segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

CAPÍTULO IV
“Achei cousa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são redes e laços e cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá dela, mas o pecador virá a ser seu prisioneiro.”
(Eclesiastes: 7; 26)



Tinha dezessete anos e um vício: tabagismo. Tudo começou quando tinha doze anos. Sempre que saíamos da escola um ou outro colega aparecia com um cigarro. À época não conhecia as conseqüências de um hábito como o de fumar ou de qualquer outro vício, pois não havia publicidade contra eles. E para mim, o que interessava era experimentar, saber que gosto tinha aquela brasa que meu tio puxava como se fosse o ato mais prazeroso da existência humana. Quando os colegas começaram a fumar depois da aula, eu fui embalado nessa onda, que além de tudo era proibido pela escola e aumentava a idéia de prazer. O que eu não sabia era que aquele momento de “curtição” iria passar, com o tempo, para os meus colegas, mas para mim não. Tornou-se necessidade a ponto de em pouco tempo eu não conseguir mais esconder de ninguém. Para meus pais foi uma dor de cabeça, mas como sempre acontece, com o tempo, acabaram se acostumando à idéia, mas sempre que podiam listavam-me todos os males causados por esse vício idiota. Eu tentava explicar-lhe que a coisa fugira ao meu controle. Eu já fumava, com quinze anos, trinta a quarenta cigarros diários. Era compulsivo. O vício preenchia todos os eventos diários. Depois do café acendia um cigarro; saía de casa, acendia mais um; se chegava, outro; se ia tomar banho, também, e assim por diante. Tudo era motivo para fumar. O resultado disso foram os dentes amarelados e uma pouca resistência física. Para subir, por exemplo, dois lanços de escada, era-me uma tormenta.
Por isso é que eu digo: tinha dezessete anos e era escravo de um vício. Tentei de diversas formas parar com esse mau hábito, mas todas as tentativas foram inúteis. Tentei uma solução lida em um livro, desses que vendem nas livrarias aos montes. O método consistia em paulatinamente diminuir os cigarros diários, ir cortando-os em determinados horários até que só restasse o último, o da hora de dormir. E assim eu fiz. Cortei primeiro o que eu fumava depois do café da manhã, em seguida um da tarde e assim fui. Até que me restaram cinco cigarros diários e uma angústia terrível. O rendimento escolar caiu. Eu não pensava noutra coisa senão no próximo cigarro. As pernas formigavam e a cabeça não se detinha em nada que queria fazer. Para não ser reprovado, fumei todos os cigarros que os nervos me ordenavam fumar, tirei o atraso. Abandonei de vez o método e voltei a ser “normal”. A partir daí assumi novamente o vício, como se fosse algo que fizesse parte de mim, sem remorso. Pois o cigarro era meu prazer e na minha cabeça começou a se formar a idéia fixa de que quem quisesse me aceitar teria que ser do jeito que eu era. Passei a adotar frases para desarmar os antitabagistas, como “Sei que o cigarro mata devagarinho, mas eu não tenho pressa de morrer”, ou “Desconfia dos que não fumam, eles não têm mundo interior, eles não têm sentimento, pois fumar é uma forma disfarçada de suspirar.”
Foi nesse ínterim que conheci Ângela. Uma colega de 2ª série do Ensino Médio. De repente nos pegamos falando as mesmas coisas, ouvindo as mesmas músicas e fumando os mesmos cigarros. Foi paixão imediata. Era nos nossos beijos que me encontrava e me realizava. Íamos para a Ponte Metálica (Ponte dos Ingleses) e lá ficávamos até o manto noturno desabar completamente sobre a terra, inventávamos versos, cifras. Depois passamos a inventar posições, era o prazer sexual que finalmente me vinha despertar as mais loucas sensações; seus lábios eram doces como favos de mel e as alucinações que me sussurrava azeitavam o meu viver, enquanto sua língua, penetrando meus ouvidos era aguda como espadas. Quando estava só, lembrava-me de Aliel e por onde passava buscava-a. Ela devia ter então onze anos e eu não a encontrava, só em setembro é que ela me abria os braços em desespero, e as lágrimas me vinham pela manhã por não poder salvar a mulher da minha vida.
Passava o dia inteiro fora de casa, trazia sempre às costas a mochila da escola, que continha pouco material escolar e mais revistas de cifras, poemas diversos e livros de filosofia, além é claro de duas ou três carteiras de cigarro. Tinha sempre o cuidado de não deixar faltar meus “inseparáveis companheiros”. Mais da metade do dinheiro que meus pais me davam para o lanche e para o transporte era consumida pelo vício. E eles me davam sempre mais do que o necessário, já prevendo isso. Apesar de estudarmos na mesma sala, Ângela fazia questão de só nos vermos fora da escola. E assim à tarde nos encontrávamos e eu me transmudava para o mundo da paixão.
Um dia, Flávio, um dos poucos amigos que tinha no colégio, chegou e me disse que Ângela fazia jogo duplo. Namorava ao mesmo tempo comigo e com um garoto da 3ª série. O chão abriu-se sob meus pés, fiquei desnorteado e esbofeteei meu amigo para depois desaparecer de sua frente. Não podia ser verdade! Ela me amava! À tarde fui enfático com ela e lhe pedi a verdade. Ela negou tudo, disse que o Flávio queria era fazer intriga, que vivia dando em cima dela, que eu não tinha motivos para desconfiar dos seus sentimentos, por fim chorou. Era só o que eu queria e num abrir e fechar de ouvidos cri na sua versão para os fatos.
Mas o pior veio em seguida quando descobri que era tudo verdade. Ela não fazia jogo duplo, fazia jogo triplo, jogo quádruplo e até com um professor da escola ela transava. Soube depois da existência de um tal clube da Ângela, formado por homens de todas as idades que, entre doses de uísque, revezavam a posse de seu corpo. Diante da queda da máscara da mulher que eu amava como louco, eu me desesperei. Mesmo assim, ela continuava negando e eu esperava essa negação para cair em seus braços novamente. Ela era o meu segundo vício. Meu corpo agora dependia do duplo: dela e do cigarro. Faltava-me o terceiro: o álcool. Para enganar a mim mesmo e imaginar que era amado por Ângela e que ela só pertencia a mim, unicamente, comecei a beber. Quando ela saía de meus braços, eu entrava no primeiro bar que encontrava e tomava algumas cervejas. Com o tempo adotei uma espelunca, próximo a minha casa. Lá, enquanto se jogavam cartas, eu bebericava e conversava com um e outro e só tornava a casa quando estava completamente bêbado. O fim de tudo era o amargo na boca semelhante ao jiló, que me levava ao inferno aqui mesmo na terra.
Mas para minha sorte caí doente, gravemente doente. Uma tosse crônica ocupava meu tempo, aos poucos perdi o apetite e comecei a perder peso. Um dia, sem coragem de me levantar, tive um acesso de tosse seguido de sangue e pus, desmaiei no meio da rua. Acordei num hospital, na manhã seguinte, sem lenço e sem documentos, pois haviam roubado minha inseparável mochila. Quando procurei saber onde me encontrava, fiquei surpreso quando me disseram ser o Hospital São José, lugar onde se curam doenças infecto-contagiosas. Pensei estar com AIDS e agradeci a Deus por não ter documentos, só assim meus pais não me encontrariam. Mais tarde o médico me deu o diagnóstico: “Você contraiu uma moléstia causada pela Mycrobacterium tuberculosis, também conhecida como bacilo de Koch.” Era a tuberculose, o mal do século XIX que vitimou Castro Alves, Álvares de Azevedo e quase toda uma gerações de jovens, que agora vinha me salvar.
Foi lá nesse antro de sofrimento e lamento que comecei a entender e a compreender o meu destino.


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