terça-feira, 31 de março de 2009

DE VIDA, DE SONHOS, DE ENCONTROS CAPÍTULOS XIV E XV

CAPÍTULO XIV

“A mulher sábia edifica a sua casa,
mas a insensata,
com as próprias mãos a derriba.”
(Provérbios: 14 – 1)

Depois desse dia ela me telefonava sempre e passamos a nos encontrar. Eu ansiava por beijá-la, abraçá-la, mas ela sempre se esgueirava e me mostrava a aliança em sua mão. Brincava, ria. Depois me tratava como quem trata um irmão para depois dizer que me amava. Eu jamais forcei nenhuma barra por saber que ela estava muito confusa. Era como se ela estivesse vivendo várias vidas ao mesmo tempo. A aliel que me amava era Ranjicniami, a minha irmã era Miciane, e deveria haver muitas outras que se misturavam numa só. E ela sofria por tudo isso. Eu sempre evitava falar na mãe por notar certa indiferença dela com relação aos pais. Possivelmente ela deva ter se tornado arredia depois de quase ter sido obrigada a casar. Entretanto o respeito e o carinho que nutria pelo marido eram algo muito próximo do amor. Às vezes ficava embevecido com seus encantos e perdia a noção do tempo. Quando dava por mim já era hora de voltar para a faculdade e para os órgãos embebidos no formol. Beijava-a na testa ou no rosto e saía correndo ansiando por vê-la novamente.
Um dia quem me ligou foi o marido, convidando-me para almoçar no domingo em sua casa. Ansiei barbaridade para que esse dia chegasse. No domingo, então lá estava eu, sentado à beira da piscina ao lado de Aliel e de seu marido, conversando sobre Medicina, pacientes e hospitais, e ele me dizia:
─ Meu rapaz, você terá uma vida um tanto corrida. Tenho muitos amigos e amigas médicas. E aqueles mais comprometidos passam semanas sem ver suas esposas, ou seus maridos, ou seus companheiros, não importa. Quando não estamos nos consultórios, estamos nos plantões, quando não estamos nem em um nem em outro, estamos em algum congresso. É complicado, é complicado. – Falava enquanto sorvia o uísque do copo.
Essas reuniões se repetiram algumas vezes, e quando não falávamos da profissão ou da faculdade, jogávamos e brincávamos algo inventado por Aliel. Numa tarde ele me chamou a um canto para me confidenciar:
─ Meu caro, Daniel, estou um pouco preocupado com sua amiga. Aos poucos vou percebendo que Aliel está ficando mais confusa sobre quem é. Eu falei com alguns colegas sobre o caso dela, mas parece-me que suas experiências são de outrem, ou seja, eles não fizeram nenhuma regressão em ninguém. Entretanto, meu jovem, eu entrei em contato com um colega norte-americano e ele me disse que estará visitando o Brasil em fevereiro, quer dizer, daqui a três meses. Ele falou que virá ao Ceará e, se eu quiser, ele fará um exercício de regressão em Aliel. Esperemos, pois, até lá. – arrematou com sua voz pausada
Sempre que estava ao seu lado, principalmente perto de aliel, eu ficava meio que intimidado, afinal ele era médico famoso, era mais velho, rico. Naquele dia, no entanto, eu lhe falei:
─ Oh, Dr. Ernani...
─ Que é isso, meu caro, chame a mim de Ernani, aliás, você é de casa e em breve será meu colega.
─ Obrigado. – agradeci – Ernani, enquanto isso nós poderíamos levar Aliel à casa onde ela morava quando encarnada em Miciane... – e lhe expus a experiência tida na antiga mansão.
Ele mostrou-se deveras interessado, e combinamos que dali a oito dias iríamos até ao casarão abandonado. Nesse momento fomos surpreendidos por Aliel que chegou por trás e com seu jeito brejeiro:
─ Quem cochicha o rabo espicha! Eu já tô ficando com ciúmes!
E assim a tarde declinou.








CAPÍTULO XV
“Mas, ai! cedo fugiste! Da soidade
Hoje te imploro, desse amor tão fundo,
Uma idéia, uma queixa, uma saudade.”
(Fagundes Varela)


O carro parou em frente ao casarão. Como não havia ali lugar para estacionar, demos a volta no quarteirão, até que numa rua transversal paramos. Enquanto Ernani fazia a manobra no carro eu, sentado no banco de trás observava a reação de Aliel. Era explícita sua admiração ao ver a mansão, onde morara em outra vida. Quando descemos do automóvel ela meio apreensiva indagou:
─ Ernani, aonde vamos de fato?
Em poucas palavras ele contou-lhe sobre o que eu lhe havia contado sobre a casa e de nossa decisão de irmos até lá e finalizou:
─ Não se preocupe, minha deusa, – era assim que ele a tratava – se você não se sentir bem e quiser sair é só falar.
Não foi difícil transpor o portão. Ernani havia providenciado um chaveiro competente, outrossim, um moleque havia feito um caminho para evitarmos os carrapichos, coisa de gente prevenida, que pensa em tudo. Já no interior da casa, procurei vestígios do homem que antes dormia ali. Não havia nada que identificasse presença humana. Com certeza César devia ter alugado a tal quitinete. Minha atenção então se voltou para Aliel, que até então não havia dado uma única palavra. Seus olhos percorriam a extensão das paredes descascadas, das janelas despedaçadas. Detinham-se em um ponto para em seguida virar-se para outro. Ernani e eu apenas a seguíamos. Ela então mudou de expressão e, firme, dirigiu-se a um dos aposentos como se lá esperasse encontrar alguém ou algo. Adentrou um dos quartos, parou, sentou-se, colocou a cabeça entre as pernas, fechou os olhos e entoou uma melodia. Dr. Ernani aproximou-se dela, pediu para eu ligar o gravador e com a intuição gerada pela experiência da profissão perguntou-lhe:
─ O que você vê, quem você é?
A voz de Aliel era sumidinha, igual a que eu ouvi durante meu transe quando estivera ali:
─ Eu tô brincando com meus primos, mas eu num gosto deles. Eles me assustam com histórias de monstros. Eu tenho cinco anos. É meu aniversário. Todos estão presentes menos Daniel, que é meu irmão. Ele foi viajar e eu estou muito triste pela falta dele. – De repente esboçou um meio sorriso e continuou – Eu estou brincando na praia, meu irmão está cuidando de mim, mas eu caio num buraco e quase me afogo, felizmente Daniel me socorre, me tira nos braços e faz respiração boca a boca. Ele além de meu irmão é meu amigo, meu anjo da guarda. Minha mãe está morta, deitada no meio da sala dentro de um caixão, eu estou chorando muito e Daniel me conforta. O cemitério é grande, há muitas árvores e para onde se olha se vêem túmulos, túmulos, túmulos. Nós não temos pai, ele morreu numa tentativa de assalto. Agora também não temos mãe. Chove muito e eu tenho medo, me escondo na cozinha, os trovões parece sacudirem a casa e os relâmpagos clareiam a casa de instante a instante. Daniel vem e me abraça e eu pergunto por mamãe, agora ele é quem chora. Nós perdemos a casa. Vieram os homens, tivemos que deixá-la. Nós vamos morar na casa da titia. Meus primos não me deixam em paz, arengam a toda hora. Agora eu sou uma menininha grande e lavo roupa na casa de minha tia, sinto muita angústia. Enquanto esfrego a roupa minhas lágrimas caem sobre a espuma do sabão, sinto saudades de Daniel. Ele não existe mais, foi colhido pelo trem. Eu lembro do alvoroço quando um dos meus primos chegou correndo e dando a notícia, corremos todos para lá, eu no caminho rezava para que fosse tudo um engano, não era Daniel, não podia ser meu irmãozinho, porque logo com ele, mas era, apesar do estrago feito pela locomotiva, eu pude reconhecê-lo. Eu estou na igreja. A meu lado o noivo. Mas eu não tô feliz. Alguma coisa me entristece muito, acho que não posso casar com ele, ele é mau, ele bate em mim. Não... Eu tenho uma idéia sinistra. Eu estou no banheiro de uma casa imensa. Agora eu lembro que minha tia, para se ver livre de mim resolveu me casar com esse homem. Ela é minha mãe... Eu tenho nas mãos um copo nele há veneno e eu o sorvo de uma vez só, minha cabeça começa a rodar e minha barriga dói muito, como se tivesse uma batedeira em meu interior... eu tô morrendo, a respiração está faltando... uma luz...
Olhei apreensivo para Ernani, aliel estava morrendo. Ele a sacolejou enquanto chamava:
─ Aliel, acorde, por favor, minha deusa.
Ela despertou do transe e, após recuperar a respiração, fitou nós dois, como se não soubesse o que houve, nem o que viu, na verdade não o sabia. Quando chegamos a casa do casal, voltamos a fita e os três ouvimos a gravação. Enquanto a fita girava aliel se abraçava a mim. Ao final ela estava com um semblante sereno, calmo, como quem finalmente acorda de um terrível pesadelo. Ela então falou com uma voz chorosa:
─ Então nós fomos irmãos em outra vida, né seu Daniel!
Eu sorri, não sabia o que pensar. Por que eu nunca me lembrei do episódio do trem? Agora estava explicado o pavor que eu tenho dessas máquinas, elas me enregelam a espinha. E eu ouvi a voz de Aliel ainda agarrada a mim:
─ E quando foi isso? – Ao que Dr. Ernani respondeu:
─ Aquela casa foi construída no começo do século XIX. Depois foi adquirida, já no final desse século, por uma família recém chegada de São Paulo, uma família de brasão italiano que negociava com café. – olhando para mim e para Aliel – sua família, como Miciane e Daniel. Depois da morte do patriarca, em 1917, a mãe suicidou-se e a casa foi transferida para o banco onde estava penhorada. Hoje é propriedade da caixa Econômica e, se tudo der certo, em breve será nossa.
Aliel o abraçou, e eu me despedi.
Nos dias que se seguiram, estive envolvido com os estudos e não pude atender aos apelos de Aliel, minha amada, a mulher que me estava destinada, e de seu marido, agora meu amigo. Como essa vida é complicada! Como diria Ernani. Pensei. Antes minha cabeça girava em torno de um mistério imenso o qual me traria o destino romântico digno de um folhetim barato. Até que conheci Wellington, um indivíduo cuja mãe me disse ser um espírito evoluído, e ele o era. Ele me falara de alguém que precisava de mim, Aliel, de alguém que me queria fazer sofrer, Ângela. E tudo isso se descortinou com tanta urgência que não vejo nenhum mistério. Foi o tempo mais uma vez dando mostras de que ele é inexorável, de que tudo se dissolve com ele, basta-nos espera e agir no momento ideal. Em um dos telefonemas que Ernani me deu, falou-me que Aliel estava bem melhor, visitou os pais e estava bem mais serena, até pedira a ele para voltar a estudar, pois precisava ter uma profissão para ser útil a alguém. Ela também me telefonava e numa de nossas conversa falou-me que estava preparada para a próxima regressão, que ocorreria em fevereiro, quando o especialista americano viesse. Ernani tinha medo de que algo desse errado. Eu prometia que assim que me livrasse das avaliações finais retornaria a encontrá-los.
Assim que cumpri minhas últimas atividades anuais na faculdade, fui visitar Aliel. A saudade era imensa, apesar do curto tempo. Mas quando se ama, quer-se estar perto da mulher amada a toda hora, e alguns dias sem vê-la parecem uma eternidade, por isso qualquer minuto perto é bom demais, o amor só aumenta. Chegando à sua casa, pedi para a moça que me atendeu para que não me anunciasse, pois queria fazer uma surpresa. Entretanto surpreso fiquei eu ao vê-la rodeada de livros. Por alguns instantes fiquei embebido admirando aquela cena: os livros dispostos sobre a mesa, sem nenhuma arrumação ou algo que indicasse critério de colocação, ela com os dois punhos cerrados debaixo do queixo numa atitude de jogador de xadrez que imagina uma estratégia para dar xeque mate no adversário. Em outro plano, quero dizer, quem visse a cena por um ângulo mais ampliado, que me enquadrasse, com certeza acharia patético a minha atitude diante da cena simples protagonizada pela moça. E foi isso que deve ter pensado Ernani ao tocar meu ombro para em seguida falar baixinho:
─ Você deve amar muito essa moça, não?
Eu fiquei atônito, envergonhado. A vontade que eu tive foi de ir embora correndo e nunca mais tornar àquela casa. Mas nesse instante aliel se voltou para mim, deu-me um sorriso tão belo que esse desejo volatizou-se e sumiu da minha mente. Ela ergueu os braços para mim, que fui em sua direção, beijei-lhe a testa e sentei-me perto dela.
─ Vem cá, Daniel, me ajudar com esses livros, que o Ernani não tem paciência comigo.
Nisso o marido se aproximou de nós dois, beijou-a nos lábios, bateu de leve no meu ombro e saiu. Ainda da porta falou:
─ Toma conta de tua irmã, Daniel.
Aquelas palavras me doeram como látego, pois era isso que eu para Aliel, apenas o seu irmão. E isso me incomodava. Eu queria ser seu amado, seu homem, seu amante. Entretanto ela era pura demais, não trairia seu marido. Se antes o fizera, era porque ainda não eram casados e talvez ela nem acreditasse que viriam a sê-lo. O marido por sua vez mesmo sabendo do amor que eu tinha por ela sabia que ela o amava e conhecia que tipo de relação ela internalizara com relação a mim, principalmente depois dos últimos acontecimentos. Com certeza ele na dissera aquelas palavras para me nocautear, possivelmente o tenha feito para justificar para si mesmo a confiança que depositava em mim. E eu me lembrei do tempo, senhor tão bonito, compositor de destinos, que sana todos os males e que destrói os homens maus. Não houve um na história da humanidade que não tenha sucumbido a ele, não houve nem haverá império por mais poderoso que seja que não caia sob o olhar de sarcasmo desse imperador do universo. Por outro lado não houve nem haverá amor que ele tenha conseguido demolir. Como dois amigos que se rivalizam numa luta surda em que não há vencedor, Amor e Tempo se medem. Um está sempre rindo um do outro a cada vitória parcial, e os anos, as décadas e os séculos se vão passando, se acumulando enquanto, exaustos da peleja, os dois contemplam a humanidade e sentem pena dos homens, para, logo recuperado o fôlego, voltarem à pugna que os entretém. Lembrei-me de uma história contada por um professor de Língua Portuguesa que é mais ou menos assim:
Certa vez, numa ilha habitavam todos os sentimentos: a Saudade, a Tristeza, a Alegria, a Ganância, a Solidariedade, o Ciúme, a Inveja, o Amor, o Ódio, a Usura. Enfim ali habitavam todos aqueles que norteiam o destino da humanidade. Apesar de paradoxais, eles conviviam bem, cada um respeitando as diferenças alheias, pois é nos corações humanos que se dá o combate entre eles.
Certo dia Surgiu das profundezas do oceano um Tritão e informou que seu pai, Netuno, iria inundar toda a ilha. Que era para os sentimentos evacuarem o local e buscarem outro quartel general. Todos imediatamente ocuparam seus barcos para deixarem aquele lugar que tanto os acolhera. O amor, sempre fitando o distante horizonte, só soube do que ocorreria quando a maioria já havia abandonado a ilha. E ele, que nunca desesperou, andou calmamente até a praia. Lá chegando viu o barco da Felicidade e perguntou:
─ Tem uma vaguinha para mim aí?
─ Desculpe-me, amigo, mas é que estou tão feliz que prefiro ficar sozinha para que ninguém atrapalhe minha alegria.
O barco do Ciúme também não pôde levá-lo porque tinha medo de que seu veículo se apaixonasse por outro. O barco da Riqueza estava repleto de ouro e prata e não cabia mais nada. A Inveja e o Ódio, que iam no mesmo barco, sabiam que com o fim do amor eles poderiam reinar absolutos sobre o coração humano, e, por isso, nem sequer ouviram seus apelos.
E assim foram um a um passando, enquanto o Amor, paciente, sabia que chegaria sua vez de se salvar. A ilha já começara a ser inundada quando veio um barco e o acolheu. De tão grato o Amor se esqueceu de perguntar ao barqueiro o seu nome. Mais tarde, já em completa segurança, enquanto ajeitava seu novo posto, Amor se lembrou de perguntar a outrem o nome de seu benfeitor:
─ Foi O Tempo. Não o reconheceste? – respondeu o indagado.
O amor então refletiu: “Ah, só podia ser ele, pois só o Tempo é capaz de transportar o Amor”.
E mais uma vez deixei às expensas do Tempo o meu dilema de ter Aliel nos meus braços para sempre. Estava perdido nessas reflexões quando ela brincou:
─ Atenção, planeta Terra chamando Daniel, queira, por favor, aterrissar.
Dei um sorriso, como que pedindo desculpas e fui tratar do que ela queria. Durante todo o dia ficamos juntos. Falamos de seus planos de estudar. Ela queria voltar a cursar a 8ª série para no final do ano tentar as provas da Escola Técnica. Pretendia cursar turismo. E assim o dia declinou, ela falando e eu ouvindo, bebendo cada fonema, cada palavra e cada gota de saliva. Meu Deus – Pensava às vezes – deve ser pecado desejar tanto assim uma pessoa e se contentar apenas com vê-la. Por outro lado pensava ser pecado o incesto. E refletia como são complicadas as leis dos homens mascaradas de leis de Deus. Por que um irmão não pode amar uma irmã, se seus corpos se atraem, se se querem, por que Estácio não pôde ter Helena, por que eu não posso ter Aliel. E de repente balançava a cabeça desnorteado para me dizer: “Aliel não é minha irmã, foi-o em outra vida”. Até que ela me chamava à realidade novamente e eu voltava a fitá-la, e a refletir, e a me perder. Até que...

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