaram

Sem rumo na vida e assim

Tristes caminhos trilharam.


O CORTIÇO (POMBINHA E LEÔNIE)


Nhá Pombinha era uma flor

Que naquele charco viveu,

Mas num quase berço de ouro

Foi então que ela nasceu,

Filha de dona Isabel

Que, tadinha, empobreceu.


Mesmo com dezoito anos,

Não podia se casar,

Mesmo noiva de João costa,

Não podiam se juntar

Porque não era mulher

Sem o sangue a lhe jorrar.


Era a tristeza da mãe

Que via nessa união

A fuga daquele antro,

Sua grande redenção,

Mas isso era impossível

Sem vir a menstruação.





Amada por toda a gente,

Era um anjo de doçura,

Da igreja sabia as rezas,

De livros boa leitura,

Admirada era por todos

Devido a sua candura.


As cartas de toda gente

Era ela que escrevia,

Das tristezas desse povo

Ela o cálculo fazia,

A infelicidade sua

Ela também conhecia.


Leônie é uma cocote

A qual vive muito bem,

Bom carro pra passear

E boa casa ela tem,

Os homens ricos da rua

Explora como ninguém.


Dona Isabel certo dia

Leônie foi visitar

Juntamente com Pombinha,

Foi um bom dia passar,

Mas de fato não sabia

O que estava a planejar.


Queria era mariposa

Com pombinha só ficar,

Levando-a para o quarto,

A começou desnudar

E a lésbica conseguiu

A inocente macular.


Pombinha bem envergonhada

Para casa retornou,

Ficou muito ensimesmada,

Com tudo que se passou,

E num sonho avermelhado

O mênstruo se comsumou.


Que alegria pra Isabel,

O sonho a realizar,

Pois sendo a filha mulher

Já podia se casar

E assim as duas iriam

Em bom sítio habitar.


O cortiço era alegria,

Pois sabiam partilhar

Da satisfação alheia,

Não eram de invejar

Estavam todos felizes

Com pombinha a exaltar.


Houve então o casamento,

Tudo então se confirmou,

Isabel muito feliz

Com Pombinha se mudou,

Foram morar bem longe

No lar que o genro comprou.


Mas a verve da menina

Não era com homem viver,

Pombinha e a bela Leônie

Logo foram se entender

Juntaram o corpo e a manha

Foram homens surpreender.




O CORTIÇO (BERTOLEZA E PIEDADE)


Se havia nesse cortiço

Tanto horror e iniquidade

Grande horror também caiu

Sobre dona Piedade,

Também sobre Bertoleza,

Que agiu com ingenuidade.


De sua terra, Piedade

Com seu marido saiu,

Sofreu como condenada

Na capital do Brasil,

Viu perto a felicidade

Que de repente fugiu.


Mulher simples e honrada,

Casada com um cavouqueiro,

Tinha uma filha lindinha,

Comprava bem do açougueiro,

Mantinha a casa limpinha

E brilhando o mobilheiro.



Porém depois de o marido

A negra Rita conhecer,

A sorte foi pelos ares,

Ficou sem ter nem haver,

Pois o homem bom e amado

Mudou-se todo seu ser


Abandonada no mundo,

Perdeu todo seu pudor,

A qualquer desconhecido

Deu-se mesmo sem amor,

Presa fácil de Pombinha

A filha se transformou.


A outra mais desgraçada

Chamava-se Bertoleza,

Levou a vida de escrava,

Sofrendo grande dureza,

Pagava o jornal aos donos

Pra ser livre e não ser presa.


Amiga de um português

Que morreu estropiado

Depois de inumano esforço

caiu na rua o coitado.

Para não ficar sozinha,

Com Romão viu-se amigada.


Enquanto joão prosperava,

Ela, sem ter feriado,

Trabalhando dia e noite,

Comia o resto sobrado,

Ciente que estava livre,

Mas João a tinha enganado.


Deu-se então que um certo dia,

Começou a perceber

Que João Romão intentava

Outra vida conhecer,

E além do homem perdido

Via a vida enegrecer.


Ser escrava não seria

Foi assim que ela pensou

Quando viu o antigo amo

Que na cozinha adentrou,

Desceu então a peixeira

E o próprio ventre rasgou.


Viu-se, pois, do outro lado

Por ascendestes cercada,

Espíritos ancestrais,

Sentindo então abraçada,

Lembrou do Cristo Jesus,

Da boa nova ensinada.




O CORTIÇO (O CORTIÇO)


‘cordava o Cortiço abrindo

Não os olhos que não tinha,

Porém todas as janelas

Formando uma grande linha,

De onde bem cedo emanava

Cheiro fresco e ladainha.


Sussurros de todo canto,

De boca muito abrimento,

Conversas de outro dia

Retomavam de momento,

Meninos e papagaios

Retornavam seu lamento.


O céu com seu azulado

Grande abóbada formava,

No terreiro aquadradado,

O trabalho começava,

Eram então as lavadeiras

Que o trabalho inciavam.


Os telhados admiravam

O cinzelar na pedreira,

Homens em miniatura,

lapidando-a sem canseira,

No capinzal ele via

Meninos na brincadeira.


As paredes lá da venda

Viam frase repetida:

Quilo e mei de branco arroz,

Copo de boa bebida,

Um fumo bom pra mascar,

Um vinagre na medida.



Enquanto todos dormiam,

A cobra de pedra e cal

Pedia ao bom Deus por todos

Que nunca passassem mal,

Sabendo que no outro dia

Agiriam sempre igual.


Foi com grande tristeza,

Que o Cortiço conheceu

Chifre do Bruno ferreiro,

E bem muito o entristeceu

O sofrer de Marciana,

Desgosto que a filha deu.


Riu dos muxoxos da Rita,

De Romão as trapalhadas,

Dos suspirados do Albino,

De Leocádia as cabeçadas,

Da miséria de Libório,

E das paixões desgraçadas.


Mas aquele ser bruto

O fim próximo sabia,

Pois via outros se erguendo,

‘Té seu nome mudaria,

Ante espadadas e fogo,

Ele então sucumbiria.


Foi assim que grande incêndio

As paredes destruiu,

E no lugar do Cortiço,

Outra estalagem surgiu

Bem mais cara e mais robusta,

Que João Romão construiu!

(Alves Andrade)

FIM!













quinta-feira, 12 de maio de 2022

O CABELEIRA

 











(Por Alves Andrade,

baseado na obra de Franklin Távora)


No século dezenove,

No ano de setenta e seis,

Foi que veio então a lume

Mostrar do sertão a tez

O romance O Cabeleira,

O qual li mais de uma vez.


Sendo romancista histórico,

Franklin Távora escreveu,

Requintado em lucidez,

O que por ali se deu,

A história de Cabeleira

Mal feitor que ali viveu.


Era muito grande a fome

Que a seca pra li trazia;

Era muito grande a morte

Que a peste ali espargia;

Porém o maior flagelo

Cabeleira é que fazia.


Na região de Goiana,

De Santo Antão e Goitá,

Ninguém não tinha sossego

Nem mesmo dentro do lar,

Quadrilhas então à solta

Todo o povo a castigar.


Era o século dezoito,

Setecentos, coisa e tal,

O Brasil inda Colônia,

Pertencente a Portugal,

Pernambuco embrionário,

Capitania especial.


José Gomes foi menino,

Teve da mãe o carinho,

Mas o pai, criatura má,

Levou-o a mau caminho,

Ensinou-lhe assim que o certo

Era matar passarinho.


Tirar a vida dos outros

Depois de ser homem feito,

Foi ensinado na infância,

Pelo pai, um mau sujeito,

Enquanto por outro lado,

A mãe pregava o respeito.


Se cuidar dos animais

A mãe o orientava,

Joaquim, o pai malvado,

Malvadeza ensinava,

Tirar a vida dos bichos,

Era assim que o pai mandava.


A mãe com ele ajoelhada,

Lhe dava terço a rezar,

O pai então irritado

Lhe deu faca pra matar,

“Meu filho há de ser homem

Pra todo mundo assustar”.


E na hora de escolher,

Por medo ou por vaidade,

Seguiu o caminho do pai,

O caminho da maldade,

Deixando sua triste mãe

Pra não ter felicidade.


E pouco tempo depois,

José Gomes se tornou

O temível Cabeleira.

Muita gente ele matou

Além das propriedades

Que seu bando saqueou.


Era o horror das cercanias,

Matava só por prazer,

Não tinha respeito à vida,

Não quis, não queria ter,

Sua faca era invencível,

Fazia fogo sem ver.


O pai do bando era o chefe,

O filho, o mais temido;

Todo roubo que faziam

Pra Timóteo era vendido;

O capanga Teodósio,

Cão cerbero sem sentido.


A mata era seu castelo;

As serras, a fortaleza;

As estrelas, o farol;

As fogueiras, a clareza;

A loucura, a coragem;

A vida, uma tristeza.


Porém quando viu Luíza,

Amada de sua infância,

Cabeleira refletiu

Sobre sua ignorância,

Sobre o mal que tinha feito,

Sobre sua petulância.


Foi após uma ocorrência

Que Rosalina vitimou,

Preferindo então a morte,

Com fibra não hesitou,

Com as mulheres da família

No incêndio se queimou.


Cabeleira à Luíza

Amor eterno jurou,

No meio do matagal,

Com ela, ele noivou

Mas logo pela manhã

Para o céu ela voou.


Mas antes, porém, contudo,

Seu amado consertou,

Aos pés dela mui contrito,

Pôr-se bom ele afirmou,

Desfez-se de suas armas

No monturo as jogou.


Nossa! que momento belo

Essa Arte nos legou,

Com a pena banhada em tinta,

Franklin Távora consagrou

A redenção de um homem

Que só o amor alcançou.


Depois daquela partida,

Tristeza grande o tomou,

Saindo no mundo afora,

Só desespero encontrou.

Nunca mais matou ninguém,

Aquela alma ela salvou.


Dentro de um canavial,

A polícia o prendeu.

Indagou-lhe o capitão:

“Cabeleira é nome seu?”

“José Gomes, seu criado.”

Desta forma respondeu.


Levado para goiana,

Mesmo preso ali tocou

A viola enluarada,

Muita gente ali chorou.

A esposa do Capitão

Pelo bandido implorou.


Mas selaram seu destino

Para na forca morrer

Juntamente com seu pai,

Sem ninguém interceder,

A mãe, vendo-o pendurado,

Também veio a falecer.


Com esse livro o autor

Procura nos ensinar

Que o crime nunca compensa,

Mas também para cismar

O direito da justiça

De outro homem executar.


Mostra que as autoridades

Devem do broto cuidar,

Dar-lhe boa Educação

Pra bom caminho trilhar

E que a pena de morte

Devia se eliminar.


Séc’lo e meio se passou,

E essa má instituição

Ainda é vista por muitos

Como a grande solução

Para o fim de todo crime

IMENSA E MERA ILUSÃO!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

OS BLIMPS E A FORTALEZA PROVINCIANA

Olhar para o alto e avistar o objeto era garantia de diversão e curiosidade entre crianças e adultos





Sessenta e cinco anos após o fim da Segunda Guerra, Fortaleza ainda guarda marcas do período em que a vinda de norte-americanos mudou costumes não só nas ruas da Cidade, mas no oceano e mesmo no ar. Entre 1943 e 1945, nem precisava erguer muito a cabeça para ver, cruzando o céu, os dirigíveis do tipo Blimp, costumeiramente confundidos com o popular Zeppelin. Se, em municípios vizinhos, as aeronaves causavam estranhamento e até medo, na provinciana Capital, elas eram admiradas por crianças e adultos.

Quem passou pelo período conta que o aparecimento de um Blimp transformava, mesmo que por segundos, a rotina em praças, campos de futebol, casas. Ao passarem pelo Centro, Jacarecanga, Benfica, Praia de Iracema e Pici, os dirigíveis tanto causaram curiosidade como deixaram lembranças inusitadas na memória da cidade.

Segundo registros do livro "A História da Aviação no Ceará", de Augusto Oliveira e Ivonildo Lavôr, "o Blimp mudava de rota e se movia vagarosamente sobre prédios e residências do bairro Benfica". Na Avenida da Universidade, um fato inusitado mostrava que os "norte-americanos gostavam de bisbilhotar a vida alheia".

Mais precisamente no número 2.486, uma jovem tomava banho de sol no terraço da casa, ao lado da caixa d´água. Relatos da época dizem que a beleza da moça fazia os americanos reforçarem a rota pelo endereço só para apreciá-la.

Naqueles anos, os americanos tinham duas bases em Fortaleza, a do Pici e a do Cocorote. Na primeira, concentravam-se esquadrilhas de caças, aviões de patrulha e bombardeio, aeronaves de transporte e os Blimps, espécies de Zeppelin em menor escala. Também era no Pici que ficava a torre de comando onde os dirigíveis eram presos com amarras, o que permitia que, mesmo parados, continuassem suspensos. Todos pertenciam à US Navy, a marinha norte-americana, que operou no Brasil entre os anos de 1943 e 1945 com dois esquadrões de Blimp contra os "boats" (submarinos).

"Eles vinham de Natal. Aqui era a porta para seguir em direção à África, entrando por Dakar", explica o jornalista e memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. Ele lembra que, na época, os blecautes noturnos eram provocados para a Cidade não ser vista pelos alemães. Mas era durante o dia, com o céu bem claro, que os Blimps chamavam mesmo à atenção do fortalezense.

"Dos dirigíveis, os americanos acenavam para as pessoas. Todo mundo via, porque eles passavam bem baixinho e devagar", testemunha Nirez. Ainda conforme se recorda o memorialista, os veículos funcionavam como espécies de observatórios por motivos específicos: voarem a uma altura média de 50 a 100 metros do nível do mar e com velocidade de cerca de 40 quilômetros por hora.

Diversas utilidades

Dessa forma, os dirigíveis eram usados em patrulha submarina, registro de fotografia em terra e no mar e observação do espaço local, com fins de prevenção e segurança. Mas, para os meninos da Vila Diogo (no Centro, entre Avenida Imperador e Rua Princesa Izabel) e do Barro Vermelho (atual bairro Antonio Bezerra), os Blimps eram motivo de diversão. Não era raro um garoto subir no telhado de casa na vã tentativa de tocar os dirigíveis com cabos de vassoura.


O sobrevoo de aviões-caça, como P-36 Halk e P-47, era um desfile para uma população de 180.185 habitantes. Mas a memória deixada pelos Blimps que passaram por Fortaleza não é só nostalgia. Como não poderia deixar de ser, houve acidentes.

A explosão de um Blimp que fazia patrulha na costa deixou dez mortos em 28 de fevereiro de 1944. De acordo com a obra "O Ceará na Segunda Grande Guerra", dos autores Stênio Azevedo e Geraldo Nobre, os corpos dos militares americanos foram sepultados no Cemitério São João Batista e, posteriormente, exumados e encaminhados para os Estados Unidos. No total, 32 militares americanos morreram no Ceará, durante a II Grande Guerra Mundial.

De acordo com Nirez, um acidente de menor proporção, no Jacarecanga, também com o Blimp, resultou em lembrança mais concreta. O irmão do jornalista, o astrônomo Rubens de Azevedo, foi ao local e ganhou, dos americanos, uma lente de máquina fotográfica.

LEMBRANÇAS
Silêncio e lentidão nos ares da Cidade



Sem o ruído e a velocidade dos aviões de guerra, os dirigíveis aguçavam a curiosidade em uma Fortaleza cheia de novidades, mas também suscitavam estranheza e mesmo medo nos meninos das cidades menores. Os Blimps que cruzavam o céu fazendo lentas curvas chegaram no tempo em que a Capital aprendia a conviver com os lampiões a gás nas ruas - depois substituídos pela energia elétrica - e com os carros que causavam os primeiros atropelamentos, na década de 1940.

Era no entorno da Praça do Ferreira que a Cidade mais percebia as mudanças: na Sorveteria Jangadeiro, nos cafés frequentados pela alta sociedade e pelos americanos, no corre-corre dos meninos que vendiam jenipapo como se fosse sapoti. Em um novo ritmo, mais veloz e barulhento, como retrata o historiador Antonio Luiz Macedo e Silva Filho, no livro "Paisagens de Consumo: Fortaleza no Tempo da Segunda Grande Guerra".

"Quando vi pela primeira vez, lembro que senti medo. Aquilo passando no céu, enorme, silencioso, era muito diferente dos aviões. Às vezes, reunia gente para ver. Era o comentário por dias", ressalta o jornalista Marciano Lopes que, na época, tinha seis, sete anos. Segundo ele, havia até um ritual para a apreciação. "Ficava em baixo de uma árvore mulungu. No verão, todas as suas folhas caem, mas as flores amarelas permanecem em cachos, atraindo corrupiões, que enchiam a árvore de preto e vermelho, comendo e cantando", descreve.

Na opinião do coronel Rui Pinheiro Silva, que morava na Praça São Sebastião (Otávio Bonfim), a passagem do Blimp era um divertimento para crianças e adultos. O futebol no campo parava abaixo dos dirigíveis. "Era uma coisa tão linda, se não me engano, prateada. Eles passavam na direção do fim da linha para ir para a Base do Pici", testifica o coronel.

Segundo o comerciante João Alberto Braga, o horário do sobrevoo geralmente era à tardinha. "Dava para ver o pessoal nele, os cabos que iriam segurar o dirigível na base ficavam balançando. Era como um cesto, os marinheiros de boné na cabeça", detalha.

Quem ainda mora no Pici convive com as marcas deixadas pelos americanos. No bairro desde 1966, o educador Leonardo Sampaio conta que o espaço dos galpões, antigos alojamentos dos militares norte-americanos, ainda tinha a torre onde pousavam os Blimps. "Várias bases de cimento, com argolas de ferro, apoiavam a torre", informa.

Se a estrutura não perdurou por completo, algumas reminiscências resistem, verdadeiras ou não, como a história dos carros enterrados. "Fomos morar do lado da cerca da base. Falavam dos carros, tinha muita lenda. Certo é que a população cavou tudo, tirou cabos. Dos Zeppelins (na verdade, Blimps, que eram dirigíveis menores), os mais antigos dizem que era estranho ver aquilo enorme no céu, tão baixo", explica.

Na atual Rua dos Monarcas há dois paiois, depósitos em que se guardavam suprimentos de guerra. Um outro galpão fica dentro do Campus do Pici, da Universidade Federal do Ceará (UFC). "É uma patrimônio que vai além de ser um bem da Cidade, mas da guerra", opina o educador. Perto do Departamento de Física, por exemplo, o asfalto ainda é daquela época.


A Capela de São José, na Avenida Carneiro de Mendonça, tem paredes erguidas pelos americanos, sendo que a estrutura, entre os anos de 1943 e 1945, era um paiol. Finda a guerra, o espaço foi transformado em igreja e era usado por religiosas do bairro Parangaba.


FIQUE POR DENTRO (Observação, resgate e segurança)



A primeira base cearense foi a do Alto da Balança, de 1930. Em 1939, com o início da guerra, aviões operavam na foz do Rio Ceará. Em 1941, as atividades se intensificaram no Atlântico Sul, após o ataque a Pearl Harbor. Em Fortaleza, foi construída a base do Pici, inaugurada em 1942 pela empresa Campelo & Gentil. Na década de 60, o espaço serviu para corridas de carro. Na época, a área pertencia à Panair do Brasil que, decretada falência, cedeu a jurisdição a instituições federais, com a Universidade Federal do Ceará (UFC). Em 1943, a base do Cocorote (local do atual aeroporto) começou a ser construída. O acesso entre as duas bases, pela Avenida João Pessoa, passava pelo Bar Avião

FIQUE POR DENTRO (Tráfego aéreo)



A Base do Pici foi construída entre julho e agosto de 1941, operando até abril de 1942, quando o tráfego aéreo foi transferido para a Base do Cocorote, que não tinha problemas de abastecimento de combustível e ventos. Assim, segundo o livro "Caravelas, Jangadas e Navios", de Rodolfo Espínola, no Pici, ficou funcionando a base aeronaval de Fortaleza, com três dirigíveis, a partir de 26 de novembro de 1943. Os soldados observavam navios ou submarinos (a partir da espuma deixada na superfície da água) inimigos. Os americanos proibiram fotos dos Blimps, por isso são poucos os registros. O Cocorote fica onde, hoje, está parte do Aeroporto Internacional Pinto Martins.

Diário do Nordeste, julho de 2010
MARTA BRUNO

REPÓRTER 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

OS PODEROSOS CHEFÕES

 



OS PODEROSOS CHEFÕES

(Por Alves Andrade)

Há uns anos, trabalhava numa escola, quando fui surpreendido por seu Zé. Era assim que chamávamos aquele pequeno homem de bata azul que andava daqui pra li com uma celeridade que impressionava. Fui surpreendido quando precisei utilizar uma salinha que ficava no fundo do corredor e ele me apresentou uma quantidade infinita de chaves. Ali, naquele molho, estavam todas as chaves da escola, da sala da direção àquela salinha insignificante a qual precisei adentrar. Ante minha surpresa, ele me segredou: “quem tem as chaves tem o poder”. Era assim , portanto, que seu Zé usufruía da maior atenção que se pode dedicar a uma pessoa dentro de um ambiente corporativo. Depois de conhecido o santo, passei a ouvir as preces: “seu Zé, cadê a chave do almoxarifado?”, “Seu Zé, abra a dispensa pra mim.”, Seu Zé, em que sala o senhor guardou as bolas de vôlei?”. O poder de seu Zé foi realmente comprovado quando o espaço entre a caixa d’água e o chão, onde se guardavam todos os papéis imprestáveis, pegou fogo. Seu Zé não estava na escola para abrir a sala onde se guardavam os extintores.. Foi um deus nos acuda!

Em uma outra escola, a diretora vivia pondo seu cargo em xeque. “Não quero mais, quando terminar meu mandato, não quero mais”. Dizia ela sempre e sempre. Mas, eu, conhecendo a volúpia pelo poder que rege a humanidade, me ria por dentro, esperando a próxima eleição. Dito e feito. Começaram as inscrições para a disputa do cargo, ela foi a primeira a se candidatar. Aí, o mundo quase caiu sobre mim, quando publiquei o cordel “CÃO QUE TEM NUNCA QUER LARGAR O OSSO”, que se diz

Por favor, amada gente,

não me venha convencer

com palavras ou sem elas

que gente que tem poder,

não me venha com balelas,

(desculpe até se sou grosso)

Mas cachorro que o tem

Nunca quer largar o osso

(…)

Já vi muitos proclamarem,

Dizendo em alto e bom som:

ISSO PRA MIM NUNCA MAIS”

Dizem aumentando o tom,

Mas quando sozinho estão,

Vão com ele até o pescoço,

Provando que cão que tem

Nunca quer largar o osso.

(…)

Criou-se pelos bajuladores até uma restegue #somos todos cachorros. Acho isso uma grande cachorrada mesmo. Todo mundo quer mandar no seu pedaço, até os cachorros. E os gatos também. Aqui no condomínio onde moro, cada gato tem seu espaço, debaixo de um carro. Ali está seu escritório, seu ponto de poder, seu birô. O gato daqui de casa, o Músi, quando consegue escapar, não quer mais voltar para casa. Vou atrás dele e me surpreendo quando o vejo debaixo de um carro cujo dono, outro gato, se ausentou. Fica uma fera, porque perdeu a oportunidade de mandar, de reinar sobre algo. Sobe nos meus braços, dando-me dentadas e unhadas. É o poder que, mesmo momentaneamente, embriaga a todos.

No romance Dom Casmurro, uma das maiores críticas feitas pelo Bruxo do Come Velho é sobre o poder. O pai de Capitu esteve nele por curto período, era administrador interino. Quase se matou quando perdeu o cargo. Passada a dor maior, aquele tempo em que esteve no poder passou a ser “a hégira, donde ele contava para diante e para trás. --No tempo em que eu era administrador…”.

No romance O Pequeno Príncipe, temos o rei que, não tem regência sobre nada, mas possui sabedoria para reinar sobre tudo. Quando o pequenino lhe pede um pôr-do-sol, ele promete que terá o seu pôr-do-sol, mas somente quando o sol puder se pôr. Mas sabemos que nem todos aqueles que detêm o poder são sábios para reger, por isso ou usam de violência ou de velhaquice para ali se perpetuar.

Entretanto nem todo poder emana do ato de se dirigir um grupo. Ele pode muito bem estar apenas na ideia de mando, sobre um filho, esposa, marido etc. Imagino o que passava na cabeça de Paulo Honório, personagem do romance São Bernardo de Graciliano Ramos, quando subjugava seus empregados, sem subjugar sua esposa. Imagino o que lhe carcomia por dentro quando Madalena, com sua gentileza e bondade, tinha mais poder sobre aquelas pobres pessoas do que ele. Quem tem poder não quer ser temido, mas ser amado, mesmo que esse amor seja imposto. Imagino ainda sem atinar de verdade, o quanto sofreu aquele tirano quando viu a mulher morta, pois ela, mulher empoderada pelo saber, não se acanharia diante dos desmandos de seu algoz.

E para encerrar essa crônica, que já está muito empoderada…

Despeço-me por aqui,

Pois já tô tomando gosto,

Me apossando do fazer,

De querer tomar o posto

De diretor da poesia

Tornando o viver insosso,

É a sina do cão que tem

E não quer largar o osso.



quarta-feira, 24 de novembro de 2021

DIREITO AO DELÍRIO

 


(Eduardo Galeano)


"Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.

As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.

Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?

Que tal se delirarmos por um momentinho?

Ao fim do milênio vamos fixar os olhos mais para lá da infâmia para adivinhar outro mundo possível.

O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das paixões humanas.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pela televisão.

A televisão deixará de ser o membro mais importante da família.

As pessoas trabalharão para viver em lugar de viver para trabalhar.

Se incorporará aos Códigos Penais o delito de estupidez que cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os rapazes que se neguem a cumprir serviço militar, mas sim os que queiram cumprir.

Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.

Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.

Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.

O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza.

E a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se quebrada.

A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.

As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.

A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, voltarão a juntar-se bem de perto, costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.

A perfeição seguirá sendo o privilégio tedioso dos deuses, mas neste mundo, neste mundo avacalhado e maldito, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro."

RECADO AO SR. 903

 

Vizinho –

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclama contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explicito e, se não fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21,45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 horas às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando o número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhes desculpas – e prometo silêncio.

Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ” Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra vizinho, e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

(RUBEM BRAGA)

terça-feira, 9 de novembro de 2021

 

A VERDADEIRA MORADA

Por Alves Andrade


Na cidade, no conturbado mundo urbano, todos desejam uma casa no campo, onde possam compor alguns rocks rurais, onde possam descansar numa rede branca, tomar café com cuscuz de ralo ao leite de coco, e almoçar uma gorda galinha de capoeira. Vislumbra-se uma montanha por trás da qual se esconde um imenso mar azul, de águas cristalinas de preferência, onde se possam ver peixinhos a nadar em pequenos bandos. Respira-se o ar pesado da capital e imagina-se quão puro deve ser o ar do sertão, do litoral distante. Não precisar em uma mansão com dezoito banheiros, basta uma casa alpendrada, com fogão a lenha, e um quintal, onde pipilem os pequenos animais de pena. Uma cerca e a visão do mato, verde, ou do mar azul, longe do asfalto calorento. À tardinha, o anoitecer, o arrebol agressivo que não agride, apenas enfeita o cenário maravilhoso da natureza. Uma vida bucólica, um fugere urbem, paz e descanso.

No sertão, entre um arranhão e outro gerado por um espinho agressivo, ou por um canto de cerca, bruto, o sertanejo, de volta pra casa, deita-se na rede e olha o teto esfumaçado, mira os filhos barrigudos brincando no quintal com um calango, a esposa, estafada da lida diária, com a saia arregaçada, soprando o fogareiro, mostrando as coxas reluzentes de suor e gordura. No litoral distante, o praieiro e sua esposa, donos da barraca, olham em volta e só veem o mar, a areia, ouvem seu marulho . Cansados da jornada infinda que não acaba, desde muitas gerações. O enfadonho horizonte traz-lhes a visão do barquinho, que teima em não chegar. As poucas luzes se confundem com o parco cheiro do peixe, que chilreia no fogão, os meninos e as meninas brincam de pescador ou de atender aos clientes, que não chegam nunca. Esses dois mundos sonham com a cidade, com a vida urbana, cheia de oportunidades, com escolas de boa qualidade para os filhos. Em seus ouvidos, o barulho dos carros suplantam aquela quietude modorrenta daquela eterna visão, estática, como um quadro de pintura barata. Lembram imagens trazidas pela televisão, em que pessoas invadem as lojas, felizes a comprar. Suas casas sempre limpas, assoalho brilhando, os meninos estudando, sentados em grandes mesas. E o asfalto desempoeirado.

Assim é desde sempre. A humanidade sempre sonhando com outras paragens que não a sua. Sem perceber que a grande morada, a verdadeira paisagem está consigo, dentro de si. É para lá que ele precisa se mudar. É este seu verdadeiro lar, que Deus lhe deu, é preciso que desfrute dessa grande, imensa paisagem. Assim quando ele cansar de olhar a cidade ou o campo, em sua ilusão de desejo, e voltar-se para seu interior, verá quão belo é o mundo que lá existe e que precisa ser difundido, cuidado, emergido. Sua verdadeira morada, onde todos os seus sonhos serão realizados e todas as angústias dissipadas. A compreensão de que a simplicidade da vida, a verdadeira felicidade só depende dessa real visão.

NA ESCURIDÃO MISERÁVEL

FERNANDO SABINO  “Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o m...